Os representantes de movimentos de cidadãos, eleitos para a presidência de 17 câmaras municipais nas últimas eleições autárquicas, exigem a revisão da lei eleitoral, alterada no verão passado com os votos do PSD e PS, que agora impede que o mesmo grupo independente se candidate a todos os órgãos das autarquias locais, como prevê a Constituição.
A lei recebeu diversas críticas e o PS já veio emendar a mão, garantido que um grupo de trabalho irá propor alterações para simplificar o processo de recolha de assinaturas e de candidatura de movimentos de cidadãos. Também o PAN e o CDS - que votou contra a lei no continente, mas a favor nas regiões autónomas - vieram disponibilizar-se para revogar ou alterar a lei, no sentido de esta não prejudicar a generalidade das candidaturas.
A presidente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, Ana Catarina Mendes, admitiu que a lei em causa foi votada à pressa. "A lei foi feita com uma discussão mínima, no final de julho, já no fim da sessão legislativa. As coisas são imperfeitas, nem sempre são bem feitas, e quero dizer que o Partido Socialista, nos próximos dias, apresentará uma alteração para corrigir uma situação que me parece penalizadora da vida democrática", afirmou no dia 17 de fevereiro, na Circulatura do Quadrado, na TVI.
No mesmo programa, o advogado António Lobo Xavier afirmou que "o PS e PSD sabiam muito bem ao que iam", e "quando pegamos na lista de malfeitorias feitas aos movimentos de cidadãos encontramos outras coisas absurdas e insuportáveis, nomeadamente em matéria fiscal" - ao contrário dos partidos, os independentes não estão isentos de IVA, por exemplo, como deixarão de receber subvenções do Estado, caso a atual lei se mantenha.
Depois de a lei ter sido aprovada no Parlamento, e antes de promulgada pelo presidente da República, o independente Rui Moreira, presidente da câmara do Porto, e a AMAI - Associação Nacional Movimentos Autárquicos Independentes enviaram emails para a Presidência da República a dar conta das suas "dores", mas "não valeu de nada, porque a lei foi promulgada sem qualquer anotação", conta o presidente da Associação, Aurélio Ferreira. "No dia 21 de agosto, o presidente da República estava de férias no Alvor, mas aprovou esta lei. Ele sabia, com toda a certeza, as sua implicações. Quem neste país sabe mais de leis, em termos constitucionais, que o professor Marcelo Rebelo de Sousa?", questiona.
A nova lei é "ambígua" e "discricionária", acusam os autarcas independentes. Tanto assim, que uma das vogais da Comissão Nacional de Eleições, Carla Luís, contrariou o parecer positivo da CNE, apresentando uma declaração de voto. É que, ao contrário do que prevê a nova lei, a Constituição da República Portuguesa diz claramente, no n.º4 do artigo 239.º, que "As candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei".
Acontece que a lei vem limitar ainda mais as candidaturas independentes e, ao contrário do que acontecia em 2017, não permite que o mesmo grupo de cidadãos seja candidato à câmara e assembleia municipal e às assembleias de freguesia. Os grupos têm de ser distintos.
"A lei não define exatamente os parâmetros em que é possível ter a mesma denominação, símbolo e sigla, deixa nas mãos dos juizes a interpretação do que é e não é admissível", critica Aurélio Ferreira. "Aqui entra outra vez a ambiguidade: o que significa "distintos"? Quão distintos têm de ser?" E exemplifica: "Vamos supor um Movimento Independente por Lisboa, candidato à câmara e à assembleia municipal. Para se candidatar à freguesia de Belém, o grupo de cidadãos pode chamar-se "Movimento Independente por Belém"? O juiz aceita ou não estas duas candidaturas no mesmo município? Fizemos a pergunta à CNE que, como sempre, respondeu uma coisa extraordinária: "Isso é o senhor doutor juiz que decide". Ou seja, cada um pode decidir como quiser".
Vários grupos de cidadãos fizeram a mesma pergunta à CNE, mas a resposta variou. "Havendo um denominador comum - neste caso "Movimento Independente" - o juiz poderá considerar a candidatura como uma tentativa de fraude à lei e, por isso, não admissíveis as denominações propostas".
Aurélio Ferreira adianta que logo em outubro a AMAI reuniu com a CNE e deixou uma proposta: "Propus fazer o que fazemos nas empresas quando enviamos para o registo nacional de pessoas coletivas uma proposta de nome, que vem chumbada ou aprovada. Ou seja, que pudéssemos apresentar desde logo uma lista de nomes, que poderiam ou não ser considerados válidos". A resposta da CNE surgiu posteriormente: "Perguntámos ao legislador e o legislador diz que não quer fazer isso".
