Foi convidado a aderir ao movimento dos capitães para "pôr água na fervura". O seu papel era ajudar a escrever o programa do Movimento das Forças Armadas, que teria de ser aprovado por António de Spínola.

Um dos objetivos principais era acabar com a pobreza em Portugal, ou, pelo menos, esbatê-la. Mas foi sabotado pela extrema-direita, que deixou os cofres dos bancos vazios e a indústria endividada.

Manuel Franco Charais conta as vitórias e os erros da revolução dos cravos, a começar em Spínola, que só queria o poder, e a acabar no socialismo, que o PS meteu na gaveta. Hoje, talvez apostasse no PSD, mas a tática militar de então foi outra.

Recorda o que aconteceu no país, "a explosão de uma sociedade em que todos passaram a ser de esquerda". E lembra os donos dos Mercedes de Cascais, que para circularem por Lisboa em segurança colocavam nos pára-brisas autocolantes do Partido Comunista.

Antes do 25 de Abril de 1974 esteve em Moçambique e em Angola. Depois fez parte da Comissão Coordenadora do MFA, do Conselho de Estado e do Conse­lho da Revolução, foi comandante da Região Militar do Centro durante o PREC e assinou o Documento dos Nove. Pelo caminho montou uma empresa, a NOEI - Nova Ordem Económica internacional -, Consultores para o Desenvolvimento, com capital subscrito por quatro países africanos (Angola, Moçambique, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe) e um quinto por cerca de 25 personalidades portuguesas. Durou 13 anos e acabou porque "a corrupção naquela área acabou com tudo".

Com 90 anos feitos em fevereiro, é tenente-ge­neral na reforma e dedica-se às artes plásticas, tendo participado em exposições de pintura em Portugal e no estrangeiro. Pede-me para não subestimar a sua obra, afinal o último quadro que vendeu valeu-lhe 1500 euros.

Em breve serão publicadas as suas memórias, o terceiro livro depois de  "O Acaso e a História" e "História Viva", ambos com a chancela da Âncora Editora.

Hoje, desconfia de qualquer militar ou civil que lhe diga que não gosta de política. Do outro tempo só sente falta de ser revolucionário. De resto, garante que tem "uma boa vida, uma autocaravana, uma bicicleta elétrica, um automóvel, de maneira que não me posso queixar nem ter muitas saudades do que está para trás".   

"Eu estava convencido de que ia dentro, portanto, preparei-me para ir preso"

Como imaginava a vida depois do 25 de Abril?

Na altura imaginava que ia dentro. Fiz parte do grupo que escreveu o programa do Movimento das Forças Armadas e, como alguns dos jovens capitães viviam nos arredores de Lisboa, entre Paço d'Arcos e o Estoril, ou talvez Alcabideche, era aí que reuníamos à noite, durante duas ou três semanas (julgo que chegámos a reunir em minha casa, em Paço d'Arcos). Acabávamos de escrever o programa e enviávamo-lo  para o Spínola - penso que era o Vitor Alves que fazia a ligação -, que o lia e mandava para trás com emendas. Ponderávamos as emendas e o programa voltava ao Spínola e regressava para nós. Ia e vinha até que o Spínola disse que estava pronto.

Significava que iam avançar?

Nessa altura perguntei ao Vítor Alves qual era a probabilidade de êxito da operação e ele responde: "Se tivermos 48% de êxito, vamos todos presos. Mas o barulho no país será de tal maneira grande que o regime não se aguentará". Ele era o coordenador e era quem fazia a ligação entre os militares do MFA e os militares que estavam a preparar o lançamento da operação militar. Essa parte eu não sabia, porque havia o máximo de sigilo entre os dois grupos por causa da PIDE-DGS. Para Vítor Alves 48% era muito bom, mas eu estava convencido de que ia dentro, portanto, preparei-me para ir preso.

"Estavam dois oficiais, o Melo Antunes e o Manuel da Costa Braz, a tentar escrever o programa do MFA, mas não se entendiam"

Ou seja, não sabia quem eram os operacionais do 25 de Abril ou sequer que o golpe seria nesse dia?

Não sabia, não fui informado que a operação ia para a rua no dia 25 de Abril. De maneira que nessa manhã, quando cheguei ao Cais do Sodré e vi os tanques, o Salgueiro Maia, que não conhecia, não me fui meter naquilo, fui a pé até ao Estado-Maior do Exército. Lá encontrei o Vítor Alves, tentámos convencer o nosso chefe de repartição a aderir, ele não quis, de modo que o Vítor Alves resolveu ir à Pontinha e fui com ele. O Vítor Alves era meu subordinado no Estado-Maior do Exército, tal como o Sanches Osório [um dos seis oficiais organizadores do golpe de Estado que ocupou o Posto de Comando do MFA na Pontinha].

Como foi parar ao grupo que escrevia o programa do MFA?

Eu não sabia o que se passava com o Movimento dos Capitães, mas o Vítor Alves foi-me estudando durante uns meses e a certa altura lá teve coragem, abordou-me e disse-me que, se eu quisesse aderir, teria uma tarefa a desempenhar. Estavam dois oficiais, o Melo Antunes e o Manuel da Costa Braz, a tentar escrever o programa do MFA, mas não se entendiam. Como eu era mais velho e chefe, no fundo, pediu-me para pôr água na fervura, ver se conciliava as opiniões dos dois. Mas quando entro o Melo Antunes tinha sido exportado para os Açores.

