As dúvidas sobre a durabilidade e a credibilidade externa deste XXI Governo constitucional - minoritário do PS e suportado no parlamento também por Bloco de Esquerda, PCP e PEV - estiveram bem presentes logo no discurso proferido pelo então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, na cerimónia da sua posse, no final de novembro 2015.

Cavaco Silva considerou que os acordos subscritos por PS, BE, PCP e PEV não dissipavam dúvidas quanto à estabilidade política e advertiu que, durante os últimos meses do seu mandato, tudo faria para que Portugal preservasse a "credibilidade e mantivesse uma trajetória de crescimento".

Dois anos depois, de acordo com a generalidade das previsões económicas, Portugal prepara-se para fechar 2017 com um défice de 1,4% (abaixo do limite de 3% do pacto de estabilidade e dos 2% registados em 2016), com um crescimento económico na ordem dos 2,6% e um desemprego a cair sucessivamente até aos 8,5% verificados no terceiro trimestre deste ano.

Ainda no plano financeiro, nos mercados internacionais, os juros da dívida portuguesa a 10 anos (o valor de referência) caíram para níveis históricos mínimos desde a adesão de Portugal à moeda única, de menos de 2%, o que tem conferido alguma margem de segurança na gestão de uma dívida pública ainda muito elevada, na ordem dos 129% do Produto Interno Bruto (PIB).

Dois anos de Governo. Os altos e baixos da relação entre Marcelo e Costa
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No segundo semestre deste ano, a agência de notação financeira Standard & Poor's juntou-se à DBRS colocando a dívida de Portugal num nível de investimento fora chamado "lixo".

Desde 2015, o Governo ultrapassou uma série de graves problemas financeiros no setor da banca: Primeiro, no início de 2016, com uma controversa venda de urgência do Banif ao Santander por 150 milhões de euros; no começo de 2017 com a injeção de cerca de 3,9 mil milhões de euros na Caixa Geral de Depósitos (CGD); e, mais recentemente, com a aquisição de 75% do capital do Novo Banco pelo fundo norte-americano Lone Star, que se comprometeu a injetar mil milhões de euros nesta instituição financeira resultante da falência do Banco Espírito Santo (BES).

Mais surpreendente para a generalidade dos analistas financeiros é que, nestes dois anos, os resultados de consolidação financeira foram obtidos a par de medidas orçamentais teoricamente tendentes a um aumento da despesa e a uma redução das receitas fiscais, como a eliminação faseada dos cortes salariais na administração pública e da sobretaxa em sede de IRS, da descida do IVA da restauração de 23 para 13% ou o aumento da generalidade das pensões em 2017.

créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

Medidas que inicialmente provocaram sérias dúvidas junto da Comissão Europeia sobre a capacidade de o país garantir por esse caminho os seus compromissos internacionais ao nível financeiro e que, de resto, estiveram na origem de um longo braço-de-ferro entre Lisboa e Bruxelas, no primeiro trimestre de 2016, para a aceitação do primeiro Orçamento deste Governo.

Na frente externa, o Governo português, designadamente no seu primeiro ano, escapou à aplicação de sanções por parte da União Europeia e saiu formalmente no início deste ano do Procedimento por Défice Excessivo.

Do ponto de vista social, em resultado do impacto da política de reposição de rendimentos, o primeiro ano e meio do executivo foi marcado por uma redução do nível de conflitualidade, mas recentemente surgiram sinais de inversão deste clima, com protestos e greves em setores como o dos enfermeiros, médicos, professores e forças de segurança.

O descongelamento das carreiras da administração pública incluído na proposta de Orçamento do Estado para 2018 teve o efeito de provocar reivindicações acrescidas por parte de classes profissionais do setor público como os professores, os militares, polícias e juízes.

Verão de pesadelo

Superados os obstáculos financeiros, as maiores dificuldades para o Governo surgiram a partir deste verão, com o desaparecimento de armas da base militar de Tancos e, sobretudo, com os trágicos incêndios florestais registados, primeiro, em junho em Pedrógão Grande (Leiria) e, depois, em outubro, em dezenas de municípios da zona centro do país.

Em conjunto, os incêndios de junho e outubro provocaram mais de uma centena de mortos e prejuízos materiais na ordem das centenas de milhões de euros em empresas e casas de primeira habitação que arderam nesses fogos.

Estes casos motivaram um coro generalizado de críticas sobre a incapacidade dos serviços do Estado de darem elementares garantias de segurança nacional (no caso de Tancos) e de protegerem os cidadãos contra os fogos nas zonas florestais do país.

Ainda com as trágicas consequências do incêndio de junho em Pedrógão Grande bem presentes, nos dias 15 e 16 de outubro Portugal assistiu a uma nova vaga de fogos na zona centro do país, que causou novamente dezenas de mortos e elevados prejuízos materiais.

A repetição do fenómeno motivou, no plano político, uma moção de censura apresentada pelo CDS-PP ao Governo no parlamento, apoiada pelo PSD, que viria a ser chumbada pela maioria de esquerda.

Contudo, na sequência destas tragédias a maior mudança registou-se ao nível das relações institucionais entre o Governo e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, até aí classificadas como pacíficas.

Numa comunicação ao país feita a 17 de outubro a partir de Oliveira do Hospital (distrito de Coimbra), o Presidente da República advertiu que usará todos os seus poderes contra a fragilidade do Estado que considerou existir face aos incêndios e defendeu que se justificava um pedido de desculpa por parte do Governo.

