No princípio, Deus criou o céu e a terra.

Introdução

CIMA VERSUS BAIXO

Olhe para baixo. O que vê? As suas mãos, a sua mesa, o chão, talvez uma chávena de café, um computador ou um jornal. O que têm em comum? São coisas em que pode tocar. O que vê quando olha para baixo são coisas que estão ao seu alcance, coisas que pode controlar imediatamente, coisas que pode mover e manipular sem um planeamento prévio, sem esforço, sem pensar. Quer resulte do seu trabalho, quer da gentileza de outra pessoa, ou da simples boa sorte, muito do que vê quando olha para baixo é seu. São coisas suas.

Agora olhe para cima. O que vê? O teto, talvez uns quadros na parede ou coisas do lado de fora da janela: árvores, casas, prédios, nuvens — tudo o que está à distância. O que têm em comum? Para lhes chegar, tem de planear, pensar, calcular. Mesmo que seja pouco, requer algum esforço, coordenação. Ao contrário do que vemos quando olhamos para baixo, o reino de cima mostra -nos coisas que, para as termos, exigem que se pense nelas e implicam algum trabalho.

Parece simples porque é simples. Ainda assim, para o cérebro, esta distinção é a fronteira entre duas maneiras muito diferentes de pensar — duas formas radicalmente diferentes de lidar com o mundo. No seu cérebro, o mundo de baixo é governado por uma mão-cheia de químicos — neurotransmissores, diz-se — que lhe permitem sentir satisfação e felicidade com o que tem aqui e agora. Mas quando vira a atenção para o mundo de cima, o seu cérebro trabalha com um produto químico diferente — uma só molécula — que não só lhe permite mover -se para lá do que tem ao alcance de uma mão, mas também o motiva para controlar e possuir o mundo que não está ao alcance dos seus sentidos. Leva-o a procurar essas coisas mais longe, quer coisas físicas, quer coisas que não se deixam ver, como o conhecimento, o amor ou o poder. Quer seja pegar no saleiro do outro lado da mesa, ir à Lua numa nave espacial ou adorar um deus além do espaço e do tempo, este químico dá-nos um telecomando, que operamos à distância, seja ela geográfica ou intelectual.

Estes químicos de baixo — chamemos-lhes «Aqui e Agora» (A&A) — permitem -lhe experimentar o que está à sua frente. Deixam-no saborear e gozar, ou talvez combater ou fugir, no imediato. O químico de cima é diferente. Fá-lo desejar o que ainda não tem e leva-o a procurar coisas novas. Recompensa-o quando lhe obedece e fá-lo sofrer quando desobedece. É fonte da criatividade e, no extremo do espectro, da loucura; é chave da dependência e caminho para a recuperação; é o pedaço de biologia que faz um executivo ambicioso sacrificar tudo em função do êxito, que faz os atores, empreendedores e artistas de sucesso continuar a trabalhar muito depois de terem todo o dinheiro e toda a fama com que alguma vez sonharam; e que faz um marido ou uma mulher satisfeitos arriscar tudo pela emoção de alguém novo. É a fonte da inegável «comichão» que leva os cientistas a encontrar explicações e os filósofos a encontrar ordem, razão e sentido.

É a razão pela qual olhamos para o céu à procura de Deus e de redenção; é porque o Paraíso está lá em cima e a Terra, cá em baixo. É o combustível dos nossos sonhos; é a origem do nosso desespero quando falhamos. É a razão por que persistimos e somos bem-sucedidos; por que descobrimos e prosperamos. Também é a razão por que nunca estamos contentes durante muito tempo.

É Desta Que Leio Isto: Ela tinha o dever de deslumbrar. Em maio, Filipa Martins traz-nos a biografia de Natália Correia

Filipa Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de maio, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia", que chegou às livrarias a 16 de março, dia em que se cumpriram 30 anos sobre a morte da poetisa.

Esta obra mostra Natália Correia como símbolo das inquietações do século XX português e uma mulher "precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada".