Como era participar nessas reuniões?

Naquela altura tudo era feito um pouco a medo. Quando entrei uma das coisas que pensei foi: não vou querer saber de nomes. Estava convencido de que se fosse preso a única pessoa que poderia denunciar era o Vítor Alves. De resto, eram todos mais novos do que eu, com exceção do Vasco Gonçalves, que ainda apareceu numa ou duas reuniões. Era ele que fazia a ligação com o general Costa Gomes.

créditos: Direitos Reservados

Por que motivo aderiu, quais as razões da sua escolha?

Tinha vindo de África no último trimestre de 1973. Fui colocado na 4.ª repartição do Estado-Maior do Exército, a repartição de material, onde já estava o Vítor Alves e outros, como o Rocha Vieira. A minha relação mais próxima era com o Vítor Alves, porque tínhamos feito uma série de trabalhos importantes. Quando cheguei, penso que logo em janeiro, fui mandado representar o Estado-Maior do Exército numa reunião na África do Sul com os três exércitos: português, rodesiano e sul-africano. O assunto era material de guerra, precisávamos do apoio da África do Sul, de helicópteros, munições, artilharia. E aí aprendi uma coisa.

"No orçamento estava prevista uma verba de 200 mil contos para munições e o levantamento feito pelo Vítor Alves apontava para necessidades mínimas de 1,8 milhões"

O que aprendeu?

Na conversa com os militares, os da África do Sul diziam que gostariam de apoiar a independência de Angola e de Moçambique, evidentemente, sob a hegemonia branca. Mas havia muito poucos brancos em Moçambique, em Angola um pouco mais, não chegava para contrariar a imensidão de naturais. Eles não tinham qualquer capacidade de gerir uma independência e, evidentemente, aquilo ia cair sobre os ombros deles [sul-africanos], que já tinham os seus problemas, Pretória fechava a determinada hora do dia e tudo o que era preto tinha de sair da cidade, ficavam apenas os brancos. Vi afixados cartazes, como nos filmes do faroeste, a dizer "Procura-se", com fotografias de pretos. Percebi que seria inevitável termos de abandonar o território. Ou se resolvia o problema político, ou iria criar-se um fosso muito grande entre as populações de Angola e Moçambique e de Portugal. Para justificar a tese da permanência, os nossos embaixadores nas Nações Unidas diziam que o rendimento per capita daquelas duas províncias era maior do que o de qualquer país africano. Só que os livros diziam que Angola tinha à volta de 700 mil brancos e oito milhões de pretos, mas depois dos censos ficou a saber-se que afinal Angola tinha mais de 20 milhões de pretos. O governo sabia, mas retirava população indígena para aumentar o rendimento per capita.

O facto de estar na repartição de material devia dar-lhe acesso a números. Qual era o cenário das necessidades e disponibilidades, por exemplo?

O Vítor Alves fez um estudo sobre munições para o Exército. Na metrópole preparavam-se os contingentes que iam para África com instruções de tiro até 300 metros, o que gastava muitas munições. Teve de ser reduzido. Os nossos militares estavam a chegar aos locais com cada vez menos preparação para a guerra. Para ter uma ideia, no orçamento estava prevista uma verba de 200 mil contos para munições e o levantamento feito pelo Vítor Alves apontava para necessidades mínimas de 1,8 milhões. Quanto ao restante material, o governo tinha previsto um milhão de contos, quando eram precisos 11 milhões. Em África já não havia sobressalentes para substituir as partes avariadas e havia falha de viaturas. A guerra estava falida. Com a agravante de a guerrilha estar a receber materiais muitos mais modernos do que os nossos, como acontecia na Guiné com os mísseis terra-ar.

Onde fez a sua primeira comissão de serviço?

A primeira foi em Moçambique, em 1961, a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] ainda não tinha lá entrado. Vim para Portugal em 1963, tirar os cursos para o Estado-Maior do Exército, e só depois fui mobilizado para a segunda comissão, em Angola, entre 1971 e 1973. Mas isto era para explicar que quando o Vítor Alves me sondou não tive dificuldade em aderir. As coisas não tinham corrido bem com o Brasil e, pessoalmente, não queria que corressem da mesma maneira com Angola e Moçambique. Sabia as riquezas que tinham. Conseguimos fazer o colosso Cahora Bassa [barragem], mas é um trabalho incompleto, havia ainda muito a fazer ao longo do Zambeze para regularizar o rio de tal maneira que a riqueza do interior de África, não só de Moçambique, pudesse ser escoada para o mar, para as exportações. Eram zonas extremamente ricas, mas que Portugal nunca aproveitou. Um coronel amigo dizia-me que Portugal nunca quis nada com África; rapou muita coisa na Índia, depois foi rapar o ouro no Brasil, mas África dava muito trabalho. As riquezas que se tiravam de Angola e Moçambique eram para meia dúzia de pessoas.

