No caso do Brasil, a nível político, “não só as instituições têm de se renovar como as gerações têm de se renovar”, afirmou em entrevista à Lusa Fernando Henrique Cardoso, que foi Presidente entre 1995 e 2003.

“Os tribunais estão funcionando, o congresso está tomando decisões e a liberdade se manteve. Alguns setores estão assustados, e têm lá as suas razões, mais pela verbalização do que pela ação”, do atual Presidente, considerou Fernando Henrique Cardoso.

No “desenho das instituições [políticas] tem alguma coisa que não está funcionando. Eu acho que é preciso uma reforma viável”, afirmou.

E para que essa reforma avance, é necessário levar o povo a acreditar nos partidos, defendeu Fernando Henrique Cardoso.

Neste contexto, disse que “a reforma mais importante é mudar o voto, fazer o voto distrital misto, para aproximar mais o eleitor do seu representante”, em vez de ter por base a eleição por estado.

Na opinião do antigo chefe de Estado do Brasil, não pode continuar a existir a distância que hoje existe entre as duas figuras. Porque “o eleitor vota e esquece em quem votou”.

“Você vota numa lista enorme de pessoas e a base eleitoral é o estado. Ora, só o estado de São Paulo tem 45 milhões de habitantes”, explicou.

Por isso, o antigo chefe de Estado defendeu que “a reforma política sensata é introduzir o voto distrital misto, para fortalecer partidos”.

“É preciso ter instituições fortes, que garantam a continuidade, porque o grande chefe morre. No Brasil de hoje quem é que é grande chefe? Não sei. Os que existiam estão na cadeia. O Lula foi, mas está na cadeia. Então o melhor caminho não é o dos líderes carismáticos”, afirmou.

Por isso, lamentou que o Governo atual, liderado por Jair Bolsonaro, nada tenha feito para a reforma das instituições políticas.

“Ele [Bolsonaro] propôs a reforma da previdência, que já foi proposta por mim, pelo presidente Temer e por outros. Esta reforma é importante, mas a fundamental é a política”, afirmou Henrique Cardoso.

Depois da nova Constituição do Brasil, texto no qual Fernando Henrique Cardoso também participou, “a preocupação e horror na política no Brasil era a autocracia, e então deu-se muita liberdade à formação de partidos”, recordou.

Por isso “o sistema brasileiro foi-se fragmentando”, com 25 partidos legalizados”, que passaram a “ser corporações, interesses dos próprios parlamentares”, explicou o antigo Presidente.

Além da reforma política, o Brasil está também a precisar de mudança e de novas lideranças, que possam conduzir o país por um novo caminho.

Na sua opinião, alguns dos novos eleitos “vão ser líderes porque têm força institucional. Os governadores de São Paulo e de Minas têm força política e institucional. Mas isso é suficiente? Não. A expressão é nacional e não está claro quem vai ter essa expressão nacional”.

“Eu mencionei o governador de São Paulo, porque ele tem presença, São Paulo é São Paulo. Haverá outros. O PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira, o de Fernando Henrique Cardoso) tem mais dois, que é o do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso. O do Rio Grande do Sul é uma pessoa jovem”, indicou.

“Mas vai demorar tempo até que apareça alguém que crie uma nova coesão”, porque “Bolsonaro não vai conseguir isso. Bolsonaro não tem mensagem. A mensagem dele é negativa”.

Bolsonaro não restabeleceu confiança na economia brasileira

“A nossa economia está estagnada, não está crescendo, está andando para trás há alguns anos, designadamente desde o segundo mandato da Presidente Dilma Rousseff”, afirmou Fernando Henrique Cardoso.

créditos: ANTÓNIO COTRIM/LUSA

“A taxa de desemprego é muito elevada. É por volta de 12 a 13% da população ativa”, afirmou, considerando que o país vive “uma situação difícil, que requer medidas para restabelecer o crescimento”.

O sociólogo propõe mudanças estruturais: No Brasil, “o modelo de utilização de recursos gerados pela economia é um modelo desigual, muito desigual. Então ao mesmo tempo têm de se tomar medidas que aliviem esta desigualdade”.

Por isso, é preciso investir no bem-estar das pessoas, na saúde, educação e também na segurança pública, considerou.

O ex-Presidente, cujo mandato ficou marcado pelas privatizações e a consolidação do Plano Real para a estabilização da moeda brasileira, apontou o dedo aos erros políticos e à conjunta internacional como os principais motivos para a crise sistémica

O Brasil tem uma economia alicerçada na agricultura e exploração de minérios. “Ora nós não controlamos o preço nem de um nem de outro [setor] , são commodities, que quem controla é o mercado internacional”, afirmou.

No seu entender, o país “é, talvez, o país mais industrializado da América Latina, mas talvez nós não tenhamos os elos com a inovação necessários e o mundo moderno inova muito”, disse, dando o exemplo daquilo que classificou como a “revolução da inteligência artificial” ligada à indústria, em que o “Brasil está um pouco à margem desse processo”.

