A minha mulher e eu, somos pais de quatro filhos com idades entre os 6 e os 15 anos. Estamos em casa em teletrabalho. Eu, jornalista, ela, advogada.

Nesta altura, somos também “professores”. Da matemática à ginástica. Vestimos o avental de “cozinheiros”, despachamos pequenos-almoços, almoços e jantares. O resto fica à mão de semear de cada um. Somos ainda animadores dos tempos livres.

Temos rituais que se repetem mais do que o habitual. Estamos todos em casa. Mas não encerrados. Permanecemos “livremente” nas nossas quatro paredes.

Abrir a máquina de lavar louça, pôr pratos, copos e talheres, pastilha, fechar, dedo no programa e lavar. Um gesto, mecânico, reproduzido na máquina da roupa. Arrumamos, aspiramos, limpamos o pó, fazemos camas, só não passamos a ferro. Em cadeia, todos são convidados para as tarefas. Uns cumprem mais que outros.

Trabalhamos, ensinamos, aprendemos e fazemos contas à vida. No intervalo de qualquer coisa, abrir armários, frigorífico, fazer um inventário do que há e pensar no que nos apetecia e ... comer qualquer coisa. Só porque sim. Afinal, cozinhar e comer são programas de verdadeiro entretenimento. E uma ocupação vira descanso.

Depois, há que fazer isso mesmo. Trabalhar. Esse é o ponto que, a par com a “escola em casa”, nos lembra que não é fim de semana, nem férias, e que, para além da casa-filhos-escola-tpc’s-comida-dúvidas-bulhas-brincadeiras que acabam em bulhas, mimos e discussões, temos de trabalhar. Fazer entrevistas ou ter conferências telefónicas na cozinha, na casa de banho, teclar ao som de “oh mãe” ou “oh pai”!

Eu, tal como a minha mulher, somos várias pessoas, várias personagens, num só corpo. Somos tudo isto e mais qualquer coisa 24/7, numa linguagem de trabalho. 24 horas, sete dias da semana. Aqui não é diferente do que se passa noutras casas. Serve de consolo da alma, mas não serve para descansar o corpo, nem a mente.

Volto à primeira frase. Quatro filhos, dos 6 aos 15 anos. Acrescento, por mera curiosidade, todos nascidos no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. No Serviço Nacional de Saúde, S-N-S, essa sigla outrora diabolizada, que agora recebe aplausos nas janelas. As mesmas onde já se pousaram bandeiras de Portugal no Euro2004.



Antes da declaração do Estado de Emergência, já eu tinha acionado um estágio de pré-época na minha própria casa. Antes do fecho de todas as escolas, as quatro onde os meus filhos estudam já tinham dado guia de marcha para limparem as carteiras.

A nossa casa está transformada. Encurtada. Virada de pernas para o ar. No mesmo espaço coabitam uma redação, um escritório, quatro salas de aulas, do 1º, 2º e 3º ciclo de escolaridade, respetivos recreios e cantinas. O corredor, os quartos, a sala e cozinha viraram recreio, campo de râguebi, de futebol e ginásio para manter o corpo são na mente que se quer igual. Tudo tão apertado que me leva a recuperar um sonho. Uma viagem, de barco, com a família, durante um largo período. Estou no início do teste em 130 m2. A realidade, se for, será bem mais estreita.

Nos dias úteis, há regras e rotinas a cumprir. Disciplina. Acordar, vestir, como estivéssemos prontos para sair porta fora. Como não há tempo perdido numa deslocação, ganhamos minutos para dormir mais um pouco. E para nós mesmos, na hora de chegar a casa sem sair dela. Uma calmaria que veio substituir a correria.

As aulas, todas online, entram pela porta da internet sem pedir licença. Material descarregado, vídeos, trabalhos pelas plataformas indicadas, informações por email e WhatsApp. Matéria do dia, para as 24 horas seguintes e calendário da semana.

Há horários a cumprir. Manhã e tarde. Português, Ciências, História e Estudo do Meio. E tarefas. Muitas. As crianças (e os pais) vão aos sites, colocam passwords, assistem e descarregam material que chega por email. Quase como nada se passasse, quando tudo se está a passar ao contrário do que estamos habituados. Aulas virtuais, escolas virtuais, numa vida real. Que é e será diferente, à qual nos tivemos de habituar de uma sexta para segunda-feira.