"Salazar e Marcello Caetano obedeciam a um poder económico tão ou mais corrupto do que as histórias de que agora para aí ouvimos falar"

Como foi a sua experiência de dois anos em Moçambique?

Quando fui para Moçambique levei à volta de 178 homens brancos extremamente válidos; tinha carpinteiros, pedreiros, mecânicos. Até fizeram uma igreja, porque me apareceu um missionário a dizer que o sonho dele era ter ali uma igreja, perto do quartel. A nossa companhia construiu uma igreja na Mutarara, nas margens do Zambeze, junto à ponte de caminhos-de-ferro que ligava Moçambique e Niassalândia [atual Malawi]. Só meia dúzia de pessoas em Portugal, ligadas aos algodões, cimenteiras, ferro, tiravam proveito disto, porque o regime não teve a habilidade ou a coragem de dizer: tantos portugueses que vão para França ou para a América ganhar o pão, porque aqui viviam miseravelmente, e não se procurou que tanto efetivo branco que ia para as colónias ficasse lá viver. Com vantagens para todos. Dos portugueses que saíam para França, para Inglaterra ou para a América, as mulheres iam lavar retretes e os homens iam para as obras. Em Moçambique, um pedreiro dentro de pouco tempo era empreiteiro.

Não sei se percebo exatamente o que está a querer dizer...

Os nossos dirigentes estavam amarrados a um poder económico que só eles podiam explorar. Salazar e Marcello Caetano obedeciam a um poder económico tão ou mais corrupto do que as histórias de que agora para aí ouvimos falar. Tinha um cunhado, engenheiro da Portucel, a quem mandaram montar a fábrica em Setúbal. Quando tinha tudo pronto para ser aprovado pelo governo foi ao "Daniel das Farturas" [Daniel Barbosa, ministro da Economia de Salazar], ministro da Indústria e Energia [1974]. E quando estava na antecâmara para ser recebido, ouviu um barulho monumental vindo do gabinete, sai de lá um tipo que atira com a porta e vai embora furioso. O meu cunhado ficou estarrecido, levava um projeto para ser aprovado, e comentou com  o chefe de gabinete: "O melhor é eu vir noutro dia". Responde o chefe de gabinete: "Não, não. O senhor vai entrar, isto é costume". Porque é que o outro ia danado? É que o "Daniel das Farturas" recebia uma percentagem do valor do projeto, em ações ou, se calhar, em dinheiro. Era assim que funcionava. Eram muitas razões, para mim, para entrar no 25 de Abril.

"Logo no dia 25 de Abril, na Pontinha, Spínola diz que não concorda com o programa [do MFA]"

Como pensava que devia ser feita a descolonização, isso foi discutido pelo MFA?

Fiquei convencido de que se cortassem de repente as operações militares ainda salvávamos as relações de amizade entre a metrópole e os povos de Angola e Moçambique. É claro que, como se diz em bom português, alguém tinha de se lixar, como aconteceu com centenas de brancos. Precisamente pela condução do problema depois do 25 de Abril, especialmente no I Governo Provisório. Spínola estava convencido de que Angola era nossa e devia ser preservada como província portuguesa. Depois do 25 de Abril as conversações não correram como eu pessoalmente esperava. Mas não e perdeu tudo, porque no II Governo Provisório começámos a tentar melhorar as relações com os diversos movimentos de Angola e Moçambique.

Fale-me do programa do MFA e dos objetivos que fixava. Porque disse que Spínola concordou com a versão final, mas não parece, pelo que conta agora.

O 25 de Abril não é o Salgueiro Maia no Terreiro do Paço, tudo isso é folclore. Foi importante, mas o 25 de Abril foi imaginado, organizado e executado de acordo com o que estava no programa do Movimento das Forças Armadas, pensado como uma ordem para os generais cumprirem, uma espécie de carta de comando para o Movimento dos Capitães. O programa do MFA foi escrito com essa intenção. Spínola aceitou aquela carta de comando, o Costa Gomes também estava dentro do programa, sabia que era para cumprir, mas logo no dia 25 de Abril, na Pontinha, Spínola diz que não concorda com o programa, que depois "temos de discutir isso". Disse-o na minha cara. Respondi: "O senhor não vai discutir nada agora, vai à televisão apresentar a Junta de Salvação Nacional". Ele já estava dentro do automóvel, saiu, e eu, que nem estava bem integrado no grupo dos capitães, disse ao Spínola que ia distribuir o programa pelos jornalistas. Respondeu que não concordava, então vamos discutir isso. E fomos para o gabinete do comandante da Pontinha, eu em representação dos capitães - que não tinha, mas deu-me para aquilo - e na minha frente a Junta. Comecei a ler, linha por linha - a apresentação da Junta na televisão estava prevista para as 22:00, mas só foram perto da meia-noite.

"A PIDE de Lisboa pagava a renda de casa da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] na Tanzânia"

Com o que é que Spínola não estava de acordo?

Fundamentalmente não concordava com a extinção da PIDE-DGS e que fosse concedida às províncias ultramarinas a autodeterminação/independência. O Costa Gomes aceitava, mas punha um problema: a extinção da PIDE em Angola e Moçambique cortava informações importantes às Forças Armadas que lá estavam, porque parte fundamental da informação relativa ao terrorismo estava na mão da PIDE. Em 1961 soube que a PIDE de Lisboa pagava a renda de casa da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] na Tanzânia.

