"Eu posso levar-te ao local exato, na sala dos meus pais, em Gresham, Oregon, onde me ajoelhei e fiz esta oração: 'Deus, deixa-me escrever um livro que mude o mundo'", começou por explicar Joshua Harris, numa TedTalk em 2017. Mas o aviso vem logo de seguida, com risos à mistura: "Cuidado com o que pedes!".

"Eu tinha 20 anos, era jovem, era religiosamente zeloso, tinha certezas e era inquieto e ambicioso. Juventude, zelo, certeza, ambição — não muito diferente dos ingredientes de um cocktail molotov, que tem a tendência para incendiar o mundo. E, no meu cantinho, foi exatamente o que aconteceu porque, incrivelmente, a minha oração foi atendida. Eu escrevi um livro, foi publicado e explodiu! Começou a vender, vender e vender", começa por explicar.

O livro em causa, publicado em 1997, tinha o título original I Kissed Dating Goodbye (Eu disse adeus ao namoro, na tradução em português). Vendia dezenas de milhares de cópias todos os meses, chegou aos tops das livrarias cristãs, às rádios, aos jornais e à televisão. Mas, alerta o autor, quem não fez parte "da subcultura cristã evangélica do final dos anos 90 é normal que não conheça o livro". E, se foi conhecido, há duas hipóteses: ou mudou a vida de quem o leu para melhor ou para pior.

Antes de perceber porquê, façamos um exercício. Pensemos no que é o amor. Conceito difícil, abstrato; explorado por poetas e experimentado de diversas formas. Agora pensemos na palavra namoro. Que imagem formamos na nossa cabeça? Duas pessoas juntas, próximas, cúmplices. Pois então vamos esquecer isso.

Para Joshua Harris, os jovens cristãos não deveriam "namorar por namorar". Ou seja, nada de beijos, mãos dadas, momentos a dois. Namorar é prejudicial e um campo de treino para o divórcio, defendia.

A ideia base, resumiu o próprio, é uma cadeia de ações, sustentadas na questão da fé. “Precisamos de levar a sério a nossa fé e, se a levarmos a sério, não teremos sexo até estarmos casados. E, se queremos evitá-lo, devemos mudar radicalmente o nosso estilo de vida e isso significa que devemos parar de namorar. Namorar é o problema, namorar é uma distração”.

Amplamente divulgado dentro de grupos de jovens evangélicos, o livro ajudava a promover uma "cultura de pureza" e insistia na questão de ser preservada a virgindade até ao casamento. No fim, o que importava era que cada jovem percebesse o que tinha de fazer para "estar um pouco mais perto da vontade de Deus", sem cair nos namoros habituais. 

Com o passar dos anos, Joshua tornou-se pastor da igreja Covenant Life em Gaithersburg, Maryland, e continuou a pregar as suas convicções. Mas aos poucos começou a refletir e a desconstruir ideias. A medo.

"Provavelmente a coisa da qual mais me arrependo é que havia muito medo dentro de mim que transferi para a minha escrita. O medo nunca é um bom motivo: medo de errar, medo de quebrar o coração, medo de magoar outra pessoa, medo do sexo", explicou. "Porque é que demorei tanto para ver esses problemas? Eu acho que era porque eu tinha medo de estar errado. Este livro fez-me um autor best-seller, isso deu-me uma identidade, tornou-me um pouco famoso".

Estar errado era, por isso, dizer que grande parte da vida de Joshua também tinha seguido assim. Mas a certo ponto deu-se a viragem. "O que me ajudou a começar a baixar a guarda foi, há alguns anos, quando parei de ser pastor e voltei para a escola. Eu fui para a faculdade e parei de ter de estar sempre certo sobre tudo e de defender todas essas ideias diferentes. Acabei por me tornar um aluno que estava a ouvir".

Durante esse tempo de aprendizagem, Joshua Harris foi ouvindo colegas e muitos deles começaram a partilhar histórias sobre o efeito que o livro teve. Mas um dia, no Twitter, uma mulher escreveu-lhe: "O seu livro foi usado contra mim como uma arma".

A resposta — mais uma vez a medo — foi um mero "sinto muito". "Foi uma interação humana tão simples. E essa interação levou a uma conversa, e essa conversa levou a uma amizade. Foi essa amizade que me mudou. Ela disse-me algo que nunca esquecerei: foi a primeira vez que um líder religioso reconheceu algo errado e lhe pediu desculpas".