Finalista dos Prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, Filipa Martins dedicou-se – nos últimos seis anos – a estudar a vida e a obra de Natália Correia, tendo sido coautora de um documentário e coargumentista de uma série de televisão sobre esta escritora açoriana.

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Para o nosso cérebro, esta simples molécula é o grande equipamento multifunções que nos urge, através de milhares de processos neuroquímicos, a ir além do prazer de apenas ser, para explorar o universo de possibilidades que se cria quando imaginamos. Mamíferos, répteis, aves e peixes, todos os animais têm este químico nos seus cérebros, mas nenhuma criatura o tem mais do que o ser humano. É bênção e praga, motivação e recompensa. Carbono, hidrogénio, oxigénio, mais um átomo de nitrogénio — é simples na forma e complexa no resultado. É isto a dopamina, a molécula que narra nada mais, nada menos do que a história do comportamento humano.

E se a quer sentir neste preciso instante, se a quer pôr ao comando, pode fazê -lo.

Olhe para cima.

NOTA DOS AUTORES

Recheámos este livro com as experiências científicas mais interessantes que pudemos encontrar. Ainda assim, algumas partes são especulativas, especialmente nos últimos capítulos. Além disso, há pontos em que simplificamos ao máximo para tornar o material mais fácil de entender. O cérebro é tão complexo que mesmo o mais sofisticado neurocientista tem de simplificar para construir um modelo cerebral capaz de ser compreendido. Por outro lado ainda, a ciência pode ser confusa. Por vezes, os estudos contradizem-se e leva algum tempo a perceber quais são os resultados corretos. Rever todos os estudos rapidamente seria fastidioso para o leitor, pelo que selecionámos os que influenciaram seriamente o conhecimento do cérebro e que refletem o consenso científico, quando existe.

A ciência não é só confusa; por vezes, pode ser bizarra. A procura do entendimento do comportamento humano pode tomar formas estranhas. Não é como estudar produtos químicos num tubo de ensaio ou mesmo infeções em pessoas. Os investigadores do cérebro têm de achar maneira de desencadear comportamentos em ambiente de laboratório — por vezes, comportamentos sensíveis motivados por paixões como o medo, a cobiça ou o desejo sexual. Quando possível, escolhemos estudos que sublinham esta estranheza.

O estudo dos humanos em todas as suas formas é delicado. Não é o mesmo que a prática clínica, em que um médico e um doente trabalham em conjunto para tratar uma doença. Nesse caso, escolhem o tratamento que entendem ser melhor para a situação e o único objetivo é deixar o doente mais saudável.

O objetivo da investigação, por outro lado, é responder a uma questão científica. Mesmo que os cientistas trabalhem para minimizar os riscos para os participantes num estudo, a ciência tem de vir primeiro. Por vezes, o acesso a tratamentos experimentais pode salvar a vida de um participante, mas geralmente os sujeitos da investigação estão expostos a riscos que não experimentariam no curso de cuidados médicos normais.

Quando se voluntariam para participar em estudos, as pessoas sacrificam alguma segurança em benefício de outros — pessoas doentes que terão uma vida melhor se a investigação resultar. É como um bombeiro que corre para dentro de um edifício em chamas para resgatar pessoas encurraladas, escolhendo colocar-se a si mesmo em perigo pelo bem dos outros.

O elemento-chave, claro, é que o participante tem de saber exatamente em que é que se está a meter. Chama -se a isto conhecimento informado e normalmente vem na forma de um longo documento que explica o objetivo da investigação e elenca os riscos envolvidos. É um bom sistema, embora não seja perfeito. Os participantes nem sempre o leem com cuidado, especialmente se for muito longo. Por vezes, os investigadores deixam elementos de fora porque o engano é parte essencial do estudo. Mas, no geral, os cientistas dão o seu melhor para se assegurarem de que os participantes são parceiros de livre vontade na solução dos mistérios do comportamento humano.

