Numa entrevista à The Paris Review em 1984, Milan Kundera referia Robert Musil e Hermann Broch como duas das suas referências literárias e defendia a “arte da elipse” como “absolutamente essencial” na escrita.

“Para fazer do romance uma representação poli-histórica da existência, é preciso dominar a técnica da elipse, a arte da condensação”, afirmava Milan Kundera naquela entrevista, publicada aquando a edição de “A insustentável leveza do ser”, um dos seus romances mais conhecidos.

Milan Kundera, que nasceu a 01 de abril de 1929 em Brno, na antiga Checoslováquia, exilou-se em 1975 em França, país que o reclama como seu e que lhe atribuiu nacionalidade em 1981.

A agência France-Presse escreveu hoje que Milan Kundera foi um “pintor sarcástico da condição humana, um dos romancistas de língua francesa mais influentes do mundo”.

Milan Kundera publicou o primeiro romance, “A Brincadeira”, em 1967, pouco antes da Primavera de Praga, espelhando, logo na estreia literária e através da ficção, a sua própria relação problemática com o Partido Comunista.

“A arte do romance de Kundera questiona com acuidade os territórios, os desafios e a temporalidade de um género historicamente sob tensão, ora ameaçado de esgotamento interno, ora de agressão externa”, escreveu hoje o Martine Boyer-Weinmann, professor de literatura francesa, no jornal Le Monde.

Nome várias vezes apontado para o Nobel da Literatura, Milan Kundera deixou uma obra parca, mas marcada sobretudo por romances, "impregnada de uma fenomenologia do sensível", escreveu aquele investigador.

Além de “A Brincadeira” e “A Insustentável Leveza do Ser” – que teve uma adaptação para cinema renegada pelo escritor –, foram ainda publicados, entre outros, “O livro do riso e do esquecimento”, “A Lentidão” e “A Valsa do Adeus”.

Destaque ainda para “Os Testamentos Traídos”, ensaio em forma de romance, no qual Milan Kundera aborda outros romancistas e escreve sobre escrita, ficção e literatura.

“Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, ao reler as notas, compreendemos que não conseguem evocar uma única imagem concreta. E pior ainda: que a imaginação não é capaz de vir em auxílio da nossa memória e de reconstruir o esquecido, porque o presente, o concreto do presente, enquanto fenómeno a examinar, enquanto estrutura, é para nós um planeta desconhecido; portanto não sabemos nem conservá-lo na nossa memória, nem reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber o que vivemos”, lê-se naquele livro.

Estando já disponível em Portugal grande parte da sua obra literária, a Dom Quixote edita este mês “Um ocidente sequestrado ou a tragédia da Europa Central”, editado pela primeira vez em França em 2021.

Esta obra contém dois textos escritos antes da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria: o discurso de Kundera ao Congresso dos Escritores da antiga Checoslováquia, em 1967, em plena Primavera de Praga, que culmina no ano seguinte; e um artigo publicado na revista francesa Le Débat, em novembro de 1983, quando o escritor já vivia em França.

Kundera faz parte de uma geração de jovens checos que tiveram pouca experiência com uma nação democrática no pré-guerra, pois a sua ideologia foi em grande parte influenciada pelas Segunda Guerra Mundial e pela ocupação alemã.

Ainda adolescente, Kundera filiou-se no Partido Comunista, mas acabaria por ter uma relação conturbada com o partido, tendo sido expulso em 1950 e em 1970, num período em que viu a cidadania checa ser-lhe retirada e os seus livros banidos.

Apesar da relação difícil com o país, Mila Kundera doou os seus livros e arquivos à Biblioteca Regional de Brno, cidade onde nasceu.

Não tendo recebido o Nobel da Literatura, Milan Kundera foi reconhecido em vida com outras distinções de relevo, nomeadamente o Prémio Médicis (1973), o Prémio Mondello (1978), o Prémio Jerusalém (1985) e o Prémio Independent de Literatura Estrangeira (1991).