A maioria dos seus ícones, livros, manuscritos e vestes eclesiásticas foi resguardada na iminência da invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro, um acervo reunido após uma longa história de conflitos, entre os quais duas guerras mundiais, e a posterior destruição do templo greco-católico e do seu mosteiro durante o período soviético.

“Até aos anos 70 não havia nada aqui, estava tudo completamente arrasado. Os ícones foram destruídos ou vandalizados. Até os olhos das imagens retiraram”, descreve o padre Vasyl, 45 anos, fixando-se no período mais contemporâneo da longa história desta igreja e museu, dedicado ao seu fundador, patrono e mártir Andrey Sheptytsky, quando o regime soviético transformou o mosteiro em prisão feminina e o espaço de culto em cinema.

Só a partir de 2007, graças aos esforços do padre principal da Igreja, Sebastian, foi possível voltar a reunir um novo acervo, através de obras escondidas por famílias ao longo das últimas décadas ou de doações, começar a restaurar peças e recuperar os frescos, lentamente, “porque este não é um museu rico”.

Tudo o que estava em vitrinas foi removido, para evitar eventuais danos por estilhaços das explosões, para caves profundas das quais só padre principal possui as chaves. Em exibição, apenas permanecem objetos protegidos pelas paredes espessas da Igreja, agora sem fiéis nem visitantes.

É junto ao altar que o padre Vasyl faz solitariamente as suas orações a cada hora. As missas ‘online’ foram suspensas. “Não seria prudente juntar pessoas em locais que os russos podem bombardear”, justifica.

Apesar disso, e de todo o esforço para manter o conteúdo da igreja e museu em segurança, e, ainda que possa haver bombardeamentos da força aérea, Vasyl não acredita que os russos cheguem a Lviv, na parte mais ocidental da Ucrânia, “porque vão certamente encontrar muita resistência e serão travados antes de chegarem aqui”.

Do interior do templo, apesar das celebrações suspensas, as mensagens continuam a ser passadas aos crentes. Em primeiro lugar, para que se acolham os deslocados que chegam em massa das regiões mais atingidas pelo conflito, e, logo a seguir: “Resistam, preparem-se para lutar”.

E, para dar o exemplo, além de ajuda humanitária, conta nesta Igreja foram preparados uns 30 ‘cocktail molotov’ a partir de garrafas usadas nas celebrações. “Mas já não temos mais”, lamenta o padre da Igreja de Clement Sheptytsky, clérigo que dedicou os seus últimos anos a proteger judeus durante a II Guerra e morreu numa prisão soviética em 1944, tendo sido posteriormente beatificado pela Igreja Católica e condecorado pelo Estado de Israel.

Para o padre Vasyl, esta guerra só pode ser uma surpresa no ocidente, porque na Ucrânia “já não era uma questão de se, mas quando” e, na verdade, aprecia que não tenha acontecido mais cedo, apanhando o país sem armamento.

“Agora está preparado e as pessoas podem defender as suas casas e as suas famílias. Graça a Deus, temos o apoio do ocidente, porque sem ele não seria possível”, observa.

A invasão de um país vizinho, atingindo alvos civis, é, aos olhos do religioso algo “não humano”. Refere-o tendo em mente a morte no domingo de duas mulheres e duas crianças que tentavam fugir de Irpin, nos arredores de Kiev. “Quando se dispara sobre uma família inteira… é o mal, é claramente satânico.”

A proteção do acervo desta Igreja e museu, que no último século mudou várias vezes de nome ao sabor de cada sobressalto histórico, repete-se em vários locais do centro de Lviv, cuja topografia medieval e arquitetura barroca e renascentista estão classificadas como Património da Humanidade. Entre ruas de pedra ausentes de turistas, é num antigo mosteiro erguido no século XIV que se encontra o Museu de História da Religião de Lviv, tal como a Igreja de Clement Sheptytsky, fechado.

As estátuas no átrio estão embrulhadas em plásticos, como quase todas as da cidade velha, ainda que as paredes grossas e as janelas viradas para os claustros confiram alguma proteção em caso de bombardeamentos, tal como sucedeu durante a II Guerra Mundial.

À semelhança de todos os espaços museológicos de Lviv, a sua coleção foi transportada para um local seguro. As peças foram catalogadas e escondidas em contentores metálicos a mais de cinco metros de profundidade, ou retiradas do país.

“Só ficou o que tem pouco valor ou as cópias”, explica o diretor do museu, Malys Oresz, acrescentando que o espaço é vigiado 24 horas por dia e todos os extintores estão bem visíveis e prontos a funcionar.

Antes da pandemia de covid-19, o museu recebia 150 mil pessoas por ano, mas agora o diretor apenas consegue fazer uma visita guiada por peças ausentes, invocando a história de todas as religiões na Ucrânia.

Adiados ficaram os planos da abertura de uma exposição dedicada a Josef Slipyi, antigo arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica em Lviv e cardeal da Igreja Católica romana, preso durante quase 20 anos pelo regime soviético e apenas libertado em 1963, graças a um pedido do Papa João XXIII. Por terminar ficam também obras de restauro no antigo mosteiro, em murais do século XVIII.

O museu enfrenta ainda dificuldades de pessoal, após dois funcionários terem sido incorporados no Exército, havendo mais 10 elegíveis. “Mas ainda cá estão”, diz o diretor, enquanto prossegue entre vitrinas e expositores vazios, apontando para uma das poucas atrações que ficou por esconder: os esqueletos de um homem e de uma mulher, datados do século XII antes de Cristo.

Estão numa grande caixa envolvidos em terra e apenas uma parte é visível à superfície, mas facilmente se percebe que ficaram abraçados até à eternidade. “É por isso que lhes chamam Romeu e Julieta da Ucrânia”, conta Malys Oresz, “mas infelizmente pesam demais e vão ter de ficar aqui”.

* Por Henrique Botequilha (texto) e Miguel A. Lopes (fotos), agência Lusa em Lviv, Ucrânia