Sérgio Godinho fala de José Afonso como um estímulo. Os músicos Rui Pato, Janita Salomé, Francisco Fanhais, José Jorge Letria e Manuel Jorge Veloso, que também acompanharam José Afonso e que com ele privaram, dizem que há uma música portuguesa antes de José Afonso e outra depois dele.
"É um homem com quem podemos fazer como com Jesus Cristo, e dizer 'há uma canção portuguesa antes do Zeca e uma canção portuguesa depois do Zeca'", afirma Rui Pato, que, aos 16 anos, começou a acompanhar José Afonso, em Coimbra.
O médico recorda-o com saudade e diz que gostaria de poder voltar a estar com ele "na ilha do Farol, completamente deserta", a ensaiar "No largo do breu", como outrora.
De voz embargada, Rui Pato recorda "um homem simples, com muito bom humor". "Um homem muito humilde, muito solidário", sem defeito absolutamente nenhum, "um homem de uma grande generosidade, com uma enorme vontade de viver", disse à agência Lusa.
José Jorge Letria percorreu quilómetros a cantar com José Afonso, em coletividades, cooperativas, sessões de esclarecimento, em que o cantor fazia sempre questão de participar, sem qualquer remuneração.
É a "grandeza de José Afonso" que marca a sua memória. "Era um homem generoso, solidário, valente. Um homem corajoso, um sonhador combativo, um homem da utopia que não se perdia na ilusão, porque acreditava que o que estava para vir devia ser acelerado, precipitado, para ficar à nossa vista em tempo útil", recorda o atual presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), que escreveu "Zeca Afonso - O que faz falta, uma memória plural".
O lugar de José Afonso "nunca mais foi ou será preenchido por ninguém", prossegue. "Digo isto com um caráter muito maximalista, porque não há ninguém que cante e faça textos e comunique como ele comunicava".
Letria sublinha ainda "a competência, a eficácia, o brilho e a luminosidade" da obra de José Afonso, acrescentando a necessidade de perpetuar a memória do cantor, de reeditar a sua obra. "É preciso ter mais Zeca, mais obra do Zeca, para que as pessoas saibam o que foi o Zeca e o que valeu o Zeca", enfatiza.
Francisco Fanhais é outro dos companheiros que recorda José Afonso com saudade. Conheceu-o quando ainda era seminarista, em 1963, e tomou dele o exemplo.
"Se ele tinha família e arriscava tudo sem medo, por que razão havia eu de ficar nas encolhas e ter medo de me expressar?", pergunta o atual presidente da Associação José Afonso.
Dos tempos em que acompanhou o músico em sessões clandestinas, durante a ditadura do Estado Novo, Fanhais recorda a amizade "profunda e cúmplice", com o homem que "não se limitou a falar".
José Afonso "complementou as convicções com uma prática muito intensa, muito ativa na defesa dos valores da liberdade, dos valores da emancipação das pessoas, na defesa do poder popular, e isso é uma dimensão perfeitamente impossível de esconder" na sua obra.
Fanhais sublinha ainda que é "extremamente perigoso" querer limitar José Afonso a um cantor de intervenção, esquecendo a qualidade excecional da sua obra poética. "O Zeca disse sempre que a música é comprometida, quando o músico é comprometido".
Da saudade, Francisco Fanhais diz que tem de se fazer "uma arma", para não deixar morrer a mensagem de José Afonso e o seu valor.
Janita Salomé recorda igualmente com saudade o amigo com quem começou a cantar.
"Era um sábio", disse à Lusa, era "um homem generoso e implacável com as injustiças de caráter social", "um homem sem temor, sem medo", "um homem marginalizado, mas também respeitado".
Janita Salomé sublinha que José Afonso fez sempre com que a música acontecesse por algum motivo. Por isso, prossegue, continua a fazer "muito sentido" cantá-lo, "para que as consciências não fiquem adormecidas, para que sigamos o exemplo dele, para que façamos qualquer coisa de diferente, para que o mundo seja diferente, seja melhor".
A "genialidade da obra" de José Afonso é lembrada pelo divulgador e crítico de música Manuel Jorge Veloso, com uma carreira ligada ao jazz, baterista nos combos do Hot Club Portugal.
"José Afonso não tem só importância na qualidade de músico e compositor", que considera "extremamente importante e exemplar", mas também "como cidadão com atividade social e política, que utilizou a arte para se expressar, para defender ideias que são extremamente nobres e que têm a ver com a situação das pessoas, a liberdade, a democracia", afirma.
Manuel Jorge Veloso, violinista e compositor de formação, destaca a "grande qualidade" da obra de José Afonso, "em termos harmónicos e melódicos", não se deixando enganar pela aparente simplicidade da sua música. Há mesmo "meia dúzia de discos" que são perfeitas "obras-primas", assegura.
Se tivesse de levar uma canção para uma ilha deserta, Manuel Jorge Veloso não hesitaria: "Era um redondo vocábulo", porque é "uma verdadeira obra-prima, com um bom gosto literário e poético, difíceis de ultrapassar".
Esta noção da obra, da dádiva que transporta, também está presente na memória de Sérgio Godinho. “O Zeca era uma pessoa que me estimulava imenso a fazer as minhas próprias coisas. Quando saía um disco do Zeca apetecia-me compor, mas não coisas à maneira do Zeca, como cheguei a fazer antes de encontrar a minha voz criativa, mas as minhas próprias coisas. E este estímulo é que eu acho que é a coisa mais importante - quando os objetos culturais nos vão dar qualquer coisa”.
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