Os factos consumados são que António Costa apresentou a sua demissão e que o presidente da República a aceitou. O país ficou em suspenso e assim estará até Marcelo Rebelo de Sousa, depois de ouvir os partidos com assento parlamentar e de reunir o Conselho de Estado, comunicar a sua decisão, esta quinta-feira à noite.
A Constituição da República Portuguesa e o passado recente permitem antecipar o desfecho a partir da construção de cenários, alguns mais prováveis que outros, mas todos possíveis.
Eleições antecipadas - Muito provável
É este o cenário mais provável e também o preferido pela maioria dos partidos - a exceção do PCP e PAN. A decisão do presidente da República de ouvir os líderes dos oito partidos políticos com assento parlamentar (PS, PSD, Chega, IL, PAN, Livre, BE e PCP) e de convocar o Conselho de Estado, as duas premissas obrigatórias para a realização de eleições antecipadas, também aponta para este o caminho. Que tem precedentes.
Na noite de 16 de Dezembro de 2001, dia de eleições autárquicas, António Guterres demite-se do cargo de primeiro-ministro, na sequência dos maus resultados obtidos pelo Partido Socialista.
"Entendo que é meu dever perante Portugal e perante os portugueses evitar esse pântano político. Por isso mesmo, pedirei ao senhor presidente da República que me receba para lhe apresentar o meu pedido de demissão das funções de primeiro-ministro", afirmou. O presidente da República era então Jorge Sampaio.
António Guterres estava no seu segundo mandato, mas o resultado das legislativas de Outubro de 1999 ficou aquém do esperado, com um inédito empate parlamentar: 115 deputados para o PS, 115 deputados para a oposição (toda). António Costa sai com maioria absoluta, mas esta não é a única diferença (ver mais à frente).
Novo governo PS - Pouco provável
Foi ainda com Jorge Sampaio na Presidência da República que outro primeiro-ministro pediu para sair do governo. Durão Barroso estava a meio do seu mandato quando, em 5 de Julho de 2004, pede a sua demissão para ocupar o cargo de presidente da Comissão Europeia.
Durão Barroso então, como António Costa agora, liderava com maioria absoluta, motivo pelo qual considerou ser "estranho ou inédito" que houvesse uma dissolução da Assembleia da República. Não houve (pelo menos nos quatro meses seguintes). Sampaio deu posse ao governo - um novo governo - liderado por Santana Lopes a 17 de Julho, 12 dias depois de aceitar a demissão de Durão Barroso.
Tudo isto se passou contrariando os apelos da esquerda. Ferro Rodrigues demitiu-se de secretário-geral do PS por considerar a decisão uma "derrota pessoal e política".
Marcelo Rebelo de Sousa poderia agora concordar com uma situação semelhante e aceitar que o líder do partido mais votado, o PS, indicasse um nome para o substituir. Que poderia ser, por motivos óbvios, Augusto Santos Silva, atual presidente da Assembleia da República, ou Mariana Vieira da Silva, número dois do governo. Ou mesmo Fernando Medina, ministro das Finanças. Em todo o caso, este seria um novo governo.
Mas há, no pedido de demissão dos dois líderes, Durão Barroso e António Costa, uma diferença fundamental: o motivos da saída. No primeiro caso tratava-se de uma indigitação para um cargo europeu. No caso de António Costa trata-se de uma investigação criminal (do Supremo Tribunal de Justiça, que é quem tem competência nesta matéria).
"É meu entendimento que a dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade, a sua boa conduta, e, menos ainda, a suspeita de prática de qualquer ato criminal. Por isso, nesta circunstância, obviamente apresentei a minha demissão a sua excelência o senhor presidente da República", disse Costa.
E é este facto, como tantos outros ocorridos nestes 19 meses de governo (Galamba, Cravinho, ou Marco Capitão Ferreira, para dar alguns exemplos), que debilita o atual executivo e lhe retira legitimidade para governar. Uma solução, por isso, pouco provável.
Governo de iniciativa presidencial - nada provável
Em Portugal houve três governos de iniciativa presidencial, todos seguidos e nomeados por Ramalho Eanes. Nenhum correu bem.
Um governo de iniciativa presidencial é, como o nome indica, um governo indicado pelo presidente da República, e não um governo saído de eleições. Uma solução usada para desbloquear uma crise política e que, desde a revisão constitucional de 1982, só é possível em casos excepcionais.
O primeiro destes governos deu origem ao III Governo Constitucional (1978), liderado pelo empresário Alfredo Nobre da Costa, e durou menos de três meses, 86 dias, mais precisamente. Terminou devido com uma moção de rejeição do programa do governo apresentada pelo Partido Socialista. Portugal estava, desde 1977, sob a primeira intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), a inflação atingia os 20% e era preciso estancar a crise económica.
O segundo chegou logo a seguir: Carlos Mota Pinto, um dos fundadores do PPD. Durou pouco mais, oito meses e dez dias. No final de Maio de 1979, a Assembleia desfez as Grandes Opções do Plano e aprovou uma lei que limitava a capacidade do governo de atuar no âmbito da reforma agrária. Mota Pinto apresenta a sua demissão depois de PS e PCP – que em conjunto tinham maioria absoluta – apresentarem um moção de censura contra si.
