A Fábrica das Fitas, a última de passamanarias de Lisboa e que remonta ao século XIX, deixou de ter atividade no final de março, mas o atual proprietário, o Grupo Bel, diz esperar que o encerramento seja provisório.
Derradeira sobrevivente da antiga zona operária das Amoreiras, no centro de Lisboa, a Fábrica das Fitas nasceu em 1840 no pólo fabril idealizado pelo Marquês de Pombal, após o terramoto de 1755.
A falta de negócio e de pessoas que saibam trabalhar com a maquinaria, que inclui teares do século XIX, e fazer a sua manutenção, determinou o encerramento e o fim de uma produção que abrangia fitas para as condecorações oficiais e para medalhas desportivas, cordões para diversos fins, e as sofisticadas tiras de tecido de fios traçados, conhecidas por passamanarias, tendo por clientes a Presidência da República, entidades desportivas e muitas retrosarias.
Atualmente as Amoreiras, em Lisboa, são uma zona de classe média-alta - o ‘site’ Idealista, dedicado ao imobiliário, indica que na freguesia de Santo António, que inclui a Avenida da Liberdade e onde se situa boa parte das Amoreiras, o valor médio do metro quadrado ascendeu a 7.800 euros em maio. Mas no século XVIII, era uma extensa zona rural, quando emergiu o bairro fabril, mantendo ainda testemunhos do passado operário até meados da década de 1980.
Hoje, o testemunho das fábricas e das habitações operárias subsiste apenas em algum casario e nos nomes de ruas (Travessa da Fábrica dos Pentes, onde se localiza a Fábrica das Fitas, ou a Travessa da Fábrica das Sedas).
Perto dessa zona, junto ao Largo do Rato, já existia desde 1741 a Real Fábrica das Sedas. Aliás, a zona hoje denominada Amoreiras ganhou esse topónimo por na atual Praça das Amoreiras (contígua ao aqueduto, o inicialmente designado Jardim dos Fabricantes), terem sido plantadas árvores de amora para alimentar os bichos-da-seda.
Após o terramoto, em 1759, aí foi mandada instalar a Colónia Fabril das Amoreiras, juntando manufaturas existentes pela cidade.
Nos finais do século XIX, começaram a surgir os bairros operários, habitações de poucas condições destinados às famílias dos trabalhadores para que estes estivessem perto da fábrica. Na sua tese de mestrado, o arquiteto João André Sequeira estima que no início do século XX ascendiam a doze as vilas e bairros operários nas Amoreiras, tendo sido o Pátio do Biaggi um dos maiores de Lisboa. O atual condomínio Páteo Bagatela deve o seu nome à vila operária que aí existia.
A Fábrica dos Pentes de Marfim foi fundada em 1764, e a Real Fábrica de Louça do Rato, em 1767. Havia ainda fábricas de produção de relógios, de caixas de papelão, de vernizes, de cutelarias, de tapeçarias, segundo a Câmara Municipal de Lisboa.
A Fábrica das Fitas é mais tardia, data de 1840 e funcionou durante 183 anos, até interromper a sua atividade, em 31 de março deste ano.
Em 2018, a fábrica tinha sido adquirida pelo Grupo Bel, de Marco Galinha, um conglomerado empresarial que na comunicação social detém a Global Media (dona de Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF, enre outros) e é acionista da agência Lusa.
Questionada pela Lusa, fonte oficial disse que a compra de 40% da empresa detentora da fábrica foi feita “no âmbito da estratégia de Responsabilidade Social e de Recuperação do Património Nacional” do grupo empresarial, e que foram então investidos "perto de 500 mil euros para que a Fábrica das Fitas pudesse continuar a laborar, tendo mantido a administração em funções”.
Contudo, acrescentou, o negócio continuou a apresentar prejuízos devido ao “acentuado decréscimo da procura”.
O grupo empresarial disse ainda que é muito difícil arranjar trabalhadores com conhecimentos necessários “para assegurar a manutenção e operacionalização da maquinaria da fábrica”, nomeadamente teares.
Atualmente, sem “alteração das condições de mercado” e sem “recursos humanos especializados para laborar a maquinaria” (segundo informações recolhidas pela Lusa, reformou-se a última trabalhadora que sabia operar em alguns teares), “a fábrica encontra-se, provisoriamente, sem atividade”, mas o grupo diz que quer retomar a sua atividade.
“O Grupo Bel está neste momento à procura dos recursos adequados para a retoma da atividade estando em fase de avaliação da sustentabilidade do negócio e das ações a implementar para assegurar o futuro do espólio e da história da Fábrica das Fitas, consciente do compromisso com a preservação do seu património, bem como do papel desempenhado na cidade durante quase dois séculos”, afirmou à Lusa.
A Fábrica das Fitas está incluída no projeto Lojas com História, da Câmara Municipal de Lisboa, referindo o Grupo Bel que foi já como proprietário que apresentou a candidatura e a impulsionou “de modo a preservar" a sua história.
Em 2016, numa reportagem na RTP, o então diretor da empresa, João Paulino, falava das dificuldades de a fábrica estar localizada longe do centro têxtil em Portugal, no Norte do país, e da dificuldade em arranjar pessoas para trabalhar no têxtil, na região de Lisboa. Mas então o gestor ainda demonstrava esperança em fazer o negócio florescer além das vendas para retrosarias, que era dominante.
Em 2018, numa reportagem no Público, o dono da fábrica (entretanto falecido) Carlos Manteigas contava dos tempos de sucesso da fábrica, com dezenas de operários, em que “choviam encomendas” de fitas, cordões, fechos, botões (no interior da fábrica ainda há muito 'stock' destes produtos), mas que desde há dez anos o negócio tinha ficado moribundo, devido à forte concorrência de fornecedores mais baratos.
“Enquanto eu for vivo, a fábrica não fecha, mas levamos uma luta tremenda contra os chineses, que estão a fechar os nossos clientes todos”, queixava-se Carlos Manteigas, então com 90 anos, numa referência à abertura do mercado têxtil europeu à China.
Comentários