Quer o antropólogo Aurélio Lopes quer o historiador Luís Filipe Torgal consideram que a origem das "aparições" é fundamentalmente popular, resultando de um tempo em que as pessoas, face à miséria, à luta entre Igreja e primeira República e à Grande Guerra, rezavam de forma "mais fervorosa".

"Independentemente da Igreja ser um mediador, em situações difíceis, quando as pessoas sentem que Deus as abandonou, tentam pensar num atalho entre Deus e o Homem", sublinha Aurélio Lopes, recordando que entre 1916 e 1918 foram relatadas várias "aparições" um pouco por todo o país.

Se a origem é popular também o próprio culto assumiu, no seu início, manifestações próprias da religiosidade popular.

Nos primeiros anos após as "aparições" de Fátima, os fiéis não esperaram pelo reconhecimento do acontecimento pela Igreja para rumar até à Cova da Iria, onde o culto se fazia com comida, bebida e foguetes, num ambiente de romaria que o antropólogo acredita que poderia ter persistido até hoje.

"[A Igreja] entendeu fazer ali o que tentava fazer noutras romarias: criar leis, dizendo o que se pode fazer e o que não se pode fazer", disse à agência Lusa o autor de "A 13 de Maio na Cova da Iria".

No entanto, se nas outras romarias os esforços da Igreja foram quase sempre infrutíferos, em Fátima conseguiu controlar as manifestações de religiosidade popular, nota.

O santuário de Fátima, "por ser moderno, por assentar num espaço que não tinha nada por trás e por a Igreja concentrar ali todos os seus esforços, conseguiu criar um santuário contra-natura, onde falta essencialmente o elemento lúdico e popular, próprio da maioria das romarias portuguesas", sublinha Aurélio Lopes.

"Chegou ao meu conhecimento que no dia 13 do corrente se lançaram foguetes na Cova da Iria e até havia vinho para vender nesse mesmo local", alerta em novembro de 1921 José Correia da Silva, bispo da então recém reativada diocese de Leiria, dando ordens para se proibir o uso de foguetes e a venda de vinho, não permitindo que "o culto a Nossa Senhora" fosse "ocasião de pecados".

Em 1922, o bispo volta a repetir a ordem, desta feita, através da publicação "A Voz de Fátima". "Numa fase muito inicial é uma romaria popular, igual à da Nossa Senhora da Ortiga", um culto também da freguesia de Fátima, sustentado na lenda de uma pastorinha muda que viu a virgem Maria, constata o historiador Luís Filipe Torgal.

A apropriação gradual do culto por parte de vários setores do clero e a compra dos terrenos na Cova da Iria permitem controlar as manifestações de religiosidade popular, sublinha o autor de "O Sol Bailou ao Meio-Dia".

Na equação, vinca, não se pode esquecer o papel do cónego Formigão, que acompanha e supervisiona a apropriação do espaço e do culto.

"Não é escolhido um homem qualquer. É um homem monárquico com capacidade de luta, com visão, com coragem, que já tinha estado preso na República", sublinha Luís Filipe Torgal, rotulando Formigão de "uma espécie de quarto mensageiro de Fátima", que "tem um papel crucial para que aquelas visões fossem apropriadas pela Igreja".

O historiador recorda também que no Relatório da Comissão Canónica Diocesana surge, por várias vezes, a expressão "Lourdes portuguesa", denunciando a intenção do clero de criar ali um santuário à imagem do francês: "um santuário de culto devocional, austero e controlado pela Igreja".

As próprias dimensões do santuário criam "um cenário, consciente ou inconscientemente, que impressiona as pessoas e as inibe", realça Aurélio Lopes.

Dos resquícios desse fenómeno popular inicial, restam, no entender do antropólogo, o pagamento de promessas de joelhos - que "a Igreja nunca gostou e que tentou combater" -, alguns aspetos lúdicos que persistem nas peregrinações, bem como a importância que é dada a 13 de maio.

"Nos primeiros tempos, a data mais importante era a de outubro, porque era a aparição de longe mais importante. Mas, com o tempo, veio-se gradualmente a valorizar cada vez mais a primeira aparição, que a noção de primeira vez é muito importante em termos populares", sublinha.

"Era um fenómeno popular, mas não se pode dizer que se impôs à Igreja. É a Igreja que se apropria de Fátima", conclui Luís Filipe Torgal.