Como definiria Costa Gomes?

Era um homem extremamente sensato, muito atento ao que se passava, com grande preocupação de que não surgisse de qualquer lado uma guerra civil, confrontos entre militares ou entre militares e civis. Era presidente da República e teve de gerir a instituição militar, a parte política, o Governo Provisório, tudo com muito cuidado. Uma tarefa difícil que cumpriu até ao fim. Evidentemente que tinha tino suficiente para ter atenção aos pedidos que lhe faziam e é por isso que acaba por ser nomeado "O Rolha", porque nem para cima nem para baixo, não decidia. O mínimo de decisões necessárias tomou, e não havia nenhum militar que se atrevesse a ir contra as suas ordens. O Costa Gomes foi a pessoa certa no lugar certo num período extremamente instável.

Voltando a Spínola, o MFA cedeu?

Concedemos. Enquanto eu lia o programa, o Galvão de Melo diz (e bem): "Mas ó meu general, não sei o que estamos aqui a fazer. Estamos a discutir o quê? Foram os rapazes que nos puseram aqui, eles querem esse papel, ou aceitamos ou vamos embora". Mas o Spínola já estava dentro daquela pele de futuro presidente da República. E também tinha os seus apoios, a sua corte militar. A maior parte estava do lado do programa, mas também veneravam o seu chefe. E o chefe estava contra o programa, quis ir para presidente da Junta [de Salvação Nacional] para fazer aquilo que entendia - e o raciocínio dele era o do livro "Portugal e o Futuro". E não arredou. Eles foram à televisão e depois fomos para a Pontinha e estivemos até às oito da manhã a discutir. O Vítor Alves lá foi ler o programa do MFA aos jornalistas. Mas ficou lá escrito que o problema do Ultramar não era militar, era político, de maneira que a Junta de Salvação Nacional tinha de encontrar uma solução, e sabíamos que a independência era inevitável.

"Para qualquer coisa era preciso um soldado do MFA, senão nada se resolvia"

O que é que correu mal no 25 de Abril ou, pelo menos, não correu como esperado?

O que correu mal foi, em primeiro lugar, o Spínola. Há o primeiro golpe, tenta correr com o MFA e, em vez de cumprir o programa, que previa a eleição de uma Assembleia, que iria escrever a Constituição, queria promover uma eleição para a Presidência da República e seria o presidente a mandar escrever uma Constituição, levada a referendo. A Comissão Coordenadora, que fazia parte do Conselho de Estado, não podia aceitar isto. Nessa altura Spínola estava ligado ao Palma Carlos, primeiro-ministro, que dizia que não podia continuar a governar sem Forças Armadas - o velho vício: dizem muito mal dos militares e das forças de segurança, mas não podem passar sem elas, o povinho morde-lhes os calcanhares e mandam chamar a tropa para resolver o problema.

Adelino Palma Carlos e o I Governo Provisório dura ainda menos que Spínola...

A população apoiava o MFA, não Spínola. O Palma Carlos demite-se e Spínola não tem mais nenhum civil para aceitar o cargo. A população estava eufórica e por aquela altura havia uma cintura de casebres, barracas, à volta de Lisboa e do Porto. Aquela gente olhava para a cidade e via as casas vagas, à espera que os preços subissem para dar mais rendimento. Havia um património habitacional empatado e começaram as ocupações clandestinas e o primeiro-ministro [Palma Carlos] queria que a tropa fosse lá bater. Mas não tinha forças militarizadas, porque era preciso sanear tudo, o governo, as câmaras, as juntas, as polícias, os guardas republicanos... E para isso tudo só havia os capitães, o MFA. Para qualquer coisa era preciso um soldado do MFA, senão nada se resolvia. Foi assim que se viveu durante os primeiros meses da revolução. Reorganizar leva tempo, os novos ocupantes não conhecem o país. O poder disponível é o que viveu à custa do antigo regime, engenheiros, professores, médicos, tudo floresceu à volta da ditadura. A determinada altura, lembro-me que era preciso pôr uma pessoa no Ministério do Trabalho, que ficou sem ministro, e mandei para lá um general que não percebia nada daquilo, mas era mandado pelo MFA.

Palma Carlos demite-se e Spínola fica sem civis a quem recorrer, dizia.

Spínola fica descalço, deve ter andado à procura de um civil, mas não deve ter encontrado. E mete o Vasco Gonçalves, a figura mais antiga, e leva com ele uma séria de militares, praticamente toda a Comissão Coordenadora que estava no Conselho de Estado. Os militares elegem novos militares para a Comissão Coordenadora, porque os que lá estavam foram para ministros, e aí aparece o Vasco Lourenço, o Pinto Soares e eu. Eles fizeram a revolução e eu fui acompanhando, deitando água na fervura. Depois ainda havia os ministros sem pasta, os chefes dos partidos: PS, PSD e PCP. O programa do MFA define claramente que têm de ser criados partidos para concorrer às eleições. O mais organizado era o Partido Comunista, apesar de ter estado na clandestinidade. O PS veio do estrangeiro, estava a ser reorganizado, e o PPD era composto por dissidentes da anterior Assembleia. Não havia mais nada. Ao PS e PSD dava jeito dizer que eram anti-comunistas, que o PC queria implementar um regime comunista. Como se o Álvaro Cunhal quisesse dar um tiro na cabeça.