O amor é uma necessidade, um desejo,
um impulso para procurar o maior prémio da vida.

Helen Fisher, antropóloga e bióloga

Capítulo 1

AMOR

Encontrou a pessoa por quem esperou toda a vida.
Então porque é que a lua de mel não dura para sempre?

No qual exploramos os produtos químicos que nos fazem querer sexo e apaixonarmo-nos — e o porquê de, mais cedo ou mais tarde, tudo mudar.

Shawn limpou um bocado do espelho embaciado da casa de banho, passou os dedos pelo cabelo preto e sorriu.

— Isto vai funcionar — disse.

Deixou cair a toalha e admirou os abdominais. A sua obsessão com o ginásio já lhe tinha dado dois terços do pacote de seis. Depois, a mente voou para uma obsessão mais premente: não saía com ninguém desde fevereiro. O que era uma boa maneira de dizer que não fazia sexo há sete meses e três dias — e ficou perturbado por ter as contas tão precisas. Isto vai acabar hoje à noite, pensou.

No bar, avaliou as possibilidades. Havia muitas mulheres atraentes por ali — ainda que a aparência não fosse tudo. Sentia falta de sexo, claro, mas também sentia falta de alguém na sua vida, alguém a quem enviar mensagens sem motivo, alguém que fosse a parte boa dos seus dias. Considerava-se um romântico, mesmo que naquela noite procurasse apenas sexo.

Cruzou olhares com uma rapariga que ouvia um amigo tagarela numa mesa de pé alto. Tinha cabelos escuros e olhos castanhos, e destacava-se porque não estava com o conjunto habitual dos sábados à noite; usava sapatilhas em vez de saltos e Levi's em vez de roupa de estilo. Apresentou -se e a conversa fluiu com facilidade. O nome dela era Samantha e a primeira coisa que disse foi que se sentia mais confortável a fazer aeróbica do que a beber cervejas. Isso levou a uma discussão aprofundada sobre ginásios, aplicações de fitness e os méritos relativos de ir ao ginásio de manhã ou à tarde. No resto da noite, Shawn manteve-se ao pé dela e ela rapidamente concluiu que gostava de o ter ali.

Foram muitos os fatores que os levaram a um relacionamento de longo prazo: os interesses comuns, a facilidade que sentiam em falar e estar um com o outro, até as bebidas e um pouco de desespero. Mas nada daquilo foi a verdadeira chave para o amor. O grande fator foi que ambos estavam sob a influência de um produto químico que lhes alterava as mentes. As deles e as do resto das pessoas no bar.

E, afinal, também a do leitor.

O QUE É MAIS PODEROSO DO QUE O PRAZER?

A dopamina foi descoberta no cérebro em 1957 por Kathleen Montagu, uma investigadora de um laboratório do Runwell Hospital, perto de Londres. De início, era vista simplesmente como uma maneira de o corpo produzir um químico chamado norepinefrina, que é o nome que a adrenalina leva quando é encontrada no cérebro. Mas depois os cientistas começaram a observar coisas estranhas. Só 0,0005% das células cerebrais produzem dopamina — uma em cada dois milhões — e, ainda assim, estas células parecem exercer uma influência enorme no comportamento. Os participantes nas pesquisas sentiam prazer quando ligavam a dopamina e davam-se a grandes esforços para desencadear a ativação destas células raras. De facto, nas circunstâncias certas, torna-se impossível resistir à procura da ativação da dopamina para nos sentirmos bem. Alguns cientistas batizaram a dopamina como «molécula do prazer», e ao caminho que as células produtoras de dopamina fazem através do cérebro chamaram «circuito da recompensa».

