Há quase década e meia que a Assembleia da República discute, sem êxito, a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado. Não por falta de tentativas: 22 projetos de lei apresentados em 14 anos. O PSD foi o primeiro a chegar-se à frente, o PS votou sempre contra - e o governo voltou a deixá-lo de fora da Estratégia Nacional Anticorrupção apresentada na quinta-feira.
Olhando para trás, e seguindo o histórico do Parlamento em matéria de combate à corrupção - que é muito mais do que a criminalização do enriquecimento ilícito - ficamos a saber que em 45 anos, ou seja, desde junho de 1976, os partidos apresentaram na Assembleia da República 134 iniciativas de combate à corrupção. Sem contar com inquéritos parlamentares.
Não sendo "a bala de prata", é consensual que a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado é uma ferramenta importante no combate à corrupção. Se é assim, por que motivo nunca avançou? A conclusão é que as iniciativas apresentadas pelos partidos foram sempre mais declamatórias que proclamatórias.
A Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP) veio ressuscitar a questão, a propósito da Estratégia Nacional Anticorrupção, ao defender, a par de entidades como a Transparência e Integridade ou o Sindicato de Magistrados do Ministério Público, a tipificação do crime de enriquecimento ilícito, contra a vontade do Ministério da Justiça. E foi mais longe, elaborou uma proposta.
Para ser aprovada, a proposta da ASJP terá de ser adotada pelos partidos políticos, discutida e aprovada em Assembleia da República. Mas o que traz de novo e porque é esperado agora um consenso alargado em torno de uma matéria que sempre dividiu? Para perceber isto é preciso recuar no tempo.
Só ao longo dos dois governos Sócrates, o da maioria PS e aquele que não chegaria ao fim da legislatura (com o executivo a demitir-se a 23 de março de 2011), foram apresentadas nove iniciativas para criminalizar o enriquecimento ilícito: três da autoria do PSD, três do BE e três do PCP.
A primeira proposta data de 2007, era Marques Mendes líder do PSD - "lembro-me perfeitamente da apresentação pública do projeto de lei, no Hotel Miragem", em Cascais, confirma. José Sócrates era primeiro-ministro, Cavaco Silva presidente da República.
"A corrupção mina a democracia. É mesmo um dos flagelos que mais afasta as pessoas do ideal democrático e de uma convivência política sadia e responsável". Estas palavras podiam ter sido escritas hoje, mas faziam parte da exposição e dos motivos apresentados então pelo PSD.
"A corrupção mina a democracia. É mesmo um dos flagelos que mais afasta as pessoas do ideal democrático e de uma convivência política sadia e responsável"
Proposta de lei do PSD, 2007
A proposta previa, entre outras alterações, acrescentar ao Código Penal o crime de enriquecimento ilícito: "O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou um modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punível com pena de prisão até 5 anos".
Foi aprovada pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a 18 de abril de 2007, com os votos a favor do PSD, PCP e CDS-PP, a abstenção do PS e a ausência do BE e de Os Verdes. Mas foi rejeitada na reunião plenária no dia seguinte, com os votos contra do Partido Socialista, a abstenção do CDS-PP e os votos a favor das restantes bancadas.
O tema voltaria à baila dois anos depois, em 2009, primeiro por proposta do Bloco de Esquerda, que quis "retomar o tema do combate à corrupção, desta vez centrado no combate ao enriquecimento injustificado, que considera um combate por uma cidadania responsável e pela dignificação do Estado", depois pelo PSD e, ainda antes do final da legislatura, pelo PCP: "Apesar do intenso debate que promoveu na presente legislatura sobre os meios de prevenir e punir o fenómeno da corrupção, a legislação que a Assembleia da República aprovou sobre esta matéria ficou muitíssimo aquém do que era esperado, desejável e necessário".
O projeto do BE caducaria ainda antes de ser debatido em plenário e as outras duas propostas, bem como as seguintes, continuariam a ser chumbadas pelo PS. Note-se que no Partido Socialista havia quem quisesse combater a corrupção. A 30 de março de 2010, um ano antes da queda do governo Sócrates, João Cravinho - "que teve um papel importante", como reconhece ao SAPO24 Marques Mendes - foi ouvido em audiência parlamentar pela Comissão Eventual para o Acompanhamento do Fenómeno da Corrupção, e fez um balanço do que avançou e do que então foi travado pelo Partido Socialista: foram rejeitadas propostas como a delação premiada para pessoas coletivas, a prescrição de crimes de corrupção com prazo a contar a partir da abertura do processo judicial, uma comissão de prevenção da corrupção com membros eleitos pelos deputados e a trabalhar junto do Parlamento ou classificar como de risco agravado de corrupção as atividades de aquisição externa de bens e serviços do Estado. Outras foram aceites, ainda que alguma mais tarde e modificadas.