Spínola também não duraria muito tempo...

Nessa altura o Spínola volta à carga, dizia que corria sangue nas ruas e Lisboa. O que ele queria era o poder. O que se passava em Lisboa era o povo a viver em liberdade e a lutar pelos seus interesses, coisa que nunca tinha podido fazer. Lemos a cartilha ao Spínola, ou fazia o que estava no programa ou ia-se embora. E foi.

O que é que correu bem?

Uma coisa que correu bem foi termos conseguido que não houvesse logo à entrada decapitações, fuzilamentos, mortos. Os PIDE foram mantidos em banho quente, uns presos outros à solta, mas os presos tinham de ser presos, porque era a população que os entregava, se não os recolhêssemos, o povo dava cabo deles. Em termos oficiais acabou tudo com penas de um dia de prisão, coisas do género. As prisões do 11 de março e do 25 de novembro foram sempre com essa ideia, eram engavetados como forma de dar uma satisfação à população. Mas nunca foram levados a julgamento. Há pouco perguntou pelos erros, à cabeça digo um, fenomenal: a extrema-direita do regime anterior. Como os chefes não foram decapitados, não desapareceu. Os dois chefes [Américo Thomaz e Marcello Caetano] foram exportados para onde podiam, e só havia dois sítios: Espanha ou Brasil. Em vez de pensarem que podiam ter ficado sem cabeça, queriam escolher, o melhor era umas boas férias na Madeira, um bom degredo, se possível num bom hotel e com o Estado a pagar. Foram para junto dos seus amigos, que falavam português, uma brilhante decisão - que não foi minha, deve ter sido do Spínola. Mas a extrema-direita lançou um ataque, sabotou a economia do país. Costumo dizer que o responsável pelas nacionalizações foi a extrema-direita, que aproveitou a fase em que os militares estavam a ter outros problemas para deslocar para o exterior a riqueza que lhe interessava e deixar o país sem divisas. Eram os amigos do antigo regime, que utilizou personalidades da extrema-direita para se infiltrarem nos partidos da extrema-esquerda. Já reparou, há 47 anos um grupo de capitães foleiros, como diz muita gente, aguentou a entrada repentina de 700 mil pessoas no país, tudo se processou mais ou menos calmamente, tudo viveu tudo comeu, e hoje Portugal não consegue resolver os seus problemas, continua a exportar gente, tem uma dívida enorme, dificuldades de crescimento? Tenho de chegar à conclusão que Vasco Gonçalves e os capitães fizeram maravilhas.

Do que precisávamos agora ou ainda?

Em tempos assisti a uma palestra do Kaúlza de Arriaga em que ele dizia que para resolver o problema de África era preciso pôr um branco por cada preto que tirasse a quarta classe. Dantes os portugueses viviam miseravelmente e se tivessem um bocadinho mais iam-se contentando. Enquanto a ditadura durou, quando eram uns miseráveis, não sabiam ler nem escrever, aquilo foi possível, dava-se umas migalhas... Vivia-se neste regimezinho de manter isto o mais analfebetozinho possível, porque é fácil lidar com quem não tem a quarta classe. Agora, com toda esta liberdade, os pais fizeram sacrifícios para educar os seus filhos e, depois do 25 de Abril, já queriam que fossem doutores, professores, médicos. Agora é muito mais difícil lidar com o português que não se contenta com aquilo que tem, quer cada vez mais. Se for milhões, ótimo. Julgo que esse é o grande problema que enfrentamos. A nossa sociedade não quer sacrifícios. Isto exigia que toda a sociedade caminhasse para um determinado objetivo. Mas ainda temos patrões que não podem aumentar o salário mínimo nacional, o que está errado. Com 665 euros é difícil uma pessoa viver, quanto mais um agregado familiar de quatro. Quer o patrão queira, quer não, este empregado há-de trabalhar de má vontade, o patrão nunca vai ter daquele empregado o rendimento que teria se pagasse o dobro. Mas quando se fala em produtividade, ninguém fala no patrão. Veja como florescem a IBM ou o Facebook, não trabalham com o pessoal a ganhar minhocas.

Afirmou que o programa do MFA definia prioridades, ordens de comando. Quais eram as ordens para o governo?

O programa do MFA tem uma ordem concreta para o Governo Provisório, é a de na sua política interna dar prioridade às classes mais desfavorecidas. Tentar resolver os seus problemas, que eram muitos - educação, saúde, habitação. A taxa de analfabetismo era muito elevada [cerca de 26%].

Contou que quando foi para Moçambique levava 178 homens. Como é, tão jovem, ter sob sua responsabilidade homens tão novinhos e impreparados, que, provavelmente, nunca tinham saído da sua terra?