O terceiro governo de iniciativa presidencial foi chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo, a única mulher que desempenhou o cargo de primeira-ministra em Portugal e a segunda na Europa, depois de Margaret Thatcher, no Reino Unido. O seu executivo, V Governo Constitucional, funcionou apenas como governo de gestão, até à realização das eleições intercalares de Dezembro de 1979.
Percebe-se por que motivo seria agora estranho um governo de iniciativa presidencial, embora na última década, em períodos diferentes, muitos tenham defendido, sobretudo nas alturas de crise mais vincada, um governo de salvação nacional (solução conjunta encontrada pelos principais partidos com assento parlamentar).
A data das eleições
As eleições antecipadas poderão ocorrer entre 28 de Janeiro, o último domingo do mês, e Março de 2024. O ideal é que aconteçam o quanto antes, mas há prazos e contingências a ter em conta.
As últimas legislativas foram marcadas por Marcelo Rebelo de Sousa para 30 de Janeiro de 2022, estávamos a 4 de Novembro de 2021 quando dissolveu a Assembleia da República. Tudo aconteceu na sequência do chumbo do Orçamento do Estado para 2022.
Numa comunicação ao país, o presidente da República considerou o chumbo do OE incompreensível para os portugueses: "Nada de menos compreensível para o cidadão comum, que desejava que o Orçamento passasse, que entendia que já bastava uma crise na saúde, outra na economia, outra na sociedade e dispensava mais uma crise política a somar a todas elas".
O tempo de então não era muito diferente do atual - António Costa pediu a demissão no dia 7 de Novembro. Marcelo Rebelo de Sousa justificou a escolha da data assim: "O sensato é apontar para debates e campanha a começar em 2022, mas não em cima do dia de ano novo, mas ainda assim termos eleições em Janeiro - como eu disse desde o primeiro momento -, compatibilizando a desejável rapidez com a devida atenção a um período sensível na vida das pessoas". Podia ser hoje.
Depois da publicação do "despacho de dissolução" da Assembleia da República, Marcelo Rebelo de Sousa tem 60 dias para marcar eleições. Isto significa que o prazo ainda não começou a contar e que o presidente da República poderá jogar com os diversos interesses em causa, nomeadamente dar tempo ao PS para se organizar internamente e escolher um candidato às novas eleições (António Costa garantiu que não seria candidato) ou para a Assembleia da República aprovar o Orçamento de Estado para 2023, já discutido na generalidade e votado na especialidade a 29 de Novembro (ver abaixo).
O Partido Socialista já comunicou ao presidente da República o tempo que considera adequado para o partido, de acordo com os seus estatutos, encontrar uma solução interna, o que implica eleger um novo secretário-geral e escolher um candidato às próximas eleições, que poderá ou não ser a mesma pessoa. E apontou para Março como data preferida.
Os casos dos pedidos de demissão já aqui mencionados variaram com a solução encontrada. Oficialmente, o pedido de demissão de António Guterres foi feito a 17 de Julho e imediatamente aceite por Jorge Sampaio: "O presidente da República aceitou o pedido de demissão que lhe foi apresentado pelo primeiro-ministro", lê-se na nota oficial da Presidência da República.
O primeiro-ministro e o governo mantiveram-se em funções nos termos constitucionais, ou seja, até Jorge Sampaio ter decidido, no caso, convocar eleições antecipadas. Os analistas apontavam então para a realização de eleições antecipadas em Fevereiro de 2002. Aconteceram a 17 de Março de 2022, exatamente oito meses depois da queda do governo.
O anúncio foi feito a 28 de Dezembro, onze dias depois da demissão. "A atual Assembleia da República é insusceptível de gerar um novo governo", disse Jorge Sampaio, justificando que partidos e Conselho de Estado se manifestaram a favor da dissolução, "apesar dos custos que representa", e convocação de eleições antecipadas, que trariam "uma legitimidade renovada e uma nova energia ao nosso sistema político".
António Guterres ficou, como manda a Constituição, até dia 6 de Abril, data da tomada de posse do governo liderado por José Durão Barroso. Tal como Costa afirmou que ficaria até à tomada de posse do novo governo.
Orçamento do Estado para 2024 cai?
Diz a Constituição que "as propostas de lei e de referendo caducam com a demissão do Governo", no seu artigo.º 167, n.º6. Isto significaria que o Orçamento de Estado agora em discussão na Assembleia da República, e que seria votado na especialidade a 29 de Novembro, cai automaticamente. Mas pode não ser assim.
Se é verdade que António Costa já se demitiu e que a demissão foi aceite pelo presidente da República - e a CRP diz no artigo 195.º ("Demissão do Governo"), que "A aceitação pelo residente da República do pedido de demissão apresentado pelo primeiro-ministro" (alínea b), também é verdade que o "despacho de dissolução" da Assembleia da República ainda não foi publicado.
Ou seja, os 60 dias só começam a contar a partir da publicação do despacho, o que pode dar alguma margem de manobra ao presidente da República, caso este considere fundamental a aprovação do Orçamento do Estado para que o governo não fique refém de um regime de duodécimos - que significa que o executivo em gestão só pode gastar 1/12 da despesa prevista no OE de 2023.
Nesse caso, o despacho será publicado apenas depois e 29 de Novembro e o Orçamento do Estado para 2024 passará.
Esta é uma solução que não agrada aos partidos da oposição, que consideram impensável herdar um Orçamento, que é um instrumento da gestão e políticas, de um governo que não é o seu.
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