"Nós temos uma cultura da opacidade, historicamente [...] Sem uma efetiva cultura cívica, administrativa e política de transparência a corrupção beneficiará sempre dos mais diversos e poderosos incentivos e proliferará, substancialmente, impune"
João Cravinho, 2010
Aconteceu há mais de uma década e João Cravinho já então afirmava o seguinte: "A transparência é um valor democrático absolutamente essencial, é um pilar da ordem democrática, é um pilar da boa governação. Nós temos uma cultura da opacidade, historicamente [...] Sem uma efetiva cultura cívica, administrativa e política de transparência a corrupção beneficiará sempre dos mais diversos e poderosos incentivos e proliferará, substancialmente, impune. Portanto, ou nós quebramos isto, lançando o país num outro tipo de cultura, ou então nada feito".
A criminalização do enriquecimento ilícito só viria a ser aprovada pela Assembleia da República em fevereiro de 2012 (com os votos contra do PS), por proposta do PSD/CDS-PP.
O diploma foi enviado pelo então presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, para o Tribunal Constitucional com um pedido de fiscalização preventiva, e declarado inconstitucional por violar o princípio da presunção da inocência, porque a proposta previa que coubesse ao arguido o encargo de fazer prova de não haver crime.
Apesar do chumbo, ainda na mesma legislatura, mas já em 2015, PSD e CDS-PP insistem no tema, sem grandes alterações à proposta anterior e apesar dos avisos, o que viria a redundar em novo fracasso.
Os avisos tinham vindo não só do Tribunal Constitucional, logo em 2012, mas do advogado Manuel Magalhães e Silva, ouvido pelo Parlamento na sequência de um pedido do PCP, que quis retomar o "processo legislativo conducente à criminalização do enriquecimento ilícito".
Magalhães e Silva viria a apresentar, em audição parlamentar realizada a 17 de setembro de 2013, uma proposta de criminalização do enriquecimento ilícito expurgada das inconstitucionalidades apontadas pelo Tribunal Constitucional, posteriormente distribuída por todos os deputados. O "ilícito" passa a "injustificado" e não há inversão do ónus da prova, porque é criada a obrigação de declarar rendimentos e património.
Hoje, Magalhães e Silva diz que, "tirando o PCP, ninguém ligou nenhuma". E os erros repetiram-se. "Como dizia a avó no filme "Feios, Porcos e Maus": "Andas à procura de trabalho e a pedir à Virgem para não o encontrares". Afinal, a partir daí ficou mais fácil atribuir as responsabilidades de insucesso da criminalização do enriquecimento ilícito ao Tribunal Constitucional.
"Como dizia a avó no filme "Feios, Porcos e Maus": "Andas à procura de trabalho e a pedir à Virgem para não o encontrares"
Manuel Magalhães e Silva, advogado
Magalhães e Silva reconhece que "o PS foi o primeiro a estar manifestamente contra", talvez por preferir "a via fiscal à criminal", mas considera que agora "não há espaço para ninguém dizer que não". Já o que "não é certo é virem dizer que a Associação Sindical de Juízes Portugueses foi a primeira a apresentar uma proposta que ultrapassa as inconstitucionalidades apontadas, e bem, pelo Tribunal Constitucional. Cada um é livre de dizer o que quiser, mas fiz isso em setembro de 2013".
Desde o início de abril já deram entrada na Assembleia da República quatro iniciativas para criminalizar o enriquecimento ilícito: uma do PCP, inserida num bloco de medidas de combate à corrupção, uma do BE, outra do Chega e, na última quinta-feira, uma do PS, um projeto de lei que alarga as obrigações declarativas e densifica o crime de ocultação de enriquecimento. O CDS, PAN e PEV também já anunciaram que vão entregar propostas, enquanto a Iniciativa Liberal espera para analisar os documentos em causa e decidir depois se fará uma proposta específica.
É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma
Quinta-feira foi também o dia da apresentação pública da Estratégia Nacional Anticorrupção, que será agora debatida na Assembleia da República. A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, afirmou esperar "largo consenso" no Parlamento sobre esta matéria que considera transversal: "Penso que não há nenhum partido que não tenha interesse no combate à corrupção", disse.
Apesar disso, o enriquecimento ilícito ficou fora a estratégia de combate à corrupção do governo. Francisca Van Dunem explicou que "o enriquecimento injustificado nunca foi objeto da estratégia anticorrupção" e que "o que está em causa é a alteração de uma lei que foi elaborada pelo Parlamento no quadro do pacote de transparência e, portanto, será, do nosso ponto de vista, no Parlamento que esta matéria deve ser abordada".