A reputação da dopamina como molécula do prazer foi cimentada com experiências com toxicodependentes. Os investigadores injetaram-nos com uma combinação de cocaína e açúcar radioativo, o que permitiu aos cientistas perceber que partes do cérebro queimavam mais calorias. Quando a cocaína intravenosa fez efeito, pediu-se aos participantes que classificassem o grau da droga. Os cientistas descobriram que quanto maior era a atividade do circuito de recompensa da dopamina, maior o pico da droga. À medida que o corpo retirava a cocaína do cérebro, a atividade da dopamina diminuía e a «pedrada» desvanecia-se. Estudos posteriores produziram resultados semelhantes. O papel da dopamina como molécula do prazer ficava, assim, estabelecido.

Outros investigadores tentaram duplicar os resultados, e foi então que coisas inesperadas começaram a acontecer. Achavam que era pouco provável que os circuitos da dopamina evoluíssem no sentido de encorajar as pessoas a usar drogas. As drogas estavam provavelmente a causar uma estimulação artificial da dopamina. Parecia mais provável que os processos evolucionários que aproveitaram a dopamina fossem promovidos pela necessidade de motivar a sobrevivência e a atividade reprodutiva. Assim, substituíram a cocaína por comida, esperando ver o mesmo efeito. O que descobriram surpreendeu toda a gente. Era o princípio do fim da dopamina enquanto molécula do prazer.

A dopamina, como já se percebeu, não tem nada que ver com o prazer. A dopamina provoca uma sensação muito mais poderosa. Verificou-se que a compreensão da dopamina era a chave para a explicação de comportamentos e até para a sua predição num espectro espetacularmente amplo do comportamento humano: a criação de arte, literatura e música; a busca do êxito; a descoberta de novos mundos e de novas leis da natureza; pensar em Deus… e ficar apaixonado.

*

Shawn sabia que estava apaixonado. As suas inseguranças tinham derretido. Cada dia que passava fazia-o sentir-se mais à beira de um futuro maravilhoso. À medida que passava mais tempo com Samantha, a sua excitação crescia e a sua sensação de antecipação tornou-se constante. Cada coisa que pensava sobre ela sugeria possibilidades ilimitadas. Quanto ao sexo, a sua libido estava mais forte do que nunca, mas só para ela. As outras mulheres deixaram de existir. Melhor ainda: quando tentou confessar toda essa felicidade, Samantha interrompeu-o e disse que sentia exatamente o mesmo.

Shawn queria ter a certeza de que ficariam juntos para sempre, por isso um dia pediu-a em casamento. E ela disse que sim.

Poucos meses depois da lua de mel, as coisas começaram a mudar. No início, estavam obcecados um com o outro, mas, com o passar do tempo, essas saudades tornaram-se menos desesperadas. A crença de que tudo era possível tornou-se menos certa, menos obsessiva, menos o centro de tudo. A euforia diminuiu. Não eram infelizes, mas a satisfação dos primeiros tempos começava a desvanecer-se. A sensação de possibilidades ilimitadas começou a parecer irrealista. Os pensamentos sobre o outro, que costumavam ser constantes, deixaram de o ser. Outras mulheres começaram a chamar a atenção de Shawn, ainda que ele não quisesse trair Samantha. Samantha também se permitia de vez em quando «flirtar», mesmo que isso não passasse de uma troca de sorrisos com um rapaz na fila da caixa do supermercado.

Eram felizes juntos, mas o brilho dos primeiros tempos da sua nova vida desvanecia -se. A magia, fosse ela o que fosse, estava a apagar-se.

Igual à minha última relação, pensou Samantha.

Já vi este filme, pensou Shawn.

MACACOS, RATOS E O PORQUÊ DE O AMOR SE APAGAR

De certa forma, os ratos são mais fáceis de estudar do que os humanos. Os cientistas podem fazer muito mais com eles sem terem de se preocupar com o departamento de ética a bater-lhes à porta. Para testar a hipótese de a dopamina ser estimulada tanto pela comida como pelas drogas, implantaram elétrodos no cérebro de ratos para poderem medir diretamente a atividade dos neurónios da dopamina. Depois construíram gaiolas com entradas para bolinhas de ração. Os resultados foram os esperados. Mal largavam a primeira ração, os sistemas de dopamina dos ratos iluminavam-se. Êxito! As recompensas naturais estimulam a atividade da dopamina, a exemplo do que ocorre com a cocaína e com outras drogas.