A crise das finanças públicas está a provocar um aumento da dívida pública: “o endividamento é crescente e o governo gasta mais do que recolhe. E recolhe menos porque a economia não cresce, mas sobretudo porque as reformas não foram feitas, especialmente as da previdência social e a tributária”.

“Então não são problemas só de conjuntura, mas há problemas de orientação” interna que contribuem para a crise, considerou.

“No Brasil o que mais falta neste momento é estratégia, para onde é que nós vamos. Dá impressão que estamos fazendo uma transição, mas não se sabe para que lado vai, o que é que vai ser a alavanca que vai restabelecer a confiança”, disse à Lusa Fernand Henrique Cardoso.

Na sua opinião, “os grandes erros começaram no Governo de Dilma Rousseff, em que se instalou a ideia de que se pode consumir sem produzir”, mas o “governo atual não conseguiu restabelecer essa confiança. E esse é o problema mais sério que existe no momento”

“Sem confianças não há investimento e sem investimento não há emprego, não há renda que aumente. E essa é a questão central”, avisou o ex-chefe de Estado, que admitiu que essa falta de confiança se reflete também na capacidade de atração de investimento estrangeiro, nomeadamente português.

“Acho que o Brasil é um mercado importante, vai ser importante. Somos 210 milhões de pessoas. Isso é muita coisa e já temos uma grande capacidade de compra. E quanto mais puderem investir melhor para elas e para o Brasil”, afirmou o sociólogo e político brasileiro, agora com 88 anos.

“Tem de haver confiança no mercado e no Governo. Eu acho que o governo atual não inspira essa confiança. Mas o Brasil inspira. o Brasil tem condições económicas de crescer. Não são todos os países que tem”, acrescentou.

O antigo presidente, que cumpriu dois mandatos à frente do Brasil, numa altura em que várias empresas portuguesas, entre elas algumas das maiores da altura, como a EDP e a PT, investiram naquele país, muitas sem sucesso, considera que “olhando a situação, o Brasil tem um mercado tão grande que há várias possibilidades”.

Por isso, reforçou: “Apesar destes ziguezagues, eu confio no país”. Já “no Governo tenho mais dúvidas”.

Sobre Portugal, Fernando Henrique Cardoso recordou que teve sempre relações de amizade com os políticos portugueses, à semelhança do seu sucessor no Planalto, Lula da Silva. “Isso facilitava bastante o relacionamento”, afirmou.

“Já a presidente Dilma [Rousseff, que sucedeu a Lula da Silva] era menos afeita e o presidente Bolsonaro dá a impressão de não ser também desse jeito”, considerou.

“Acho que não estamos num momento de grande proximidade” entre os dois países, concluiu.

CPLP deixou de ser importante para o Brasil com Bolsonaro

O antigo Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso defendeu hoje que é “importante” o seu país manter-se na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), mas acha que o atual Governo brasileiro não vê interesse na organização.

"Como atitude é bom que o Brasil se mantenha na CPLP. Economicamente não, mas culturalmente é importante. Mas os brasileiros muitas vezes não sabem disso", afirmou Fernando Henrique Cardoso em entrevista à Lusa em Lisboa.

Porém, o ex-Presidente não vê que a organização "tenha interesse" para o atual governo brasileiro, liderado por Jair Bolsonaro.

"O governo de Bolsonaro não demonstrou até agora, na política externa, outros interesses que não sejam com os Estados Unidos. Com o mundo ocidental cristão".

Ora, sendo o maior cliente do Brasil a China, "esse é um problema objetivo", afirmou.

Para o antigo Presidente, o seu país "não pode tomar uma posição antecipadamente a favor de um dos lados (...). Temos é que ver qual é o nosso interesse nacional".

Mas, neste momento o Brasil está "um pouco paralisado por uma luta ideológica, que não tem nada a ver com o interesse real das pessoas do Brasil", referiu.

"Eles inventaram um fantasma, um mundo antiocidental, anticristão", afirmou, referindo-se ao atual executivo brasileiro.

Ainda em relação à CPLP aponta que o Brasil tem interesse direto em alguns países de África: “Na CPLP o que contava mais para nós era Angola e um pouco de Moçambique", em termos económicos.

Mas esse interesse diminuiu, também graças à Lava Jato, considerou Henrique Cardoso, a mega operação de investigação anticorrupção levada a cabo no Brasil, que conduziu muitas das figuras do mundo empresarial e político do Brasil à prisão nos últimos anos.

"Empresas brasileiras que se multinacionalizaram sofreram com o processo da Lava Jato. Esse foi também um erro da Lava Jato, porque não responsabilizaram só os empresários, acabaram com as empresas, e isso é ruim para o país. Nós perdemos instrumentos de ação empresarial", afirmou Henrique Cardoso.