Os incêndios mais problemáticos deste ano lavraram, sobretudo, nos distritos de Viseu, Aveiro, Porto, Vila Real e Braga, tendo as chamas consumido florestas, casas, empresas, terrenos, veículos, etc, levando mesmo ao corte de autoestradas, estradas, ferrovias e ainda escolas.
Em seis dias, de 15 a 20 de setembro, os incêndios florestais consumiram cerca de 135.000 hectares, a área ardida em Portugal, em 2024, foi quase 147.000 hectares, a terceira maior da década, segundo o sistema europeu Copernicus.
As zonas mais afetadas pelos fogos foram a região de Viseu Dão Lafões, com uma área consumida pelas chamas superior a 52.000 hectares, Tâmega e Sousa (mais de 25.000 hectares) e Região de Aveiro (mais de 24.000 hectares), de acordo com o sistema europeu de observação da Terra Copernicus, que recorre a imagens de satélite com resolução espacial a 20 metros e 250 metros.
Numa semana, o país passou dos melhores valores de área ardida da década, para o terceiro pior desde 2014, sendo apenas ultrapassado em 2017 (563.000 hectares) e 2016 (165.000).
Houve críticas, tal como todos os anos, sobretudo por causa às mortes, nove neste caso. E quando alguém perde a vida devido aos incêndios são muitos os que se recordam do que aconteceu em 2017, naqueles que foram os fogos mais trágicos em Portugal até à data com mais de 100 mortos.
Nas críticas estão subjacentes várias questões, nomeadamente questionar o que foi feito até agora para prevenir incêndios e tragédias desde 2017. Em conversa com o SAPO24, Filipa Silva, da Associação ZERO, fez um balanço disso mesmo.
"A partir de 2017, Portugal criou uma entidade pública especializada na matéria - a Agência para a Gestão Integrada do Fogos Rurais (AGIF) - e, em paralelo, foi criado o Programa Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, o qual por sua vez deu origem a um instrumento de carácter operacional - Programa Nacional de Ação - que contém 97 projetos orientados para a produção de resultados que são monitorizados anualmente, apostando-se na valorização dos espaços rurais, na modificação de comportamentos e na gestão eficiente do risco", começou por dizer Filipa Silva, Policy Officer da ZERO, acrescentando que depois dessas medidas, os "resultados começaram a aparecer".
"A título de exemplo, e de acordo com dados da AGIF, em 2017, 80% do investimento era feito no combate, sendo que este valor foi sendo reduzido gradualmente até 39% em 2022, com a prevenção a representar 61% nesse mesmo ano (em 2017 era de 20% do total do investimento). Houve igualmente uma redução em cerca de 50% do número de incêndios, incluindo nos dias com piores condições meteorológicas, houve também uma redução significativa de grandes incêndios (500 hectares ou mais) e registou-se uma diminuição dos incêndios por (mau) uso do fogo nos meses de verão", salientou.
"99% das ignições têm origem humana, com a percentagem de ignições intencionais a ser superior face às negligentes quando estamos em presença de grandes incêndios"Filipa Silva, Policy Officer da ZERO
Resultados mais positivos, então, mas a verdade é que nem todas as medidas têm servido para que as tais críticas da população não surjam. A ZERO diz também que o que se conseguiu até agora "não é suficiente para travar este flagelo". Então, o que falta?
"Em primeiro lugar, falta a criação de quadro de investimento que permita transformar a paisagem nas próximas décadas, uma vez que o desenvolvimento das espécies arbóreas autóctones não se compadece com visões de curto prazo. Na nossa opinião, necessitamos mesmo de definir um pacto intergeracional blindado contra a instabilidade das políticas públicas que assegure coerência, transparência e previsibilidade em tudo que façamos daqui em diante", dizem, acrescentando outra medida necessária na visão da Associação.
"Falta também uma estratégia suficientemente robusta para reduzir as ignições. Tendo em conta que não existem fogos sem ignições - alguém tem que criar condições para que o incêndio ocorra -, é importante que nos consciencializemos que os fogos rurais são um problema social. O que sabemos é que 99% das ignições têm origem humana, com a percentagem de ignições intencionais a ser superior face às negligentes quando estamos em presença de grandes incêndios", revelou, assinalando depois que algumas destas ignições podem ter causas de saúde mental.
"Pese embora não existam números finais para 2024, e que os números que constam nos últimos relatórios da AGIF mostrem que existe uma tendência de redução do número de ignições entre os períodos de 2007-2017 para o período 2018-2022 - média de 22 217 para 10 264 - e do número médio de ignições nos dias de maior perigo de incêndio que passou de 76 para 38, respetivamente, os dados mostram que os portugueses continuam a ter uma má relação com o fogo que tem que ser solucionada sem hesitações. É mesmo possível que muitos dos incêndios intencionais possam estar associados a problemas de saúde mental, com a agravante de esta ser uma área de trabalho absolutamente crítica em que, até ao momento, não existe qualquer trabalho a assinalar. Já ao nível da gestão dos sobrantes agrícolas e florestais, muito há a fazer para passarmos do uso e abuso das queimas e passarmos a dar preferência à compostagem, num momento que necessitamos destes resíduos para nos auxiliarem na gestão dos resíduos orgânicos produzidos na nossas casas", refere Filipa Silva.
Outra questão que aponta como necessária para a prevenção de incêndios são os incentivos financeiros e dá mesmo alguns exemplos.