Depois fizeram algo que os investigadores originais não tinham feito. Continuaram a monitorizar o cérebro dos ratos à medida que as bolinhas de comida eram lançadas na calha, dia após dia, e os resultados foram totalmente inesperados. Os ratos devoravam a comida com o mesmo entusiasmo de sempre. Obviamente estavam a gostar. Mas a sua atividade de dopamina tinha parado. Porque seria que a dopamina parara de disparar, se a estimulação continuava? A resposta veio de uma fonte improvável: um macaco e uma lâmpada.

Wolfram Schultz é um dos mais influentes pioneiros da experimentação com dopamina. Professor de neurofisiologia na universidade suíça de Friburgo, interessou-se pelo papel da dopamina na aprendizagem. Implantou pequenos elétrodos nos cérebros de macacos, em pontos onde as células da dopamina se concentram. Depois colocou os macacos num dispositivo com duas luzes e duas caixas. Periodicamente uma das luzes acendia-se. Uma luz era sinal de que uma bola de ração estava na caixa da direita. A outra significava que havia comida na caixa da esquerda.

Os macacos levaram algum tempo a entender a regra. Primeiro abriam as caixas ao acaso e acertavam em metade das situações. Quando encontravam a comida, as células da dopamina no cérebro iluminavam-se, tal como acontecia com os ratos. Volvido algum tempo, os macacos perceberam os sinais e passaram a escolher sempre a caixa certa — e nessa altura a descarga de adrenalina passou a dar-se não com a descoberta da comida, mas com o acender da luz. Porquê?

Ver a luz acender-se não deixou de ser inesperado. Mas logo que os macacos perceberam que a luz significava que estavam prestes a obter comida, a «surpresa» que sentiam passou a vir exclusivamente do aparecimento da luz, não da comida. A partir daqui, surgiu uma nova hipótese: a atividade da dopamina não é um marcador de prazer. É uma reação ao inesperado — à possibilidade, à antecipação.

Enquanto seres humanos, temos uma descarga de dopamina com surpresas prometedoras semelhantes ao acender da luz: a chegada de uma doce mensagem da sua amada (O que dirá?); um email de um amigo que não vê há anos (Que notícias dará?); ou se anda à procura de romance ou de um novo parceiro fascinante na mesa peganhenta do mesmo bar de sempre (O que poderá acontecer?). Mas quando estas coisas se tornam acontecimentos regulares, deixam de produzir explosões de dopamina — e nem a mensagem mais doce ou um email mais longo ou uma mesa melhor as trarão de volta.

Livro: "Dopamina. Como a molécula do desejo controla o amor, o sexo, a criatividade... e determinará o futuro da humanidade"

Autores: Daniel Z. Lieberman e Michael E. Long

Editora: Editorial Presença

Data de Lançamento: 17 de maio

Preço: € 18,90

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Esta ideia simples dá-nos uma explicação química para uma pergunta de sempre: porque é que o amor se desvanece? Os nossos cérebros estão programados para ansiar pelo inesperado e, portanto, para olhar para o futuro, onde começa cada excitante possibilidade. Mas quando algo, incluindo o amor, se torna familiar, essa excitação dissipa -se e novas coisas atraem a nossa atenção.

Os cientistas que estudaram o fenómeno chamaram «Erro de Previsão da Recompensa» à excitação que temos perante a novidade. Estamos sempre a prever o que vem a seguir, desde a hora a que podemos sair do trabalho até ao dinheiro que podemos ter quando vamos ver o saldo ao multibanco. Quando o que acontece é melhor do que o que prevíamos, isso é literalmente um erro na nossa previsão do futuro: talvez tenhamos de sair do emprego mais cedo, talvez tenhamos mais 500 dólares na conta do que aquilo que esperávamos. Esse erro feliz é o que põe a dopamina em ação. Não é o horário reduzido ou o dinheiro extra por si só. É a emoção de boas notícias inesperadas.

