Corria o mês de agosto do ano de 1921 quando a insulina foi pela primeira administrada num cão. Hoje, quase um século depois, a "droga" tornou-se mais eficaz e os métodos para ser administrada evoluíram largamente, permitindo maior conforto a quem depende de insulina para levar uma vida normal.
Em ano de centenário da invenção da insulinoterapia, o SAPO24 esteve à conversa com o professor Davide Carvalho, médico, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM) e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Existem dois tipos de diabetes, a tipo 1, “que aparece predominantemente nas crianças e nos adolescentes”, e a tipo 2, “que aparece nas pessoas mais idosas”, explica Davide Carvalho. No caso dos diabéticos de tipo 1 existe "uma carência absoluta de insulina, se [as pessoas] não tomarem insulina, morrem”. No caso dos diabéticos de tipo 2, os doentes podem ter de proceder ao tratamento por insulina porque se dá “uma exaustão completa do pâncreas”, “que deixa de produzir insulina”.
Nesse sentido, estamos perante "uma terapêutica que salva vidas", salienta o médico e professor.
Assim, e para assinalar o centenário da insulinoterapia, a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM) criou uma exposição itinerante, que arranca a 28 de janeiro, e onde será possível ver as primeiras agulhas, seringas, dispositivos para avaliar a glicemia e bombas infusoras. A par, serão organizadas conferências sobre a diabetes e suas terapêuticas.
"A ideia da Sociedade foi levar a todo o país este enorme avanço que foi realizado”, preparando uma exposição que vai desde o início da descrição da diabetes e da publicação dos primeiros artigos científicos até às mais sofisticadas maneiras de administração de insulina, explicou Davide Carvalho.
De um cão diabético a bombas de infusão de insulina, o caminho da insulinoterapia até aos dias de hoje
"A insulina foi pela primeira vez administrada em agosto de 1921 a um cão" por Frederick Banting e Charles Best, começa por contar Davide Carvalho. Dois anos mais tarde, em 1923, pelos feitos nesta área, Banting viria a ganhar o prémio Nobel da Medicina.
Ao início, quando se começou a estudar a substância que mais tarde viria a ser denominada de “insulina”, o estudo recaiu sobre cães pancreatetomizados, ou seja, cães aos quais foram retirados os pâncreas e que, portanto, ficaram “diabéticos”, com uma total desregulação do açúcar no sangue.
“Utilizando estratos desses pâncreas”, que haviam sido retirados, os médicos começaram a tratar os animais e a verdade é que o seu nível de açúcar no sangue foi normalizando.
E, assim, pela primeira vez, ficou provada a existência de uma substância que “controlava o açúcar” no sangue.
Numa segunda fase, começaram “a ser preparados diversos extratos do pâncreas e começaram a ser utilizados no homem”. “Ao contrário do que acontece com outras hormonas, neste caso as hormonas animais acabam por ter uma ação muito parecida com as humanas e têm o mesmo efeito hipoglicemiante no homem”, explicou o médico.
Assim sendo, “começaram a utilizar-se animais de maior porte, nomeadamente bovinos e, mais tarde, felinos de onde se extraía dos pâncreas destes animais a insulina”, acrescentou Davide Carvalho.
Como esta insulina criada inicialmente era “uma insulina de ação relativamente curta”, o objetivo da ciência passou por tentar “criar insulinas de ação mais prolongada e tentou-se adicionar vários tipos de substâncias”, como o zinco ou a protamina.
No entanto, “mesmo assim, estas insulinas de ação prolongada não eram a resposta ideal, porque havia momentos em que o açúcar, nomeadamente a nível após as refeições, atingia valores muito elevados”. Desta maneira, “avançou-se para fazer terapêuticas combinadas”, aproveitando os benefícios de ambos os métodos – o de ação de curta duração e o de ação mais prolongada.
"Mais tarde, verificou-se que estas insulinas continham muitas impurezas e avançou-se para a purificação progressiva destas insulinas, melhorando a sua qualidade”, explicou Davide Carvalho.
“Mais tarde ainda, avançou-se para a produção, por engenharia genética, de insulina igual à insulina humana. No fundo, obtinha-se o código genético da insulina”, sendo que hoje em dia o procedimento é realizado em “biorreatores que produzem esta insulina humana”, clarificou.