Faço de professor do benjamim da família. Desenho a letra Q, ajudo na frase em letra pegada e escuto uma canção qualquer. Vejo-me confrontado com uma dúvida de matemática sobre figuras simétricas. Sempre me verguei à enorme utilidade desta disciplina (e da história), comprovado com as previsões relativas à Covid-19, em diferentes campos da nossa vida, da meteorologia ao desporto, por exemplo. Mas, mais vergado estou com a incapacidade de dar uma resposta imediata à questão colocada. Mais facilmente descobrem a solução (vacina) para a pandemia que eu acerto na resposta ao problema. Uma das minhas fragilidades fica à vista. De todos.

Ajudo menos os outros. Mais velhos. Faço de fiscal. Espio. Vejo se estão a beber conhecimentos ou a debitar verbos nas redes sociais. Tiro dúvidas com os professores. Aprendo. E, dou-me por mim a preparar as aulas do dia seguinte. Enquanto trabalho.

Quatro filhos, quatro salas de aula em casa, pressupõe quatro computadores. Desculpem, professores, aqui não há. Entre um tablet, um computador (deles) e telemóveis, rodam como o jogo da dança de cadeiras. É o que se arranja. Sem queixas.

Vejo-me, como todos os pais, confrontado com um enorme desafio. Que é válido para os meus filhos. Olharem para mim como professor, durante parte do dia. E não como pai. Garanto, não é fácil. Uma vénia aos professores que também eles se reconfiguraram nos tempos que correm. São também heróis nesta guerra.

Claro que há intervalos. E tempo para nós. Pausas. Porque é assim lá fora. E quanto mais não seja para interromper a viagem de trotinete de quem tem seis anos e pergunta cada vez que tosse se tem “o coronavírus”.

Os dias começam e acabam cedo. Sinto-me, às vezes, um hamster. Depois das aulas, as portas das traseiras são a nossa saída de emergência. Uma porta aberta ao quarteirão que se fechou em si mesmo. Vamos para as escadas e para o pátio do prédio. Neste bairro antigo onde moro, começamos todos a olhar para parte de trás das nossas casas. É para aqui que todos os vizinhos confluem. Vamos todos para fora, cá dentro. Escuto música, do deep house do vizinho solteiro, à viola do adolescente, às conversas de quem montou uma horta. E andamos de bicicleta em círculo fechado.

Vejo, nas redes sociais, desabafos de mães e pais a exclamarem que são tempos de todos nós nos conhecermos melhor. Agradeço. No meu caso, já conheço de ginjeira o que tenho em casa. Ainda não dobraram a esquina e já sei o que querem ou o que fizeram. O mesmo é válido em sentido inverso. Um ponto positivo no recolhimento recomendado. As célebres frases de manipulação de “a mãe disse” ou pedirem para “ligar à mãe” são desmascaradas à distância de três passos.

Passaram só cinco dias. E parece que nunca mais é sábado (hoje). Longos dias da nossa vida, do resto das nossas vidas. Recordo-me de Sérgio Godinho. Assistimos aos concertos que os artistas dão de suas casas. Recordo-me de um dos hinos do meu segundo clube de eleição: “You’ll never walk alone”.

Respondemos aos desafios colocados na internet, a porta de saída para o mundo. Há os toques no papel higiénico. Estou prestes a lançar outro. Ao som de “I want to break free”, de Freddie Mercury, para ver quem aspira melhor.

Nestes tempos em que voltamos todos a fazer aquilo que estava de lado, a conversar mais uns com os outros, não posso deixar de partilhar. Nunca recebi tanta mensagem via WhatsApp com anedotas, vídeos carregados de humor de que como o mundo está a lidar com a situação e imagens de senhoras, mais ou menos destapadas, da cintura para cima...e para baixo. Não queria imaginar esta quarentena sem redes sociais e sem internet. Acrescento: e sem o nosso Serviço Nacional de Saúde.

Por fim, em jeito de remate final, entre corridas diárias, de curta duração, seguindo à risca o que a Lei permite, na rua cruzo-me com vizinhos idosos. Pergunto se necessitam de algo. A resposta é fulminante. Agradecem, mas eles mesmos, de mãos dadas, querem ver a rua. Ir ao pão, ao quiosque e ao supermercado...

Contaremos os dias, entre riscos na parede, até chegar ao fim aquilo que nos empurrou para casa. A Covid-19 não é substituída pelo COVID(IZER). Mas sim, pelo CO(N)VID(AR). Convidar a estar, pensar, aprender, falar, ler, ensinar, brincar, e, acima de tudo, a amar. Não matamos o tempo. Nenhum de nós. Vivemo-lo, somente, de forma diferente. Livremente em casa. Num mosteiro cheio de barulho.