"Olá, eu sou o Chris Hadfield e estive algum tempo em isolamento a bordo de uma nave espacial. Como é tu estás a lidar com o isolamento?"
É assim que começa o vídeo partilhado a 21 de março pelo astronauta canadiano que ao fim de 21 anos de carreira e três missões espaciais pendurou as chuteiras (ou o capacete, neste caso).
(Talvez conheça Chris Hadfield por causa da sua famosa versão da canção "Space Oddity" de David Bowie — o vídeo foi gravado em 2012, quando este estava a bordo da Estação Espacial Internacional, e as licenças negociadas com Bowie, a NASA e as agências espaciais canadiana e russa eram para um ano, mas o vídeo aqui continua).
Hadfield sabe bem o que é lidar com o isolamento. Ele e o norte-americano Scott Kelly, um astronauta reformando da NASA que esteve quase um ano a bordo da Estação Espacial Internacional e que escreveu para o The New York Times, curiosamente no mesmo dia.
Ambos partilham aquilo que o Espaço os ensinou sobre como lidar com períodos de quarentena. Não é mais do que uma mão-cheia de regras (ou dicas) para manter a mente sã numa altura em que muitos estão fechados em casa — voluntariamente ou por indicação das autoridades de saúde — para travar a propagação do novo coronavírus, o covid-19.
Por Chris Hadfield
"Sabem, o contexto ambiental é extremamente perigoso a bordo de uma nave espacial e ainda assim encontramos forma de ter sucesso e ser produtivos — mesmo estando muito longe daquilo que é a nossa vida normal. Fazemo-lo através de quatro estratégias diferentes". Aqui vão elas:
1. Conhece o teu inimigo
O primeiro ponto da estratégia de Hadfield passa por estar ciente do risco que se está a correr. "Não te limites a ter medo das coisas. Procura uma fonte credível e procura entender qual o risco real do que estás a enfrentar neste momento — tu, a tua família, os teus amigos, as pessoas com quem te preocupas", diz o astronauta.
2. Qual é a tua missão?
O segundo passo é definir objetivos: "Procura perceber o que estás a tentar alcançar, quais são os teus objetivos, qual é a tua missão para agora. Torna isso claro, seja para esta tarde, seja para esta semana ou para o próximo mês. O que é que queres concretizar?"
3. Percebe o que te limita
Podemos querer fazer tudo, mas nem tudo é possível, nota Chris: "Depois olha para os teus constrangimentos. Quem é que te está a dizer o que precisas de fazer? Que recursos financeiros tens? Quais são as tuas obrigações?"
4. Age
"Quando percebes qual é o risco, qual é a tua missão e quais são as tuas obrigações, então age. Começa a fazer coisas. Não precisam de ser as coisas que sempre fizeste. Toma conta da família, começa um novo projeto, aprende a tocar guitarra, estuda outra língua, lê um livro, escreve, cria. É uma oportunidade de fazer algo diferente que nunca fizeste antes".
5. Repete
Uma vez concluídos os quatro passos, só há uma coisa a fazer: "Depois, repete", aconselha o astronauta.
E não há melhor momento para viver o isolamento em terra, diz Chris Hadfield: "Se achas que foste exposto ao covid-19, se estiveste demasiado próximo das pessoas, então isola-te. E se tiveres sintomas, dores de garganta, febre ou tosse consulta as autoridades de saúde. Mas nunca houve um tempo tão bom para o auto-isolamento. Tantas pessoas têm acesso à Internet, temos à disposição tudo o que já foi escrito, todo o conhecimento, na ponta dos dedos", salienta.
"Então, tomem conta de vocês, tomem conta da vossa família e dos vossos amigos... tomem conta da vossa nave espacial e desejo-vos a todos aterragens felizes", concluiu.
Por Scott Kelly
"Estar fechado em casa pode ser desafiante. Quando vivi na Estação Espacial Internacional por quase um ano, não foi fácil. Quando ia dormir estava no trabalho, quando acordava estava no trabalho. Uma missão espacial deve ser o único emprego do qual não podes mesmo desistir", começa por contar o astronauta norte-americano.
Mas a experiência deu-lhe ferramentas. Assim, "aqui vão algumas dicas para viver em isolamento — de alguém que já teve de o fazer".
1. Segue um horário
"O meu horário na estação espacial era muito apertado — desde o momento em que acordava até que ia dormir. Às vezes isso envolvia passeios espaciais que podiam durar até oito horas, outras vezes podiam ser tarefas de cinco minutos". Segundo Scott Kelly, "vais perceber que manter um horário te vai ajudar, a ti e à tua família, a ajustarem-se a um ambiente diferente de trabalho e de vida familiar". Aliás, para o astronauta, depois do regresso à Terra, viver com rotinas menos firmes não foi fácil, confessa.
2. Gere o teu tempo
"Quando estás a viver e a trabalhar no mesmo local dias seguidos, o trabalho consegue tomar conta de tudo se o deixares. Ao viver no Espaço eu deliberadamente fiz uma gestão do meu tempo porque sabia que ia lá ficar por um período longo — tal como acontece connosco agora. Então, tira tempo para atividades divertidas: eu encontrei-me com colegas para noites de cinema, com snacks e tudo, e vi a Guerra dos Tronos de seguida — duas vezes", conta o astronauta.
