O livro é intitulado “Ao Serviço de Portugal - Uma viagem ao Interior dos Serviços Secretos” e é editado pela Contraponto, chancela do Grupo Bertrand Círculo para a publicação de livros de não ficção, e chegará às livrarias na sexta-feira.
Começando pelas suas memórias da sessão do julgamento em que ouviu a sentença do “caso das secretas”, em 2016, Jorge Silva Carvalho salienta que as juízas ficaram “chocadas” com uma das suas confissões, o acesso ilícito à fatura detalhada do telemóvel do então jornalista do Público Nuno Simas, em 2010.
A partir daí, num exercício em que relata factos passados como meras hipóteses, Silva Carvalho descreve outras situações da sua vida profissional de espião que poderiam ter “chocado as juízas” por infringirem a lei, a começar por um assalto a uma sede partidária nos anos de 1990.
“Ninguém naquele tribunal iria acreditar em mim se lhes tivesse dito, por mera hipótese, que aos 27 anos teria entrado na sede de um partido político português de extrema-esquerda para retirar as fichas de inscrição dos militantes”, refere, no primeiro capítulo.
A operação das secretas na sede desse partido, que Silva Carvalho não diz qual é mas que a Revista Sábado afirma ser o extinto PSR, (um dos que deu origem ao Bloco de Esquerda) terá decorrido numa madrugada sem ninguém dar por isso, com o intuito de “saber quem eram as pessoas envolvidas” em supostas ligações com o grupo separatista ETA.
Voltando a um dos crimes dados como provados, Silva Carvalho refere que “o acesso a faturas detalhadas através de fontes que os serviços de informações tinham e terão de ter nas operadoras de telecomunicações, está longe de ser inopinado, antes é uma prática habitual existente, embora de forma muito cuidada e não generalizada”.
Em tom justificativo e ao mesmo tempo sem querer comprometer os serviços globalmente, Silva Carvalho afirma que seria considerado “fantasista” se “tivesse de dizer” que era habitual e comum as secretas usarem equipamento de “escutas ambientais” e montarem operações com pessoal caracterizado, “com agentes disfarçados de pedintes, de vendedores de flores” e que criavam situações “imaginativas” para “ultrapassar as limitações materiais e legais”.
No livro e também como cenário hipotético, Silva Carvalho dá ainda a entender que terá recrutado jornalistas como fontes dos serviços de informações e, mais à frente, afirma mesmo que os serviços pagavam a jornalistas para “trazerem informações”.
Escutas ambientais, recolha de informação contornando os canais oficiais e hierarquizados, incluindo em missões militares no estrangeiro, “equipas de vigilância” a entrar em quartos de hotel para obter informação de hóspedes “alvo” foram alguns exemplos de práticas referidas no livro.
O espião admitiu que se os tribunais quiserem classificar como “ilegais, de forma literal, estas atividades ou práticas dos serviços, podem fazê-lo”, apesar de não ser essa a sua interpretação, preferindo considerar que serviram um “bem superior”.
Entre os episódios relatados, Silva Carvalho recorda também uma tarefa “particularmente divertida”, a de descobrir quem era uma “brasa de mulher” que aparecia, numa fotografia de jornal, próximo do então primeiro-ministro Cavaco Silva, “a entrar num hotel com o seu `staff´ habitual”.
A operação exigiu que frequentasse “casas onde as meninas dançavam” até que descobriu que se tratava de uma prostituta estrangeira que apareceu na fotografia por acaso e que estava em “inocência total”.
Definindo os serviços de informações como órgãos do Estado que têm o objetivo de “perceber de onde vêm as ameaças”, Silva Carvalho disse que, enquanto diretor-geral do SIED nunca aceitaria uma ordem do primeiro-ministro para, por exemplo, investigar um partido político, “como sucedeu com o SIS” quando tinha 26 anos.
“Não aceitaria uma ordem dessas como não aceitei a indicação dada para falar com os serviços ingleses por causa da pressão que as autoridades britânicas estavam a fazer em torno do processo `Freeport´ e que envolvia o primeiro-ministro da altura, José Sócrates”, escreve.
As relações com os militares, potenciais fontes e alvos de recrutamento, também são referidas no livro. Silva Carvalho recorda que nas funções como diretor do SIED deu instruções para que, “se fosse necessário recrutar um militar português no estrangeiro, se recrutar”, visando “ir buscar informação onde quer que ela estivesse, de forma fácil e segura”, ainda que contornando os canais oficiais.
Jorge Silva Carvalho foi julgado e condenado em 2016 por violação do segredo de Estado, acesso a dados pessoais, abuso de poder e devassa da vida privada do jornalista Nuno Simas, que tinha escrito sobre a insatisfação que a reorganização promovida pelo espião estava a gerar nos serviços.
“Ao procurar confirmar quem era o traidor lá dentro, cometi um erro grave, não por mim, mas porque afetava o serviço. Mas esse é o ponto crucial do caso: eu sabia que aquela fonte interna, tal como acontecera ali, iria mais à frente falar de outra coisa qualquer”, afirma.
Sobre o futuro dos serviços de informações, Silva Carvalho defende que é necessário “dar aos serviços as capacidades de que eles precisam dentro de um espaço legal aceite socialmente”. Uma das capacidades mais defendidas por Silva Carvalho é a possibilidade de os serviços acederem aos “metadados” das comunicações alegando que, mais do que saber o que as pessoas estão a dizer, os serviços têm de “perceber onde elas estão”.
Silva Carvalho adverte que haverá sempre uma parte da atividade dos serviços de informações que a opinião pública “não está preparada para entender e, sobretudo, que o mundo judicial e legalista também não está preparado para aceitar, na medida em que possa ir um pouco para lá da lei”.
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