Marcelo Rebelo de Sousa defendeu ainda que é preciso "abrir um novo ciclo", na sequência dos incêndios e que isso "inevitavelmente obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando melhor serve esse ciclo" - o que alguns leram como uma alusão à necessidade de uma recomposição do executivo do PS, que se concretizaria dois dias depois com a demissão da então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa.

O Governo fez saber, por fonte anónima, através do jornal Público, que tinha ficado "chocado" com o teor da declaração ao país do Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa contrapôs que "chocado ficou o país" com a dimensão e as consequências trágicas dos incêndios.

créditos: JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Sob pressão política, o primeiro-ministro, António Costa, em sucessivas intervenções públicas, prometeu que "nada ficará como antes" ao nível dos sistemas de prevenção e combate aos incêndios.

No passado dia 21 de outubro, em Conselho de Ministros extraordinário, o Governo tomou medidas para acelerar a reforma da floresta, o pagamento de indeminizações às vítimas dos incêndios por uma via extrajudicial e para proceder à reconstrução das áreas atingidas pelos fogos.

Em termos de médio prazo, o Governo criou também uma estrutura de missão para uma revisão global nos próximos meses dos sistemas de prevenção e de combate aos incêndios florestais.

Nestes dois anos, foram poucas as mudanças introduzidas na equipa de Governo inicialmente formada por António Costa.

A maior mudança ocorreu em julho passado como consequência da decisão do Ministério Público de abrir processos contra os secretários de Estado para a Internacionalização (Jorge Oliveira), Assuntos Fiscais (Fernando Rocha Andrade) e da Indústria (João Vasconcelos) que tinham viajado pagos pela petrolífera Galp para assistirem a jogos da seleção portuguesa no Euro 2016 em França.

António Costa aproveitou então a ocasião para mexer em oito secretarias de Estado de cinco ministérios: Negócios Estrangeiros, Presidência e Modernização Administrativa, Finanças, Economia, e Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.

Aumenta a pressão sobre Costa

Após dois anos de estabilidade governativa que surpreendeu, politólogos contactados pela Lusa antecipam um final de legislatura mais difícil devido à pressão dos parceiros de ‘geringonça’, à relação mais tensa com Belém e à nova liderança do PSD.

Em declarações à agência Lusa, os politólogos António Costa Pinto (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) e André Azevedo Alves (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) são unânimes a destacar que a durabilidade e estabilidade da ‘geringonça’ superou as expetativas nestes primeiros dois anos e ambos antecipam tempos “mais difíceis” para o primeiro-ministro no resto do mandato.

Para António Costa Pinto, “o balanço das autárquicas aponta para dimensões muito mais reivindicativas dos partidos mais à esquerda, sobretudo do PCP” e, à medida que as eleições legislativas de 2019 se aproximam, “a principal preocupação do PCP e BE é manter o seu eleitorado, que muitas vezes conquistaram em protesto contra o PS”.

“Não só será mais difícil manter este tipo de acordos políticos, como perante o eventual abrandamento do crescimento português ou de eventuais subidas das taxas de juro será muito mais difícil ao Governo acomodar este tipo de reivindicações”, alerta.

Na mesma linha de pensamento, André Azevedo Alves evidencia que à medida que se aproxima o horizonte dos quatro anos de legislatura, PCP e BE “vão tendo cada vez mais incentivos e necessidade” de justificar o porquê do seu eleitorado votar neles e “não simplesmente dar uma maioria absoluta ao PS”.

“No limite, António Costa pode ver-se pressionado por três lados: pelos seus parceiros no parlamento, por uma nova liderança do PSD - se essa se conseguir afirmar – e, ainda, se estas duas condições se verificarem, mais pressionado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que fazendo esta leitura política da situação, se sinta mais motivado a ter uma postura mais interventiva”, sintetiza.

O crescente aumento de popularidade e centralidade de Marcelo Rebelo de Sousa e o seu reforço de poderes são indicadores que ambos os especialistas destacam, especialmente depois do discurso do Presidente da República que, após os incêndios trágicos de outubro, levou à demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa.

créditos: SENA GOULAO/LUSA

André Azevedo Alves sublinha que, na sequência da tragédia dos incêndios do verão, foi a primeira vez que, “pelo menos publicamente, surgiram focos de tensão significativa” entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, um momento de “clivagem forte” que, na opinião deste professor, “foi uma demonstração de força” do chefe de Estado.

“Quanto mais sólido for o entendimento entre PS, BE e PCP também provavelmente menor margem e menor inclinação terá Marcelo Rebelo de Sousa a ser mais interventivo. Se começar a haver muitos sinais de possível instabilidade, aí terá uma tendência a mais rapidamente atuar”, antecipa.

Já António Costa Pinto considera que o Governo vai depender fundamentalmente “da conjuntura económica e da capacidade de manter as alianças à esquerda”.

“O Presidente da República, perante uma eventual degradação do atual contexto económico e uma maior pressão reivindicativa sobre o Governo dos partidos à sua esquerda, evidentemente terá relações mais tensas com o executivo”, antevê.

A mudança de liderança do PSD é outra variável que poderá dificultar a vida a António Costa, considerando Costa Pinto que “este acordo à esquerda só foi possível com a ameaça da continuação do poder de Passos Coelho e agora esse inimigo desapareceu”.

Questionados sobre a possibilidade de uma 'geringonça' se repetir após as eleições legislativas de 2019, os politólogos deixam essa hipótese em aberto, uma vez que depois do tabu deste acordo à esquerda ter sido ultrapassado, tudo depende dos resultados eleitorais de cada um dos partidos, numa altura em que há “uma grande incerteza nas atitudes à esquerda no espetro político”.