Nessa altura eu já era capitão, tinha 30 anos. Para subir a escadaria de primeiro-aspirante a capitão demorava meia dúzia de anos. Mais tarde, como os capitães começaram a fazer várias comissões, começaram a ter um bocadinho mais de idade. Mas tínhamos uma estrutura de apoio, a companhia era apoiada por um alferes do quadro permanente e três alferes milicianos. Abaixo deles havia os sargentos e os sargentos milicianos, depois os cabos e depois os soldados. O capitão é preparado desde a Academia Militar, tem vários cursos e estágios que lhe dão a capacidade de comandar homens.

Bem sei que disse que ainda não havia guerrilha...

Estivemos lá dois anos e só quando a companhia regressou a Portugal começou a atividade guerrilheira. Mas havia uma tensão, esperávamos um ataque a qualquer momento, não sabíamos quando. Aguentar 170 homens não é fácil. Em algumas companhias havia um padre, noutras um médico. A minha companhia tinha um médico e um enfermeiro. O médico era bom, tomou conta de uma espécie de enfermaria e desenvolveu ali um trabalho notável, tratou não só militares, como a população civil da área. Por acaso, o médico gostava de caçar, de maneira que quando saía do quartel para visitar as populações, para dar apoio, aproveitava para caçar, para ver o que por lá havia.

Então comiam bem.

Há cenas giras. Quando lá chegámos comprávamos a carne no cantineiro - não havia supermercados, havia as chamadas cantinas. Comecei a ver que a carne era cara e que se podia arranjar mais barato, e um sargento lá convenceu um indígena que tinha cabeças de gado a fornecer o quartel. Comprávamos o boi inteiro, os soldados esquartejavam-no e pagávamos ao indígena. O homem nunca tinha visto dinheiro. De tal maneira que me vieram dizer que ele me queria conhecer, queria conhecer o comandante da companhia. O indígena vivia numa palhota com as suas mulheres e respondi que só lá iria quando ele tivesse uma casa a sério, com telhado. Até que os soldados me vêm dizer que ele construiu uma. Disse que só lá iria quando ele tivesse um frigorífico - eles tinham gado mas não comiam a carne, era para trocar por outras coisas, trocas diretas. Até que me vêm dizer que ele já tinha frigorífico. Tive de lá. A casa tinha cinco divisões, tudo em tijolo, mal atamancado, o telhado em zinco, e à entrada o frigorifico a gás. Nas outras divisões estavam as peles dos animais que ele esfolava e curtia, a família continuava nos quimbos. A companhia ao lado da minha tinha um padre, que queria convencer um indígena a abandonar as suas 40 mulheres. Embirrou com o indígena, que tinha um jipe e ia passear o dia todo, e andou a tentar convertê-lo: um homem, uma mulher. Aquelas coisas. A certa altura o indígena chateia-se e diz: "Ó seu padre, escusa de chatear porque eu não tenho quarenta mulheres, tenho quarenta tratores". Moçambique era isto.

O que o levou a escolher a carreira militar?

O meu pai tinha dois automóveis, era quadro superior de um banco. Mas apaixonou-se por uma florista - é como aqueles romances de Hollywood - e foi para o Brasil, desapareceu. A minha mãe ficou com cinco filhos nos braços. O mais novito morreu e fiquei eu mais três irmãs. Nasci no Porto, na freguesia de Cedofeita, e a minha mãe para se safar arranjou uma colocação de professora primária numa aldeia nos arredores. A casa era barata e tinha as ajudas das mães dos alunos, ovos e galinhas. Isto foi há 80 anos. Depois entrei na universidade, a coisa não me correu lá muito bem, e pensei que não podia estar a pesar à minha mãe. Candidatei-me à Academia Militar e fui admitido.

O que queria ser?

Não tinha nada pensado, talvez engenheiro. Seria sempre na área das ciências, nunca das letras.

Como é que se nasce no Porto e se acaba a viver no Algarve, em Portimão?

Bem, num segundo casamento. E venho morrer exatamente onde acabou por morrer o meu pai, que regressou a Portugal e continuou quadro superior do BPA [Banco Português do Atlântico]. Tem piada, porque quando estava na revolução, e era membro do Conselho de Estado e do Conselho da Revolução, tinha contacto com os ministros, mais intenso nos governos do Vasco Gonçalves. E lembro-me de ter contactos com o ministro das Finanças. E a certa altura perguntaram-me: "Charais, o senhor é filho do Charais do BPA?" "Sou". "Sabe como chamávamos ao seu pai? Era o leão da Bolsa". De facto, acho que dominava aquilo, tinha capacidade para isso. Acabou por vir morrer em Portimão, no centro de apoio de idosos. Ele tinha uma habilidadezinha para a pintura.

Quadro de Franco Charais
Comemorações do 47º aniversário do 25Abril74. A Revolução dos Cravos

Foi dele que herdou o gosto pela pintura?

