Diário de um pai em casa. Dia 36


Sempre tive cães. Desde criança. Uns apanhados na rua, oferecidos ou que não cumprem o pedigree. Gosto de cães. Especialmente se se comportarem como gatos. Isto é, três festas, três bolas lançadas, mais uma festa e vai para o teu canto.

Tenho duas cadelas. Temos. A família tem. Não são dois amores de peluche, nem duas extensões de seres humanos. São duas cadelas. Ponto. Tratadas como uma relação ser humano-animal de estimação exige.

Temos uma podengo anã e a outra com traços de Beagle. Têm nome. A “Sete”, por ser o sétimo ser vivo de uma família de seis, e a “Skye”, da série “Patrulha Pata”. Garanto, antecipadamente, que não há dedo meu na certidão de batismo que reveste a forma de chip nas orelhas.

Em tempo de confinamento, escutado o que estava e não estava permitido fazer, poderiam servir de perfeito álibi para um passeio na rua, pelo menos, duas vezes ao dia. Ou quatro, se as separasse no propósito. Mas não. Elas já vivem na rua. E nunca conheceram outro habitat. Passo a explicar.

Habitam no quintal do prédio. Espaço amplo, que se divide entre uma parte coberta, que passa por debaixo do imóvel, e outra a descoberto. Apesar de terem à disposição uma casota, na parte coberta, preferem dormir com a cara encostada à porta que dá acesso à rua. É lá que ficam sempre à espera de pressentir a família sair e a chegar a casa.

Conhecem bem os termos: confinamento, distanciamento social e rede sanitária. Muito antes de entrarem, à bruta, no nosso léxico, por causa da covid-19.

Vivem separadas de nós por quatro lanços de escadas. O acesso às subidas e descidas pelas escadas traseiras está vedado por uma cancela (palete) de madeira. A razão é simples. Evito, desta forma, ter de andar, diariamente, de esfregona e pá, a limpar.

Mas não escapo a limpezas de xixi e cocó. É que vivem na “rua”, não vão à rua. A vida delas resume-se ali. As quatro estações do ano. A rua é meio caminho andado para o veterinário. Não sabem que raças de cães existem, porque não necessitam de conviver com outras raças. Bastam-se a sim mesmas. Melhores amigas para sempre.

Obviamente, vivem sós sempre acompanhadas e visitadas, pelo menos por um de nós. No meu caso, diria que quase todos os dias do ano as visito. Sim, porque embora qualquer criança gostasse de ter um cão, sabemos, muito bem, quem trata dele.

Todos os dias espreito do parapeito das escadas o modus vivendi que levam. Visito-as e alimento-as de sábado a sábado. Com reforço da afetividade ao fim de semana. Uma tarefa à qual é chamada o agregado familiar.

Quando começou o Estado de Emergência, decidimos abrir fronteiras. O quintal, por vezes, zona de ninguém e reservado a intermitentes brincadeiras, pontapés na bola e festas de anos, passou a ser zona partilhada diariamente. Pessoas e cães.

E, de repente, as cadelas, vivem, literalmente, aos nossos pés. E, em vez de um de nós ir até elas, mal começa o dia, já estão à nossa porta. Da cozinha.

Interagimos. Relacionamo-nos. Uma relação que reveste a forma de alimentação às escondidas, com um constante abre e fecha da porta. Que melhor prazer pode ter uma criança que levar uma lambidela nas mãos enquanto acrescenta uma bolacha à dieta.

O António, que estreou o equipamento da seleção inglesa (a minha preferida, diga-se de passagem) joga à bola e trata da ração. A Teresinha fala com cada uma delas, enquanto atira bolas de ténis, que a Skye meticulosamente apanha e traz de volta; a Francisca afaga-lhes as orelhas enquanto apanha sol e o Zé Maria, que trata de limpar o quintal, gostava mesmo era de ir passeá-las à rua, o que, invariavelmente, não acontece.

Na verdade, as nossas cadelas têm a sorte de ter espaço onde passear, fazer exercício físico, apanhar sol e ter companhia. E logo de quatro crianças e dois adultos. E nós temos a imensa sorte de não ter a obrigação de as levar à rua.

Por isso, a covid-19, para elas, apenas teve o efeito de terem mais companhia. Hoje, com direito a ração, bolachas e ossos de frango. E. para nós, é mais uma oportunidade de fazer exercício físico, neste sobe e desce que o convívio exige.