Centenas de alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) estão a receber certidões de dívida a exigir o pagamento de propinas antigas, algumas com vinte anos e relativas a cadeiras onde nunca estiveram inscritos ou entretanto canceladas.

Os valores variam entre uns poucos cêntimos e os 2 mil euros. As cartas, assinadas pelo director da FLUL, Miguel Tamen, foram enviadas no último semestre do ano passado, mas já este ano começaram a chegar também citações postais da Autoridade Tributária a fazer a cobrança coerciva.

Uma das situações apuradas pelo SAPO24 é a de uma ex-aluna, ainda do tempo do curso de "Filologia Germânica", hoje com 74 anos. A carta que recebeu diz que deve à Faculdade de Letras 318,23 euros, acrescidos de juros à taxa legal em vigor, relativas à primeira, segunda e terceira prestações das propinas da licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas - Estudos Ingleses e Alemães, ano lectivo 2000/2001. "Podia ter-me dado para fazer outro curso, um mestrado ou um doutoramento, mas não voltei à faculdade desde que acabei a minha licenciatura, em 1968/69", conta. "Nunca mais me matriculei em nenhum curso".

Por não quererem ver a sua vida exposta, a maioria dos visados preferem manter o anonimato, ainda que cedendo cópias de documentos recebidos, quer da Faculdade de Letras, quer das Finanças. Rita, vamos chamar-lhe assim, recebeu a carta premiada das duas entidades. Em dezembro do ano passado chegou a certidão de dívida emitida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e em janeiro deste ano chegou a citação postal da Autoridade Tributária. No seu caso, ao contrário do anterior, foram, de facto, feitas as duas inscrições nos cursos mencionados na carta. Com um senão: a inscrição em "Línguas e Literaturas Clássicas", a que se refere a dívida de 2000/2001, foi anulada, como mostra certidão que refere "alteração de inscrição".

Já na situação referente a 2010/2011, "a inscrição no mestrado em "Crítica Textual" não foi formalmente cancelada, embora as notas não tenham sido lançadas", explica Rita. "Paguei o primeiro e segundo trimestres, e vêm agora exigir-me o pagamento do terceiro trimestre".

Neste caso, e uma vez que a dívida já se encontra em processo de execução fiscal, Rita vai pagar a totalidade dos 1.440,24 euros (apesar de apenas 600 euros mais juros de mora dizerem respeito à matrícula não anulada em 2011/2012 e o restante ser referente ao processo de 2000/2001). "Não quero ver o meu salário penhorado e tenho até dia 13 de fevereiro para pagar", diz Rita, que foi informar-se junto da respetiva repartição de finanças.

Mas não é exactamente assim: no prazo e 30 dias a contar da data de recepção da citação, Rita poderia deduzir oposição, ou seja, fundamentar que pelo menos parte da dívida lhe está a ser cobrada indevidamente, já que procedeu à anulação da matrícula de 2000/2001. No entanto, para deduzir oposição é preciso prestar garantia.

Casos anteriores a 2011/12 prescreveram

Antes de mais, é preciso saber que, caso não exista nenhuma lei a ditar o contrário, o prazo normal (ou prazo ordinário, como é legalmente descrito) de prescrição de uma dívida é de 20 anos. No caso do pagamento propinas, a lei prevê que as dívidas prescrevem ao fim de oito anos (Lei Geral Tributária, art.º 48º, n.º1).

Assim sendo, todos os casos anteriores a 2012 prescreveram em 2020. A prescrição, contudo, tem de ser invocada em tribunal por um advogado.

Outro aspeto importante é o prazo de caducidade do direito à liquidação da dívida. O art.º 45º, nº 1 da Lei Geral Tributária diz que o "direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos". Quer isto dizer que, na prática, se o devedor não for devidamente notificado da liquidação do valor da propina em dívida no prazo de quatro anos, já não o poderá ser.

Não é uma prescrição, mas os efeitos semelhantes; a prescrição extingue o direito (a dívida), enquanto a caducidade extingue a possibilidade de exercer o direito, apesar de a dívida existir. Se deixa de ser possível liquidar a quantia relativa a propinas em falta, a instituição de ensino (ou quem exerce esse direito) deixa de poder cobrar a dívida.

No caso da Faculdade de Letras, as histórias, todas com o mesmo princípio, mas nem todas com igual fim, sucedem-se. Os contornos também variam. À redacção chegaram ainda relatos de alunos bolseiros a quem as propinas estavam a ser cobradas por inteiro, de cobrança de pagamentos já efetuados ou a exigir valores inferiores a um cêntimo.

Paulo, um dos bolseiros, não teve problemas de maior em resolver a questão. Recebeu a carta, que considerou um erro de secretaria, em setembro de 2019, e limitou-se a "lembrar" a sua condição junto dos serviços académicos, que logo corrigiram o erro. A André, doutorando, a Faculdade de Letras cobrava na íntegra o ano letivo 2017/18. Pela segunda vez. "Por sorte, tinha os comprovativos de pagamento, feito por Multibanco, e não foi preciso mais nada". Bruno teve um pouco mais de trabalho: "A faculdade escreveu-me a dizer que tinha de pagar cerca de três euros relativos a 2007. Fui aos serviços académicos e, aparentemente, parece que mudaram o sistema e deram conta de algumas dívidas. Pelo que percebi, terei pago algum semestre uns dias depois do prazo, pelo que fiquei a dever três euros. Não sei se sim, se não, mas como era um valor pequeno, preferi resolver logo ali a situação a perder mais tempo com o assunto. Até porque quem estava no atendimento disse-me que enquanto a questão não fosse resolvida a minha licenciatura ficaria suspensa, além de que, a partir dessa data, acumularia juros".

Com ou sem juros, com ou sem comprovativos, perdendo muito ou pouco tempo, João decidiu que esta é uma questão de princípio e prefere ir para tribunal a pagar o cêntimo que lhe está a ser cobrado. É que, embora as dívidas citadas tenham, em alguns casos, dez ou vinte anos, o ónus da prova está do lado do pagador.

O SAPO 24 tentou obter esclarecimentos junto da reitoria da Universidade de Lisboa, que é quem está a enviar as cartas, bem como do Ministério das Finanças, mas nenhuma das instituições respondeu até ao momento da publicação da notícia às questões colocadas.

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