Dias antes, à margem da XXVII Cimeira Ibero Americana, António Costa veio dizer que “é altura de todos os responsáveis políticos compreenderem que a corrupção não é um fator de divisão ou uma arma de arremesso político, mas de união entre todos. Essa é a única forma de os cidadãos sentirem confiança nas instituições e perceberem que as instituições no seu conjunto estão empenhadas em combater a corrupção”.
Também Marcelo Rebelo de Sousa disse que acredita que "é desta" que os partidos vão fazer reformas na Justiça, a começar pela criminalização do enriquecimento ilícito: "Se todos pensam isto e querem isto, então está ao seu alcance", afirmou.
Talvez fosse mais fácil acreditar nas palavras do presidente da República e do primeiro-ministro se o tema não tivesse tantos anos. Os primeiros diplomas neste âmbito surgiram no início dos anos 80, pelas mãos da ASDI - Acção Social Democrata Independente, partido formado por dissidentes do PPD/PSD, como António Sousa Franco, Magalhães Mota ou Sérvulo Correia.
Três projetos de lei, um sobre "controlo público da riqueza de titulares políticos", dois sobre "combate à imoralidade administrativa, fraude e corrupção". O primeiro foi aprovado por unanimidade e viria a sofrer alterações a partir de 1995, acabando por ser revogado na atual legislatura pela Lei 52/2019, de 31 de julho, que aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
De então para cá, apenas nos governos encabeçados por Durão Barroso e Pedro Santana Lopes (seis meses) não foram propostas quaisquer iniciativas no âmbito do combate à corrupção.
Em política, diz-se, o que parece é. E aquilo que está previsto fazer-se não é criminalizar o enriquecimento ilícito, como acontece noutros países - isso seria possível se PS e PSD se pusessem de acordo para mudar a Constituição da República Portuguesa, o que está longe de acontecer. No máximo, vai ser criada uma obrigação declarativa, que poderá ser constitucional ou não (há dúvidas sobre se viola o princípio da não incriminação).
De resto, como diz Nuno Garoupa, professor de Direito, "o país está cheio de obrigações declarativas que são letra morta". E dá um exemplo: "No caso de Sócrates, já teria prescrito de qualquer forma". Como não declarar não é crime - e só só se aplica até três anos depois de sair do cargo político -, o visado incorre apenas numa contraordenação por não ter declarado. Uma coima. "As multas da Entidade para a Transparência - e a nova ainda nem existe - estão sempre a prescrever. Há obrigações declarativas da Lei 52/2019 que estão por regulamentar, como a declaração de património dos juízes".
"O país está cheio de obrigações declarativas que são letra morta"
Nuno Garoupa, professor e analista político
Muitos temem já que a azáfama não seja mais do que um embuste. As suspeitas são fundamentadas: a ministra da Justiça anunciou, a propósito da Estratégia Nacional Anticorrupção, a criação de um "mecanismo" que "será responsável pela fiscalização do cumprimento pelas empresas das obrigações em matéria de transparência". Este mecanismo, explicou depois, será uma entidade independente, com autonomia administrativa e financeira, que terá um conselho estratégico - onde estarão representados a Procuradoria-Geral da República, o Tribunal de Contas, a Ordem dos Advogados, a Inspeção-Geral de Finanças e alguém do setor comércio e/ou indústria, uma comissão de acompanhamento e uma comissão de sanções.
A ministra só não explicou em que é que essa comissão difere do Conselho de Prevenção da Corrupção, criado em 2008 por José Sócrates e composto pelas mesmíssimas entidades - "um conselho com aspetos de duvidosa constitucionalidade", na opinião de João Cravinho. Como também não explicou qual a eficácia deste organismo em quase 13 anos de existência.
Antes dele, havia a Alta Autoridade Contra a Corrupção, criada em 1983 e extinta no final de 1992, onde Francisca Van Dunem foi assessora de sindicância e inquérito, em comissão de serviço, entre 1985 e 1987.
Na vigência dos dois governos liderados por José Sócrates foram apresentados 34 projetos de lei, oito projetos de resolução, duas propostas de resolução e três propostas de lei (do governo) no âmbito do combate à corrupção. No primeiro governo, António Costa foi ministro de Estado e da Administração Interna, e Augusto Santos Silva ocupou o cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares.
Num artigo publicado esta sexta-feira, a Transparência e Integridade escreve que "uma estratégia que só existe por causa da pressão pública", mas que "continua a deixar de fora o enriquecimento ilícito, por que nos batemos desde 2012 e que voltou para a ordem do dia depois da decisão instrutória de Ivo Rosa na Operação Marquês", fica "a meio caminho".
E lembra que cabe agora à Assembleia da República "chegar a bom porto, aprovando as medidas de prevenção que o governo ignorou. Perante a falta de ambição do governo, a responsabilidade é do Parlamento".
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