"Faltam, sim. Nomeadamente para promover ativamente uma gestão colaborativa que tente resolver o problema do minifúndio omnipresente principalmente a norte do rio Tejo. A título de exemplo, não existem suficientes incentivos para que os pequenos proprietários se agrupem para gerir coletivamente a miríade de prédios rústicos de reduzida dimensão que se possa traduzir num aumento, ainda que numa lógica condominial, da dimensão física dos prédios rústicos em contexto de minifúndio e, assim, aumentar a viabilidade e sustentabilidade económica, social e ambiental. A mesma deveria ser complementada com a promoção das espécies autóctones e com o pagamento dos serviços de ecossistemas que são os benefícios que a floresta fornece ao conjunto da sociedade. Por outro lado, necessitamos de uma floresta industrial devidamente cuidada e que seja solucionado o passivo ambiental criado com a instalação de plantações de eucaliptos nas últimas décadas, uma vez que se estimam existir cerca de 400 mil hectares de eucaliptais abandonados, improdutivos ou inadequadamente instalados", salienta.
"É mesmo possível que muitos dos incêndios intencionais possam estar associados a problemas de saúde mental, com a agravante de esta ser uma área de trabalho absolutamente crítica em que, até ao momento, não existe qualquer trabalho a assinalar"
A quarta medida avançada pela Associação ZERO diz respeito a um rendimento fixo para quem trabalha em "territórios vulneráveis".
"Falta criar um apoio para a dignificação de quem comprovadamente faz agricultura nos territórios vulneráveis e promove o mosaico agro-florestal, o que poderia passar por uma espécie de rendimento fixo, um complemento de discriminação positiva, que fosse acumulável com outros subsídios, materializando uma verdadeira política pública de valorização do interior que tarda em passar das palavras aos atos", assinalou a Policy Officer da ZERO.
A redundância da equipa de investigação criada pelo governo
Poucos dias após o início destes devastadores incêndios em setembro último, Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, anunciou a criação de uma equipa especial de investigação. Esta envolve elementos do Ministério Público, da Polícia Judiciária e das forças de segurança e teve a sua primeira reunião no passado dia 23 de setembro.
De acordo com o executivo, a criação desta equipa visa "determinar o reforço dos meios e da atividade de investigação criminal e ação penal em matéria de crimes relativos a incêndios".
Uma nova medida que trará resultados? "Redundante", diz a Associação ZERO.
"Em nossa opinião é uma medida redundante, já que existe um grupo de trabalho de redução de ignições, composto pela PJ, GNR e Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que desenvolveram ações ao nível da investigação local de causas de incêndios, dissuasão e sensibilização junto das comunidades locais. O que falta mesmo é dar mais atenção à reinserção das pessoas que cumpriram penas por crime de incêndio florestal e ao acompanhamento e tratamento de pessoas que necessitam de apoio ao nível da saúde mental, muitas vezes com quadros de comportamentos aditivos e dependências, o que só se pode concretizar com a criação de equipas especializadas para o efeito", diz, referindo logo depois que a profissionalização dos bombeiros não seria também suficiente para travar os incêndios.
"Daquilo que sabemos o problema não está nos meios de combate ou na criação de mais equipas de bombeiros profissionais. O que necessitamos é de implementar de forma inequívoca o definido no Plano Nacional de Ação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. Ainda que com pequenos ajustes aqui ou ali no referido plano, valorizar os espaços rurais, modificar os comportamentos e gerir eficientemente o risco devem ser as apostas dos atuais e dos futuros governantes evitando a tentação de estar constantemente a alterar as orientações das políticas públicas. Como já referi, mais do que tudo o resto, necessitamos de trabalhar a reinserção das pessoas que cumpriram penas por crime de incêndio florestal e ao acompanhar de perto e tratar as pessoas que necessitam de apoio ao nível da saúde mental, muitas vezes com quadros de comportamentos aditivos e dependências. Noutro âmbito, seria muitíssimo importante que existisse um pacto entre os meios de comunicação social que cobrem os incêndios para que haja contenção relativamente à passagem de imagens onde o fogo predomina, por forma a prevenir comportamentos impulsivos em pessoas que possuam perturbações do foro mental, caracterizadas pelo desejo e fascínio por atearem fogos", salientou.
"O que falta mesmo é dar mais atenção à reinserção das pessoas que cumpriram penas por crime de incêndio florestal e ao acompanhamento e tratamento de pessoas que necessitam de apoio ao nível da saúde mental, muitas vezes com quadros de comportamentos aditivos e dependências, o que só se pode concretizar com a criação de equipas especializadas para o efeito"
Filipa Silva foi também convidada pelo SAPO24 a fazer uma avaliação do trabalho feito pelos últimos governos no que diz respeito a este tema. Deixou alguns elogios, mas também críticas.
"A criação da AGIF foi importante, e começou-se a investir muito mais na prevenção do que no combate, o que a nosso ver é muito positivo. Foi também criado o Programa de transformação da paisagem dirigido a territórios de floresta com elevada perigosidade de incêndio. Contudo, a política pública assenta no paradoxo de olharmos excessivamente para a acumulação de combustível e não estamos a olhar adequadamente para o problema do elevado número de ignições, em particular para a o incendiarismo", abordou, confessando também que "todas as nossas preocupações e sugestões já foram partilhadas com o Senhor Secretário de Estado das Florestas, Rui Ladeira, pelo que aguardamos uma resposta clara e inequívoca em relação às propostas que tivemos a oportunidade de apresentar recentemente e que são do conhecimento público".
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