“Depois deste sucesso avançou-se para a criação, nomeadamente, de análogos de insulina de ação prolongada. Portanto, de insulina ligeira em que se modificam alguns aminoácidos e se obtêm insulinas de ação prolongada", disse o médico.
Mais recentemente, estas insulinas análogas à insulina humana, mas modificadas, têm já a capacidade de se “ligarem a ácidos gordos que formam depósitos a nível subcutâneo”.
Segundo o professor Davide Carvalho, há já insulinas a ser desenvolvidas que têm uma “duração de ação de uma semana”, apenas sendo necessário que sejam administradas, deste modo, uma vez por semana.
Não obstante, ao mesmo tempo, têm também sido desenvolvidas insulinas “de ação ultrarrápida”, ou seja, “insulinas que mesmo administradas a nível subcutâneo têm uma ação muito rápida”, passando “a ser absorvidas em 10 a 15 minutos”, conseguindo “ter picos muito parecidos com aquilo que acontece quando nós ingerimos alimentos e o pâncreas normal produz a sua secreção”. A par, “começaram a aparecer aquilo que se chama «genéricos» de insulina”, produzidos também com engenharia genética.
Neste percurso de 100 anos, Davide Carvalho destaca o trabalho de dois professores: Ernesto Roma (1887-1978), que “ficou entusiasmado” com a questão e trouxe para Portugal o tratamento por insulina, e Manuel Bruno da Costa, antigo presidente da SPEDM, e que em 1938 anunciou pela primeira vez que “tinha produzido insulina num laboratório de química e física e química biológica da Universidade de Coimbra” – naquela que seria a primeira produção de insulina em território nacional, dado que na altura do professor Ernesto Roma a insulina “era importada”.
Quanto aos métodos de administração de insulina no corpo humano, o professor Davide Carvalho conta que se tem evoluído num caminho contra a “administração de seringas”, sendo que já se passou por “canetas” e agora a aposta passará por “bombas infusoras de insulina”. A insulina "pode ser administrada por via intravenosa nas situações agudas, mas, habitualmente, é utilizada a via subcutânea".
De acordo com o médico, a vantagem destas bombas infusoras é que funcionam realmente como um “pâncreas artificial”, na medida em que há “sensores de glicose que recomendam o início da insulinoterapia”.
Assim, atualmente “há dispositivos que a nível subcutâneo são capazes de administrar uma quantidade de insulina basal” a ordem do doente, com o objetivo de corrigir os níveis de açúcar no sangue. Estes dispositivos, porém, ainda não passam de uma promessa para muitos doentes.
Quando questionado sobre métodos alternativos, Davide Carvalho explicou que "houve tentativas de utilizar insulinas nasais e pulmonares, mas os resultados não foram muito promissores e, portanto, acabaram por ser descontinuadas".
Apesar de os tratamentos serem cada vez mais eficazes, não se deve descurar o papel do doente. Estes "têm um papel muito importante, nomeadamente, na avaliação de como é que está o seu açúcar”. De facto, o caminho é o de cada vez maior “automatização”, mas urge sempre que o doente se mantenha atento e informado sobre si mesmo.
De referir que "a diabetes é a principal causa de cegueira no mundo ocidental, é a principal causa de insuficiência renal, o que leva à diálise e ao transplante e é a principal causa de amputação sem ser por acidente no mundo ocidental”, lembrou o professor.
Daí que seja fundamental "ter um bom controle glicémico”. Assim, não basta dar a insulina ao doente, é necessário um regular e atento controlo para não ocorrerem efeitos nefastos.
Ainda assim, “um dos efeitos colaterais que pode aparecer são as hipoglicemias, isto é, o doente pode ter uma baixa de açúcar” e, em consequência, pode chegar a “entrar em coma”. Estes casos ocorrem quando se toma insulina a mais, quando se faz demasiado exercício e “se gasta mais açúcar do que o que se deve” ou quando o doente não se alimentou de todo ou não se alimentou o suficiente depois de ter introduzido insulina no organismo, explicou o professor.
A diabetes é uma doença crónica e progressiva, associada a elevados custos sociais e nos sistemas de saúde. Estima-se que afete mais de 1 milhão de portugueses, enquanto a "pré-diabetes" afetará cerca de 2 milhões.
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