Nesta gestão de tempo, diz ainda, incluí-se a hora de dormir — nada de andar a fazer noitadas e trocar a noite pelo dia. "Os cientistas da NASA monitorizam as horas de sono de um astronauta quando ele está no Espaço e descobriram que a qualidade do sono está diretamente ligada à capacidade cognitiva, ao humor e às relações interpessoais — tudo coisas essenciais para aguentar uma missão no Espaço ou uma quarentena em casa", diz Scott Kelly.
3. Vai apanhar ar (sozinho e por curtos períodos de tempo)
"Uma das coisas que mais senti falta enquanto vivia no Espaço foi a possibilidade de ir à rua e aproveitar a natureza. Depois de meses confinado num espaço pequeno, comecei a ansiar pela natureza", conta Scott Kelly. "Os meus colegas gostavam de passar sons da Terra que estavam gravados, como pássaros, o farfalhar das árvores e até o barulho dos mosquitos".
Todavia, "para um astronauta ir ao exterior é perigoso e requer dias de preparação, então aprecio o facto de na nossa situação atual podermos ir à rua em qualquer momento — sem precisar de um fato espacial", diz o astronauta, deixando porém a reserva: "mas fica a dois menos dos outros".
De referir que em Portugal o decreto do Governo que concretiza as medidas do estado de emergência devido à pandemia de Covid-19 estabelece “o dever geral de recolhimento domiciliário”. Isto significa que a generalidade das pessoas deve evitar sair de casa para lá do necessário.
Assim, as deslocações para fora do domicilio (ou da nave espacial, só para manter aqui o paralelismo) são possíveis para trabalhar, procurar emprego ou responder a uma oferta de trabalho, por motivos de saúde, para dar assistência a pessoas vulneráveis ou idosas e para acompanhar menores. Está também previsto, segundo o decreto, que se possa sair à rua para praticar atividade física, mas nunca em grupo, ou para os chamados "passeios higiénicos" que devem ser de curta duração. Deslocações aos correios, bancos, seguradoras, veterinários e para passear o cão são também outros dos motivos possíveis para sair à rua em Portugal. Todavia, para nos protegermos a nós e aos outros, a mensagem é simples: Fique em casa e saia apenas para o estritamente necessário. E se sair, respeite o distanciamento social.
4. Arranja um hobby
"Quando estás no Espaço precisas de um passatempo que não é trabalho ou a manutenção do local onde vives e trabalhas", diz Scott Kelly. No seu caso levou livros para a estação espacial. Mas há outras opções, como aprender ou praticar um instrumento musical ou fazer trabalhos manuais. O norte-americano chega mesmo a dar o exemplo de Chris Hadfield e a sua cover do Space Oddity de 2012.
5. Mantém um diário
Diário, jornal, agenda. Escrever, no fundo — para mais tarde recordar ou só para colocar tudo em perspetiva. "A NASA tem vindo a estudar os efeitos do isolamento nos humanos há décadas e uma das descobertas mais surpreendentes foi sobre o valor de manter um diário. Durante as minhas missões tirei tempo para escrever sobre a minha experiência quase todos os dias". E a ideia, explica, não é fazer um apanhado do que se fez naquele dia — o que se pode relevar repetitivo, mas antes escrever sobre o que se está a experienciar ou mesmo sobre memórias. "Isso vai ajudar a colocar as tuas experiências em perspetiva e vai-te permitir recordar um momento único na história e o que ele significou", explica.
6. Tira tempo para estar em contacto com os outros
Scott Kelly conta que apesar de ser comandante na Estação Espacial Internacional nunca perdeu uma única oportunidade que teve para falar com a família e amigos por videoconferência. "Os cientistas descobriram que o isolamento não apenas danifica a tua saúde mental como a tua saúde física, especialmente o teu sistema imunitário", conta. Então a tecnologia dá uma ajuda para que nos sintamos menos sozinhos.
7. Ouve os peritos
"No espaço descobri que a maior parte dos problemas não são "rocket science" [tão difíceis como ciência espacial], mas quando são procura-se um especialista. Viver no Espaço ensinou-me a importância de confiar nos conselhos das pessoas que sabem mais sobre um assunto do que eu sei", partilha o astronauta.
No entanto, e remetendo para a situação atual, deixa um alerta: "as redes sociais e outras fontes pouco confiáveis podem ser veículos de desinformação com a mesma facilidade com que apertos de mão transmitem vírus".
Em Portugal é de referir que a Direção-Geral de Saúde disponibilizou um site sobre o novo coronavírus onde pode acompanhar a evolução do surto no país, ver várias perguntas respondidas e até ler alguns desmentidos e esclarecimentos sobre informações que andam a circular e que não se relevam verdadeiras. Com imensa informação a circular, sobretudo nas várias redes sociais a que estamos ligados, é fundamental ter um olhar crítico sobre a informação aquilo que nos chega a cada momento. Tente manter-se informado através de canais de referência e fontes oficiais.
8. Estamos todos ligados
"Vista do Espaço a Terra não tem fronteiras. A propagação do coronavírus está a mostrar-nos que aquilo que partilhamos é muito mais poderoso do que aquilo que nos separa, para o melhor e para o pior. Todas as pessoas estão inevitavelmente ligadas e quanto mais nos unirmos para resolver os nossos problemas, melhor ficaremos todos", escreve Scott Kelly numa nota final.
"Vi humanos a trabalhar em conjunto para prevalecer sobre alguns dos maiores desafios imagináveis e sei que podemos prevalecer sobre este se todos fizermos a nossa parte e trabalharmos juntos como equipa. Ah, e lavem as mãos — frequentemente".
Comentários