Depois de vir do Parque Eduardo VII, carregado com uma saca de algodão cheia de livros, caminho com a minha mãe no meio do fresco das árvores da Avenida. Vamos descendo. O trânsito vai condicionado. Nas bancadas, que se alinham nos passeios, já estão algumas poucas pessoas, à espera da noite.
A gente passa, a caminho do Rossio, para apanhar o comboio. Depois, já na última estação da linha, vamos para casa da minha avó. Há sardinhas, carapaus. A televisão, na RTP, mostra as marchas que lá ficaram na capital. À porta de casa, pegamos numa chapa metálica e deitamos-lhe o fogo. Vamos saltando, eu e os meus primos, e queimando as alcachofras a ver se encontramos as promessas do amor eterno.
Isto há de ter sido em 2017. A última vez que desci a avenida da Liberdade, que rasga Lisboa do centro ao coração, foi no início de março já deste ano, a bordo de um TVDE elétrico. Demorei-me numa esplanada à beira do Museu das Janelas Verdes, a ver o sol cair para lá da ponte, sem pensar demasiado em Cesariny. Portugal tinha registado nesse dia, no Porto aonde logo regressei, o primeiro caso de covid-19.
Foi o último tempo em que vi a cidade assim. Hoje, em vez dos festeiros a formigar nas ruas esconsas e largas, há só o pingar miúdo de um junho soçobrado. A véspera do Dia de Santo António, auge das Festas de Lisboa, antecipando o feriado municipal, é hoje marcada pelo histórico cancelamento dos festejos e a proibição dos tradicionais arraiais populares.
Não há sardinhas nos recantos; nem músicas a berrar nos bairros. E não há marchas, claro. Do meu lado, não há fogueiras de carrascos, nem alcachofras. Resta-me o amor, que enfim achei, e uma fotografia da minha avó.
Com a vertente competitiva desde 1932, apesar de se realizarem desde o século XVIII, as Marchas Populares de Lisboa ficam também este ano sem o tradicional desfile na avenida da Liberdade, na sequência das medidas de redução dos riscos de contágio da covid-19 e “atendendo ao desenrolar da atual pandemia e do período de confinamento e distanciamento social ter inviabilizado os ensaios”.
“Arraiais e desfiles estão proibidos”, determinou ainda a câmara municipal de Lisboa, sustentando que “a elevada concentração de pessoas que marca os arraiais populares, vincando a força da sua tradição, é incompatível com a sua realização mesmo num cenário de achatamento da curva de contágio e da diminuição do número de infetados”.
A decisão da autarquia foi anunciada logo a 4 de abril, um mês depois da identificação dos primeiros casos de infeção pela covid-19 em Portugal. No mesmo dia, já o Porto tinha cancelado o São João.
Agora, explica a câmara, o cancelamento das Festas de Lisboa vai ao encontro da resolução do Conselho de Ministros de 29 de maio, que ainda proíbe “qualquer atividade em espaços abertos, em espaços ou vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas”, incluindo os de coletividades, associações e instituições similares, e “os desfiles e festas populares ou outras de qualquer natureza”.
Nem os casamentos se safam: os Casamentos de Santo António, com a participação de 16 casais, sofrem agora uma nova interrupção — a iniciativa, que se iniciou em 1958 como "Noivas de Santo António", foi interrompida após o 25 de Abril de 1974 e, passados 23 anos, foi retomada pela Câmara de Lisboa em 1997.
Daqui a uns tantos dias, calha ao Porto ficar calado, com os balões arrumados e os alhos porros fora das cabeças. Depois, também o São Pedro, cuja festa escapou ao duopólio das cidades, fica sem fogueiras comunitárias, sem sardinhas, carapaus e música.
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