Pois. Uma vez, numa viagem com a minha mulher por Itália, Áustria, Suíça, promovida pelo INATEL, tive contacto com uma pintora com escola em Portimão, onde dava aulas. Era professora do ensino secundário na área das artes e tinha uma escola particular onde ensinava pintura. Dava-me exercícios que eu fazia em Lisboa durante a semana e levava a Portimão ao fim de semana. Ia e vinha. Acabei em Portimão, casado com ela, Stela Barreto, uma mulher extraordinária, culta, que me pôs a pintar. Quando viu que eu tinha alguma capacidade, convidou-me para expor com ela. Primeiro em Albufeira, onde vendi logo dois quadros, depois pelo resto do país, em áreas de exposição das autarquias, e depois lá fora, em Espanha, Alemanha, Viena de Áustria e França, fui convidado de honra no 1.º Concurso de Artes Plásticas de Angoulême. De maneira que segui a carreira como pintor.

O que pinta, em que se inspira?

A minha pintura é inspirada na pintura rupestre. Sou velho, sou antigo, e acho piada àquilo, utilizo o grafismo na minha pintura. Vou colocando no Facebook, também tenho um sobre o 25 de Abril, "Revolução dos Cravos". Não diga mal da minha pintura, porque o último quadro que me compraram, até fiquei admirado, deram-me 1500 euros por ele. Portanto, não me desconsidere como pintor [ri].

Uma palavra para definir Vasco Gonçalves?

O Vasco Gonçalves era um homem extraordinariamente generoso. Todos nos militares e funcionários públicos tinham de fazer uma espécie de juramento escrito em que repudiavam o comunismo. De maneira geral, os militares não eram comunistas, muitos eram religiosos. Eu também era, fui professor de Matemática e de Fisico-Química no Seminário do Funchal. Tínhamos praticamente todos formação católica. A paixão dele era o desgraçado do homem português, que teve às costas impérios monumentais e vivia na miséria. A sua preocupação foi aproveitar o momento para dar às classes mais desfavorecidas o máximo que lhes pudesse dar, mas tinha contra ele a extrema-direita e a direita, o poder económico.

O que tem contra o poder económico?

Um cunhado do Porto, casado com a filha de um banqueiro que manobrava os capitais do norte, disse-me a determinado altura: "Já tenho tanto dinheiro lá fora como cá dentro, agora vamos ver quem faz a revolução". Isto para dizer que o poder económico, esse que dominava as indústrias base e o sistema financeiro, floresceu à sombra de Salazar e Caetano, em vez de pôr toda essa riqueza ao serviço da revolução.

"Jacinto Nunes, que foi meu professor no curso do Estado-Maior, caracterizava a economia portuguesa como "um conjunto de patos-bravos""

O Conselho da Revolução o que fazia? Muitos dizem que apenas se apropriou de um estilo de vida que antes condenava.

Tive um Mercedes que me foi atribuído porque o meu carro era mais pequeno e avariou. Eu estava a comandar Coimbra, tinha de ir ao Conselho da Revolução, andar para lá e para cá... E nunca meti uma guia de marcha. Portanto, tinha um carro e um motorista. Evidentemente que o Conselho da Revolução apropriou-se... Apropriou-se, não, distribuiu tudo aquilo que era do anterior regime. Foi distribuído pelos órgãos de soberania e foi distribuído pelos partidos. Foram distribuídos aos partidos alojamentos que pertenciam ao anterior regime, como o edifício do Largo do Rato, que foi para o PS [O Palácio Praia serve desde 1975 como sede do PS, que o adquiriu de forma definitiva em 1986]. O regime anterior era dono de tudo. A quem é que entregávamos o Mercedes, ao Bairro da Jamaica? Ficava para a PIDE? Aquilo era erário público, para ser utilizado pelo poder público. Passado um tempo foi para a sucata, era um carro muito batido. Essas coisas são demagógicas, servem para enegrecer ou lançar uma cortina de fumo.

E o que fez a revolução quando nacionalizou?

Mas já não tinha nada lá dentro. Quando a banca é nacionalizada, vemos que toda a economia privada do país estava apoiada em empréstimos bancários. Um dos governadores do Banco de Portugal já depois do 25 de Abril, Jacinto Nunes, que foi meu professor no curso do Estado-Maior, caracterizava a economia portuguesa como "um conjunto de patos-bravos". Não eram gestores capazes de fazer crescer a economia. Quem continuou a gerir os bancos e as indústrias base foram sempre os mesmos, transitaram de um lado para o outro e a sabotagem foi extensiva às grandes propriedades alentejanas, cujos proprietários lançaram fogo às searas e despediram os trabalhadores. O latifundiário do Alentejo tinha várias casas e o Alentejo era para ir à caça. A certa altura tivemos de pôr os carros a circular dia sim, dia não, nuns dias circulavam os carros com matrículas terminadas em números ímpares, nos outros os carros com matriculas terminadas em números pares, porque não havia combustível. Foram épocas difíceis. Mas tudo isto serve de exemplo para as pessoas meditarem no futuro.

Portugal é um país racista?

É. Sempre foi. Agora, tem capacidade suficiente para trabalhar com qualquer raça. Portugal andou pela Índia, por África, pelo Brasil... Em 1970 um preto não entrava num hotel no Brasil (e noutros sítios). Ainda hoje há problemas no Brasil entre brancos e pretos. O branco é racista, assim como o preto é racista. No entanto, o português tem uma qualidade, faz parte do seu ADN essa capacidade de dialogar e de conviver. Mas sempre numa posição de superioridade, há sempre ali qualquer coisa. Julgo que é preciso continuar a bater nesta tecla para esbater este sentimento. Mas Portugal é menos racista do que uma Espanha ou uma França e por aí fora.

