Vitorioso uma vez mais, Erdogan descreveu a vitória do “sim” no referendo de domingo como uma “decisão histórica” e pediu aos países estrangeiros para “respeitarem o resultado”. Todavia, a apertada conquista - com 51% dos votos -, contestada pela oposição, reflete a profunda divisão no país após 14 anos de Erdogan no poder. O "não" venceu nas três maiores cidades da Turquia: Istambul, Ancara e Izmir.
Para os seus apoiantes, a reforma constitucional votada em referendo é necessária para garantir a estabilidade no país, mas os críticos denunciam um texto redigido para reforçar o atual presidente, acusado de uma liderança cada vez mais autoritária.
Com as sondagens a prever um resultado apertado, Erdogan percorreu o país nas últimas semanas para garantir o apoio de Diyarbakir a Izmir, sem esquecer Istambul. O ritmo esgotante, de vários comícios diários, obrigou o presidente turco a cancelar no fim de março vários discursos porque ficou afónico.
Nos encontros com os apoiantes, Erdogan demonstrou, mais do que nunca, as suas qualidades de orador. "Erdogan é um imã, no sentido de que é capaz de encantar as massas, de fazê-las chorar, de fazê-las temer", diz Samim Akgonul, professor na Universidade de Estrasburgo, citado pela AFP.
Desde a chegada ao poder do seu partido, o AKP, em 2002, Erdogan enfrentou uma dezena de processos eleitorais, e ganhou todos. O referendo deste domingo, onde registou mais uma vitória, aconteceu apenas nove meses depois da tentativa falhada de golpe de Estado de 15 de julho de 2016.
O rosto pálido de Erdogan no ecrã de um smartphone a pedir que os turcos saíssem à rua contra o golpe está na memória de muitos, assim como a sua chegada triunfal ao principal aeroporto de Istambul na madrugada do dia seguinte, evidenciando a derrota dos rebeldes. Seguiram-se detenções e demissões em massa, assim como a promessa de restabelecer a pena de morte, uma linha vermelha para a União Europeia.
A Turquia continua sob estado de emergência, imposto após a tentativa de derrubar Erdogan. Cerca de 47.000 pessoas foram presas e mais de 100.000 perderam os seus empregos ou foram suspensas. No discurso de vitória do referendo, o presidente turco mencionou a possibilidade de organizar um novo referendo, desta vez sobre o restabelecimento da pena de morte, o que encerraria o processo de adesão da Turquia à União Europeia.
Erdogan na presidência até 2029?
Nascido em Kasimpasa, um bairro operário de Istambul, Erdogan salienta com frequência as suas origens humildes. Educado num colégio religioso, ex-vendedor ambulante, "Tayyip" tinha o sonho de se tornar jogador de futebol antes de se lançar à política.
Eleito mayor de Istambul em 1994, triunfou em 2002 quando o AKP venceu as eleições legislativas e tornou-se primeiro-ministro um ano depois, em março de 2003. Manteve-se no cargo até agosto de 2014, altura em que assumiu a presidência.
Com a vitória do “sim” no referendo deste domingo está aberto o caminho para 18 reformas constitucionais, assim como para a eliminação do cargo de primeiro-ministro, passando grande parte do poder executivo para as mãos do presidente.
Erdogan terá o poder de designar ministros e altos responsáveis oficiais, de nomear metade dos membros da mais alta instância judicial do país (HSIK), de declarar o estado de emergência e emitir decretos.
Além disso, o projeto de reforma constitucional estabelece 3 de novembro de 2019 como data para as próximas eleições presidenciais e legislativas. O presidente será eleito por um mandato de cinco anos, com possibilidade de uma única reeleição, o que poderá permitir a Erdogan manter-se no cargo até 2029.
Em nome da estabilidade
Para os seus apoiantes, Erdogan continua a ser o homem do milagre económico e das reformas que libertaram a maioria religiosa e conservadora do país da dominação das elites laicas. O reforço dos poderes do presidente surge como um meio para garantir a estabilidade da nação. Os críticos, por seu turno, receiam que este abra caminho para um regime autocrático. Facto é que o sistema presidencial "reúne um poder sem precedentes nas mãos de um só homem", enfatiza Alan Makovsky, do Center for American Progress.
A sociedade turca polarizou-se nos últimos anos em torno da figura de Erdogan. Durante a campanha para o referendo, o presidente demonizou os seus opositores, acusando-os de conluio com os terroristas e golpistas.
O ambiente é tenso, sobretudo desde a ruptura da trégua histórica com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), em 2015. O sudeste da Turquia mergulhou numa espiral de confrontos entre as forças turcas e os separatistas curdos. A ofensiva militar de Ancara foi redobrada com uma repressão maior contra os círculos políticos e mediáticos pró-curdos, acusados de atividades terroristas vinculadas ao PKK. Acresce a isto a tentativa de golpe de estado em julho último.
Os mercados veem no "sim" o caminho mais rápido para a dita estabilidade. No entanto, a médio prazo domina a incerteza. "O crescimento continua frágil e as implicações a longo prazo do sistema (presidencial) ainda são desconhecidas", destaca a consultora BCG Partners. O enfraquecimento da confiança dos investidores nas instituições, uma polarização crescente da sociedade e um atraso das reformas estruturais poderão afetar o crescimento - e o futuro - do país.
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