De facto, a mera possibilidade de um erro de previsão da recompensa é suficiente para que a dopamina entre em ação. Imagine que vai na rua de sempre a caminho do emprego. De repente, nota que abriu uma nova pastelaria, uma que ainda não tinha visto. Quer imediatamente entrar e ver o que têm. É a dopamina a tomar conta da situação e a produzir uma vontade de apreciar o sabor, a sensação ou a aparência de algo. É o prazer da antecipação — a possibilidade de algo desconhecido e melhor. Está entusiasmado com a pastelaria, mas ainda não comeu nenhum dos seus doces, não provou nenhum dos seus cafés, nem sequer viu como é por dentro.

Entra e pede um café e um croissant. Dá um gole. Os sabores complexos brincam na sua língua. Nunca bebeu café melhor. A seguir dá uma dentada no croissant. Sabe a manteiga e está estaladiço, exatamente como o que comeu há muitos anos num café em Paris. Como é que se sente? A sua vida talvez corra um pouco melhor com esta nova forma de começar o dia. A partir de agora, vai vir aqui todas as manhãs para o pequeno-almoço com o melhor café e o croissant mais crocante da cidade. Vai contar aos seus amigos, provavelmente mais vezes do que eles gostariam de o ouvir. Vai comprar uma caneca com o nome do café e vai ficar ainda mais animado para começar o dia porque, bem, o café é incrível, é por isso. É a dopamina em ação.

É como se se tivesse apaixonado pelo café.

Ainda assim, às vezes, quando conseguimos as coisas que queremos, a sensação não é tão agradável como esperávamos. A excitação dopaminérgica (isto é, a excitação da antecipação) não é eterna, porque o futuro acaba por se tornar presente. O excitante mistério do desconhecido transforma -se na aborrecida familiaridade do dia a dia, ponto final no trabalho da dopamina, e a rotina instala-se. O café e os croissants eram tão bons que fizemos da pastelaria a nossa paragem diária. Mas, passados quinze dias, «o melhor café e croissant da cidade» torna-se o velho pequeno-almoço de sempre.

Mas não foram o café e os croissants que mudaram; foi a nossa expectativa.

Da mesma forma, Samantha e Shawn estavam obcecados um pelo outro até a sua relação se tornar familiar. Quando as coisas entram na rotina diária, deixa de haver erro de previsão da recompensa e a dopamina deixa de ser estimulada para nos dar excitação. Shawn e Samantha surpreenderam-se mutuamente num mar de rostos anónimos num bar, depois ficaram obcecados um pelo outro até que o imaginado futuro de prazer sem fim se tornou na experiência concreta da realidade. A tarefa da dopamina de idealizar o desconhecido chegou ao fim e, portanto, a dopamina desligou -se.

A paixão acontece quando sonhamos um mundo de possibilidades e desfaz -se quando somos confrontados com a realidade. Quando o deus ou a deusa do amor que nos chama para o quarto se transforma num cônjuge sonolento que assoa o nariz a um lenço de papel amarfanhado, a natureza do amor — a razão para ficar — tem de passar dos sonhos dopaminérgicos para… para outra coisa. Mas o quê?

UM CÉREBRO, DOIS MUNDOS

John Douglas Pettigrew, professor emérito de fisiologia na universidade australiana de Queensland, nasceu na cidade deliciosamente chamada Wagga Wagga. Pettigrew teve uma carreira brilhante como neurocientista e é principalmente conhecido por desenvolver a teoria dos primatas voadores, que estabeleceu os morcegos como nossos primos afastados. Enquanto trabalhava nesta ideia, Pettigrew tornou-se na primeira pessoa a esclarecer como é que o cérebro cria um mapa tridimensional do mundo. Isto parece muito distante das relações apaixonadas, mas é um conceito-chave para explicar a dopamina e o amor.