Neste cenário, uma candidatura que inicie agora o processo de recolha de assinaturas, com determinada denominação, símbolo e sigla, pode ver chumbada, a poucos dias das eleições, a sua pretensão. As candidaturas têm de ser entregues até 50 dias antes das eleições, ou seja, início de agosto. Se o juiz considerar inválido algum pressuposto, como a designação, símbolo ou sigla, a candidatura terá apenas dois dias para encontrar uma solução. "Morremos ali", desabafa o presidente da AMAI.
O número de assinaturas necessárias depende do município e órgão a que se candidata, já que a lei fala em 3% do número de eleitores. No máximo, tendo em conta os municípios de maior dimensão, são precisas quatro mil assinaturas.
Os autarcas das 17 câmaras independentes têm uma certeza: quando votaram a lei, PSD e PS "não estavam distraídos, sabiam ao que iam, disso não há dúvidas", garantem Aurélio Ferreira, que é também vereador da câmara da Marinha Grande, e Fernando Nogueira, presidente da câmara de Vila Nova de Cerveira.
"Tanto que sabiam, que a proposta de lei apresentada pelo PSD entrou em março e foram pedidos pareceres a diversas entidades, mas a AMAI ficou de fora. Ao contrário, em 2017 fomos contactados pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias", recorda Aurélio Ferreira.
Agora, os independentes dão à Assembleia da República até dia 31 de março para alterar ou revogar a lei, caso contrário prometem avançar com medidas mais drásticas, como a criação de um partido, que permitam ao grupos de cidadãos concorrer às autárquicas em condições de igualdade com os partidos políticos.
São vários os partidos que começaram como movimentos de cidadãos e alteraram os seus estatutos, transformando-se em partidos. É o caso do Juntos Pelo Povo, que nasceu em Santa Cruz, na Madeira. Élvio Sousa, secretário-geral do JPP, conta que a mudança, dez anos depois de terem surgido como grupo de cidadãos eleitores, se deveu à alteração da lei eleitoral. "Sentimos uma asfixia por parte dos partidos relativamente aos grupos de cidadãos eleitores. Na altura, precisávamos de reunir mais declarações e propositura para o segundo maior município da região autónoma da Madeira, Santa Cruz, do que para criar um partido politico em Portugal". "E eu, como eleitor da freguesia de Gaula, não podia subscrever para o meu colega da freguesia do lado, do mesmo concelho. Ponderámos isso. A outra razão foi que em 2014 estava eminente a criação de dois partidos, o Juntos Podemos e a Voz do Povo. Nessa altura teríamos de mudar a nossa designação, porque a denominação dos movimentos de cidadãos está sempre dependente da dos partidos, não pode haver confundibilidade. Teríamos, por isso, de mudar a designação e símbolo, o que seria difícil e iria dividir o eleitorado. Antecipámo-nos. Estávamos num terreno movediço, não tínhamos estabilidade jurídica nem financeira".
Nesta alteração da lei, as candidaturas deixam de ter direito eventual a subvenções estatais, ao contrário dos partidos, uma vez que estas são atribuídas em função do número de votos na assembleia municipal. Isto significa que quem concorre às assembleias de freguesia perde acesso aos subsídios.
No que toca a apoios financeiros, também "a questão do IVA não é de somenos importância, porque um movimento de cidadãos não tem os mesmos recursos que tem um partido, e não pode sequer recorrer a empréstimos bancários. Por exemplo, 10 mil euros na campanha de um partido são 12 300 para um independente, que tem de pagar o IVA", exemplifica o presidente da câmara de Vila Nova de Cerveira, Fernando Nogueira.
"A história veio a dar-nos razão, embora, ao que parece, haja agora um recuo para emendar a trapalhada que fizeram", remata Élvio Sousa, que garante que a transformação em partido foi como encontrar "uma barriga de aluguer", já que "somos críticos da forma como os partidos, calculadamente e de forma profissional, estão a tratar a cidadania".
Este ano, o JPP prevê candidatar-se a "duas ou três câmaras municipais no continente e a meia dúzia de câmaras na Madeira". Quanto à lei em causa, Élvio Sousa não tem dúvidas: "Isto foi feito deliberadamente e é fruto de uma concertação do bloco central e, infelizmente, o acordo do presidente da República, a quem escrevemos uma carta, ainda sem resposta, alertando as consequência da sua aprovação".
As câmaras municipais independentes - Águeda, Anadia, Vizela, Estremoz, Borba, Redondo, Aguiar da Beira, Peniche, Oeiras, Portalegre, Vila do Conde, Porto, Vila Nova de Cerveira, São João da Pesqueira, Calheta, São Vicente e Ribeira Brava - representam já uma força política de perto de 6%. Para o dia 31 de março está marcada nova reunião da AMAI, desta vez em Portalegre, por ser interior e capital de distrito.
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