Este episódio fez com que Joshua Harris criasse um site e convidasse as pessoas a contarem as suas histórias sobre o efeito que o livro teve nas suas vidas. "Algumas eram histórias de pessoas que tiveram uma experiência positiva, mas outras eram de cortar o coração. Outras eram de pessoas que estavam realmente zangadas e magoadas", confessa.

A grande revelação, contudo, chegou no verão passado, em julho de 2019: o autor  — que já tinha admitido estar errado — terminou o seu casamento e colocou em causa a fé que achava ter. No ano anterior Joshua tinha já pedido ao seu editor que não fossem vendidos mais exemplares do seu primeiro livro, bem como dos outros dois que se seguiram, com conteúdo semelhante.

“Não concordo mais com a ideia central de que o namoro deve ser evitado. Agora, acho que namorar pode ser uma parte saudável da vida de uma pessoa que se desenvolve de maneira relacional e aprende as qualidades que mais importam num parceiro", escreveu num comunicado, pedindo desculpas a todos os que o leram. "Para aqueles que leram o meu livro e foram mal direcionados ou influenciados sem ajuda, lamento sinceramente".

Sobre o casamento de 21 anos que chegou ao fim, fez um anúncio no Instagram. "Escrevemos para partilhar a notícia da nossa separação e de que continuaremos a nossa vida juntos como amigos. Nos últimos anos, algumas mudanças significativas ocorreram nos dois. É com sincero amor um pelo outro e compreensão pela nossa história única como casal que estamos a avançar com esta decisão. Esperamos criar um futuro generoso e solidário para nós e para os nossos três filhos incríveis nos próximos anos".

As revelações, contudo, não tinham acabado. Nove dias depois, uma nova mensagem, agora sobre a fé. "Sofri uma mudança maciça em relação à minha fé em Jesus. A frase popular para isso é 'desconstrução', a expressão bíblica é 'a cair'. Por todas as medidas que tenho para definir um cristão, eu não sou um cristão. Muitas pessoas dizem que existe uma maneira diferente de praticar a fé e eu quero continuar aberto a isso, mas não estou lá agora", começou por dizer.

"Martinho Lutero disse que toda a vida dos crentes deveria ser arrependimento. Há beleza nesse sentimento, independentemente da sua visão de Deus. Vivi em arrependimento nos últimos anos  — arrependendo-me da minha justiça própria, da minha abordagem da vida baseada no medo, dos ensinamentos dos meus livros, dos meus pontos de vista sobre as mulheres na igreja", enumerou. E continuou, acrescentando um pedido de desculpas à comunidade LGBTQ +. "Quero dizer que sinto muito pelo que ensinei nos meus livros e enquanto pastor em relação à sexualidade. Lamento ter falado contra a igualdade no casamento, por não afirmar a comunidade e o seu lugar na igreja, e pela forma como os meus escritos e palestras possam ter contribuído para uma cultura de exclusão e intolerância. Espero que me possam perdoar".

Apesar de tudo, olhando para trás, o ex-pastor considera que nem tudo foi mau no que diz respeito ao livro. "Algumas pessoas foram ajudadas pelo lembrete de que não é preciso estar num namoro para se ser uma pessoa completa. Outras tiveram ajuda a perceber que poderiam interromper um namoro e concentrar-se no desenvolvimento pessoal", frisou. Além disso, Joshua ainda considera "que muita coisa que acontece no namoro moderno pode ser realmente egoísta e prejudicial", afirmando que "parte disso precisa de ser contestado".

Nestas coisas do amor — porque é disso que se trata a história de Joshua, com todos os avanços e recuos —, é importante não ter medo das transformações. "O que é que eu preciso de aprender para não repetir os mesmos erros? Estas são perguntas difíceis de fazer, que não surgem instantaneamente. Isto requer tempo. Pensem numa lagarta. A lagarta não ganha asas num dia, instantaneamente, para se transformar numa borboleta. Uma lagarta tem de se dissolver antes de se conseguir transformar. Ela forma um casulo e, aí dentro, começa a transformar-se", exemplifica.

Hoje, Joshua Harris tem 45 anos e tem um projeto de marketing, passando pela criação de conteúdos e pelo storytelling. E tudo é fruto desta transformação. "Quando se admite que se está errado, há momentos em que se sente que se está a dissolver, que se sente a arrogância e a confiança. Podemos estar a perder relacionamentos. Podemos até perder o sentido de nós mesmos, se estivermos acostumados a basear as nossas identidades em determinadas ideias, nessa prática ou em qualquer outra coisa. Mas algo novo está a nascer, então não vale a pena apressar ou tentar saltar isso".