"O grande problema nacional é esse: o poder político tem medo do poder económico"

Aos 90 anos do que tem saudades, do que sente falta?

De nada. Tenho uma boa vida, faço o que quero. Tenho saudades desse período revolucionário, isso tenho. E tenho orgulho. Porque em ano e meio, no verão quente de 1975, conseguiu o que nenhuma revolução no mundo conseguiu - a soviética foi ao fundo, a de Cuba está por um fio, a do Chile foi ao ar - o poder económico estava subordinado ao poder político. Era um poder económico fraquinho, mas estava dominado. Julgo que foi o único momento da história de Portugal em que o poder económico foi dominado pelo poder político.

Não durou muito.

O poder político não teve capacidade para gerir o poder económico, foi incapaz. Com Mário Soares o poder económico passou outra vez a dominar o poder político e até hoje o poder económico continua a dominar, e nós andamos aqui, de mão estendida, à espera da bazuca.

"António Costa começou bem e não sei se não irá acabar mal"

O que mudou com o 25 de Abril e o que ficou na mesma?

A subserviência do poder político continua, isso é visível com a direção dos Espírito Santo, andava tudo com a mão estendida. Por isso se dizia que ele [Ricardo Salgado] era o dono disto tudo. Para mim, o grande problema nacional é esse: o poder político tem medo do poder económico e subordina-se ao poder económico, é incapaz de dominar o poder económico. No atual governo há uns laivozinhos no ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, gosto dele, tem um certo atrevimento, é capaz de não ir longe.

Como vê António Costa e o seu governo globalmente?

António Costa começou bem e não sei se não irá acabar mal. Começou bem com a geringonça, porque o Partido Socialista fartou-se de vegetar à sombra do Partido Social Democrata. Nem é carne, nem é peixe. Na revolução, logo no princípio, fizemos uma maldade, que foi aplicar à política a tática militar. O programa do MFA, feito para apoiar as classes mais desfavorecidas, não os ricos, que se safam bem em qualquer regime (os muito ricos, porque os meio ricos não), previa um sistema pluripartidário, como já disse. O que tínhamos à frente era uma esquerda revolucionária, o Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partido Social Democrata e o CDS. Olhámos para aquilo e dissemos: comunistas não, revolucionário é mixuruca, CDS é para combater a extrema-esquerda, direita era o antigo regime. Ficava o Partido Socialista. A partir daí, o MFA só falou em socialismo, não falou em mais nada. Para grande irritação da direita. Fixámo-nos ali, era a força que podia resolver o problema. E assim foi. O MFA falava em socialismo, a maioria da população votou PS. E votou PPD porque eles falavam em social-democracia. É por isso que estes dois partidos aparecem como os mais votados logo nas primeiras eleições. O resto era para animar, para colorir. Vermelho à esquerda, azul à direita.

"António Costa, convencido que está próximo da maioria, não aceita o apoio dos partidos à sua esquerda e condena-se: ou vai acabar ou faz a fusão com esta esquerda"

E assim nos mantivemos até hoje, com algumas nuances.

Logo que se viu livre do MFA, do Conselho da Revolução, o Partido Socialista resolve meter o socialismo na gaveta e Portugal na União Europeia. Porquê? Não quer chatices. Em vez de governar, quer ser governado. A história veio sempre por aí, até às penúltimas eleições. O Partido Social Democrata esteve anos a ser liberal, o PS esteve anos a ser social-democrata. Mas muito titubeante, muito a medo. Até que tem um novo dirigente, António Costa, que é do sistema anterior. Mas ele sabe, julgo que sabe, que o Partido Socialista vai acabar. O Partido Social Democrata tem muito mais possibilidades, até ao nível da União Europeia, faz parte da família mais poderosa do Parlamento Europeu. E então fez a única coisa que tinha a fazer, aceitou ser apoiado pelo Partido Comunista e minimizou o problema do anticomunismo. O PC tem-se portado excecionalmente bem, de tal maneira que a direita o considera um partido confiável, ali não há tombos nem cabeçadas, é um relógio. Na segunda legislatura, António Costa, convencido que está próximo da maioria, não aceita o apoio dos partidos à sua esquerda e condena-se: ou vai acabar ou faz a fusão com esta esquerda. A solução era a geringonça, mas António Costa ainda está à espera da maioria absoluta do PS, que não é garantia de nada. Não percebo do que está à espera, porque o país tem dois milhões a viver no limiar da pobreza e não pode. O que é que ele quer, passar para três milhões? Ter apenas alguns cada vez mais ricos? Porque a teoria do Partido Socialista logo a seguir a 1982 era a de que é preciso distribuir riqueza pelos mais pobres. Mas para distribuir é preciso criar riqueza. Por isso isto é uma léria. Passaram-se estes anos todos, 47, e estamos à espera da riqueza para ser distribuída. Portugal não tem capacidade para criar a riqueza que eles pensam que deve ser criada.

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