Pettigrew descobriu que o cérebro lida com o mundo exterior dividindo-o em regiões separadas, a peripessoal e a extrapessoal — basicamente, a proximidade e o afastamento. O espaço peripessoal inclui tudo o que estiver ao alcance da mão; o que podemos controlar com as mãos. É o mundo do que é real, neste momento. O espaço extrapessoal refere-se a tudo o resto — a tudo o que não podemos tocar sem nos movermos para lá do alcance do braço, seja a dois metros, seja a três milhões de quilómetros. É o terreno da possibilidade.

Definido isto, segue-se outro facto, óbvio mas muito útil: uma vez que movermo-nos de um lado para outro demora o seu tempo, qualquer interação no espaço extrapessoal deve ocorrer no futuro. Ou, por outras palavras, a distância está ligada ao tempo. Por exemplo, se lhe apetecia um pêssego, mas o mais próximo está num caixote na mercearia da esquina, não pode comê-lo agora. Só pode comê-lo no futuro, depois de o ir comprar. Adquirir algo fora do seu alcance também pode exigir algum planeamento. Pode ser tão simples como levantar-se e acender uma luz, e ir à mercearia comprar o pêssego, ou construir um foguetão para chegar à Lua. Esta é a característica das coisas no espaço extrapessoal: chegar-lhes exige algum esforço, algum tempo e, em muitos casos, planeamento. Em contraste, tudo o que está no espaço peripessoal pode ser experienciado no aqui e agora. Essas experiências são imediatas. Tocamos, saboreamos, seguramos e apertamos; sentimos alegria, tristeza, ira e prazer.

Isto dá-nos um facto esclarecedor da neuroquímica: o cérebro trabalha de uma maneira no espaço peripessoal e de outra no espaço extrapessoal. Se o leitor estivesse a desenhar uma mente humana, faria sentido que criasse um cérebro capaz de distinguir as coisas no seu caminho, um sistema para o que tem e outro para o que não tem. Para os primeiros humanos, a frase familiar «ou tens ou não tens» podia ser traduzida como «ou tens ou morres».

Do ponto de vista da evolução, a comida que tem é criticamente diferente da comida que não tem. O mesmo para a água, o abrigo e as ferramentas. A divisão é tão fundamental que o cérebro tem circuitos e produtos químicos distintos para lidar com o espaço peripessoal e extrapessoal. Quando olha para baixo, olha para o espaço peripessoal e o seu cérebro é controlado por uma série de químicos relacionados com a experiência do aqui e agora. Mas quando o cérebro lida com o espaço extrapessoal, há uma substância que exerce mais controlo do que todas as outras, um químico associado à possibilidade e à antecipação: a dopamina. As coisas que estão distantes, aquilo que ainda não temos, não podem ser usadas nem consumidas, só podem ser desejadas. A dopamina tem uma tarefa muito específica: maximizar os recursos que estarão disponíveis no futuro; a busca de coisas melhores.

Toda a vida é dividida desta maneira: temos uma forma de lidar com o que queremos e outra de lidar com o que temos. Querer uma casa, sentir a espécie de desejo que motiva o trabalho duro necessário para a encontrar e comprar, requer um conjunto de circuitos cerebrais diferente daquele que nos permitirá gozar essa casa quando for nossa. Antecipar um aumento ativa a dopamina orientada para o futuro e é muito diferente da experiência aqui e agora de receber, pela segunda ou terceira vez, o salário aumentado. E encontrar o amor requer um conjunto diferente de competências para que depois esse amor se mantenha. O amor deve passar de uma experiência extrapessoal para uma peripessoal — da busca à posse; de algo que antecipamos para algo de que devemos cuidar. Isto são competências amplamente diferentes, razão pela qual, com o tempo, a natureza do amor tem de mudar — e também a razão por que para muitas pessoas o amor se desfaz no final da excitação dopaminérgica a que chamamos romance.

Ainda assim, muitas pessoas fazem a transição. Mas como, como é que se é mais esperto do que a sedutora dopamina?