O rio voltou a transbordar este ano, tal como aconteceu há um ano, quando arrastou a mulher, uma filha e duas irmãs.
“Há duas semanas, de madrugada, acordámos com o som da água que em pouco tempo galgou a fazenda. Fugimos com a roupa do corpo” conta Silvestre à Lusa, numa altura em que continua acolhido na missão católica de Dombe, província de Manica.
Na mesma semana das novas cheias, correu a notícia de que a mulher e a filha tinham sido encontradas, um ano depois de desaparecerem devido ás inundações repentinas e colossais provocadas Idai.
Teriam sido descobertas 50 quilómetros a sudeste de Dombe.
A notícia correu a aldeia, devolvendo a Silvestre a esperança que já tinha esgotado, mas tudo não passou de um boato.
“Deus tem algum propósito na minha história”, observa, depois de conduzir extensas buscas com a ajuda de padres da missão.
A 15 de março de 2019, Silvestre Gabriel viu o que nunca esperava ver: a mulher, uma filha e duas irmãs a serem arrastadas por uma corrente até perdê-las de vista durante as cheias que se seguiram ao ciclone Idai.
Ao todo eram 12 membros da mesma família, na província de Manica, encostada ao Zimbábue.
A determinada altura, uma canoa avistou-os, mas pouco antes de a ajuda chegar, a árvore que amparava a esposa, filha e duas irmãs de Silvestre cedeu e perdeu-se nas águas.
“Não consegui nem recuperar os corpos”, conta, um ano depois, conduzindo-nos pelo rio Lucite, de que guarda “duras lembranças”, que o fizeram regressar à escola, seis anos após a abandonar, como forma de ultrapassar os traumas.
Com outras dezenas de pessoas acolhidas na missão católica da aldeia, Silvestre ocupa-se agora com a horta e um pomar, transformado em campo de produção de milho após perder as fruteiras com o ciclone Idai, e com um sonho à vista: ser um motorista de camiões de longo curso.
Além do apoio psicossocial com os clérigos da missão, Silvestre encontra conforto nos colegas de quarto e da escola, incluindo professores, que se solidarizam com a sua situação.
“Nós o aconselhamos para que não viva pensando no que perdeu”, disse à Lusa Adriano Zacarias, que acompanha a rotina de Silvestre desde que chegou ao acolhimento.
João Luís, professor de Biologia, conta que a escola introduziu aulas humanizadas para atender 84 alunos, integrados na escola Divina Providencia de Dombe, ligada à missão católica, para os ajudar a superar traumas, um ano após o ciclone.
A escola albergou por quase um mês os desalojados do ciclone no ano passado.
“Temos estado perto dele, para que não haja discriminação. Sofreu muito e com uma pequena coisa ele pode desistir”, acrescentou João Luís, que a par de outros professores esteve na operação de resgate durante as cheias que se seguiram ao ciclone.
Pelo menos 60 crianças órfãs do Idai foram reintegradas nos centros de reassentamento, alguns com seus parentes próximos e distantes, uma situação que precisa ser acautelada para garantir o futuro saudável das crianças devido as situações socioculturais, observou Chico Ferrão, porta-voz do governo local - sublinhando que projetos sustentáveis vão garantir uma melhor inserção.
Mussa José, 25 anos, realojado na nova aldeia de Ndeja, criada para dar abrigo vítimas do Idai na província de Sofala, também guarda imagens quase inenarráveis.
Para escapar às águas, ele, a mulher e dois filhos, um deles na altura com dez meses, subiram a uma árvore onde ficaram três dias sem comida, sem bebida e sob risco de caírem à corrente por fraqueza.
“Vi outras pessoas morrerem. O meu avô e duas sobrinhas”, arrastadas pela água, recorda.
E nas árvores havia quem caísse de fome, sem forças, como quase esteve para acontecer com a sua esposa, ao tentar amentar, na árvore, o bebé de 10 meses.
A criança acabou por ficar presa à árvore com uma capulana (tecido tradicional) até surgir ajuda de barco e todos serem levados para Ndeja, onde agora reconstroem a vida, ao lado de outras histórias de superação.
Nas árvores, tentavam beber água da corrente e afugentava-se o sono.
“Naquela mangueira”, uma das árvores mais imponentes da paisagem local, “havia 50 pessoas”, recorda João Brás, 67 anos, secretário da aldeia de Ndeja.
Após dois dias na árvore, foi possível caminhar até uma estrada junto à povoação de John Segredo, cujas imediações tinham sido arrasadas pela corrente: “em 20 minutos qualquer casa podia ser coberta com a água”.
As histórias sucedem-se e cada qual com detalhes relatados com tanta expressividade que mostram estar vivos na cabeça das vítimas do Idai.
Luzia João, 47 anos, viúva, enfrentou sozinha as cheias provocadas pelo idai em Mafamabisse, Sofala, com três filhos para proteger das águas.
Conseguiu chegar a um sítio alto, longe da corrente, mas perdeu tudo e levou tempo até voltar a ter a medicação para uma doença crónica, o que a deixou em sobressalto durante semanas.
Rosa Pedro, 32 anos, passou a ter a comoção estampada no estado natural da sua face, depois de fugir durante dois dias, pelos campos de Mafambisse, sozinha, com dois filhos, a abrigar-se debaixo de árvores e com plásticos que encontrou.
Um tinha três anos e outro era um bebé de dois meses.
“Agarrei-o assim” e encosta o braço ao peito, aninhado ao corpo, mostrando onde o prendeu antes de atar uma capulana a toda a volta do seu corpo e agarrar o outro filho pela mão, os únicos gestos que importavam.
O período chuvoso de 2018/2019 foi dos mais severos de que há memória em Moçambique: 714 pessoas morreram, incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.
O ciclone Idai atingiu o cento de Moçambique em março, provocou 603 mortos e a cidade da Beira, uma das principais do país, foi severamente afetada.
O ciclone Kenneth, que se abateu sobre o norte do país em abril, matou 45 pessoas.
* A Lusa viajou na província de Sofala com o apoio logístico das Nações Unidas
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