Países como o Reino Unido e o Japão têm já um Ministério da Solidão. Em Portugal, tendo em conta que o líder do futuro Governo, António Costa, anunciou a intenção de constituir um executivo de menor dimensão, o investigador considerou que seria adequado ter uma Secretaria de Estado, enquadrada na tutela da Saúde, mas não só.

“Claro que uma Secretaria de Estado deste tipo tinha de ficar encavalitada algures entre o Ministério da Saúde e o Ministério dos Assuntos Sociais, porque não é apenas uma questão de saúde no seu sentido estrito”, sustentou o professor catedrático, aposentado, da Universidade do Porto, que coordena atualmente o Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo.

A solidão, afirmou, não se acompanha, nem se monitoriza apenas numa perspetiva médica, mas também numa perspetiva social “muito intensa”.

“Os japoneses sabem que na sua população, designadamente nas grandes cidades, em Tóquio, uma percentagem muito significativa das pessoas vive em situações de grande solidão. Daí a premência de terem um organismo ministerial projetado para lidar com estes casos. Fizeram esse estudo, esse inventário”, exemplificou.

Para Adalberto Dias de Carvalho, que se mantém ligado ao centro de investigação do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, a situação é complexa e foi agravada com a pandemia de covid-19.

“Para lidar com estes casos não basta mandar ao hospital, não basta dar uma casa, dar mais comida. Tudo isso é importante, mas nada por si só resolve, dada a complexidade do fenómeno da solidão”, frisou, sugerindo que a tutela da Secretaria de Estado, ou organismo similar, poderia também passar pelo Ministério do Trabalho.

“Era importante que o organismo político que monitorizasse a problemática da solidão tivesse uma relação transversal com os vários ministérios, dada a multidimensionalidade do fenómeno”, defendeu.

“Seria muitíssimo importante [a Secretaria de Estado], porque há fenómenos que tendem a ser falados, mas depois ocultados, de alguma forma. Embora a solidão tenha deixado de ser um tabu, a verdade é que não veio para a ordem do dia nos debates políticos que vimos na campanha eleitoral. Não foi um tema que tenha aparecido como tal”, lamentou Adalberto Dias de Carvalho.

Com a pandemia, a solidão deixou de ser apanágio dos idosos ou populações isoladas para estar mais marcadamente em todos os setores da sociedade, jovens incluídos.

Apesar de o tema estar “muito presente” e de ser “muito vivido”, para o catedrático tem sido, ao mesmo tempo “muito ocultado” e “muito silenciado no debate político”.

“A solidão tem causas e repercussões não só em termos da vivência individual, o que já por si é importante. Hoje em dia, há também o chamado PIB da felicidade e os países até são cotados numa hierarquia quanto ao grau de felicidade que é usufruído pelos seus habitantes. E a solidão não traz felicidade. Esta solidão de que estamos a falar, solidão negativa”, especificou.

Ao poder executivo, Adalberto Dias de Carvalho deixou uma chamada de atenção também neste campo. “Se os políticos tomarem consciência de que, a par do sentido económico do PIB, também deve haver um sentido vivencial que tem a ver com o tal PIB da felicidade, é fundamental que a questão da solidão, por esta razão, se torne uma questão para os políticos, um desafio, uma responsabilidade”.

“Eu separei o económico da felicidade, mas a separação não é tão clara assim, mesmo para um economicista. Porque as pessoas em situação de solidão ou muito próximas de estados de solidão são tendencialmente pessoas que vão ser economicamente menos dinâmicas, menos empreendedoras”, justificou.

Segundo o académico, mesmo os economicistas, deviam olhar “com muita atenção” para um problema que considera “grave e muito importante” nas sociedades atuais.

“Nós vivemos em sociedades que se dessacralizaram, que são sociedades civilistas, em que o peso da religião deixou de ser tão importante, na medida em que tradicionalmente as pessoas também buscavam na igreja, nas práticas religiosas, em termos comunitários e não só - também em termos introspetivos - um apoio que quantas e quantas vezes lhes aliviava o sentimento de solidão”, explicou.

“Em sociedades laicas como a nossa, o peso da religião diminuiu imenso e quer a vivência em sociedades religiosas, quer a busca da compensação na relação com a divindade perdeu o peso que tinha”, assumiu Adalberto Dias de Carvalho.

Na opinião do investigador, se a educação deixou de ser “apenas uma atividade que era regulada pela religião”, também a questão da solidão deixou de o ser.

“A solidão é hoje em dia, por esta via, e no sentido nobre da palavra uma questão ´política´. E a nobilitação da política, numa sociedade laica, exige que o Governo, que as entidades governamentais valorizem, na sua orgânica e na sua atividade, a problemática da solidão. Sem dúvida nenhuma!”, declarou.

A solidão "passou a fazer parte dos sentimentos das pessoas”"

“Era qualquer coisa que as pessoas não falavam. Podiam falar de depressão, mal estar, enfim, mas não propriamente da solidão. E a solidão, mais do que uma noção, é uma vivência que passou a fazer parte dos sentimentos das pessoas”, afirmou o investigador.

A par do isolamento físico, social ou não, a questão da solidão coloca-se hoje em várias frentes, sobretudo no que tem a ver com o distanciamento em relação aos outros.

“Normalmente o que se sente aqui mais chocante e que não nos surpreende é o distanciamento em relação a familiares e inclusivamente a amigos próximos, em consequência da pandemia”, observou.

O receio de contágio, “a desconfiança” em relação ao outro, pelo potencial de infeção de um vírus cujas causas e consequências são ainda desconhecidas, leva a que os contactos presenciais sejam reduzidos.

“Mesmo que contactem telefonicamente, mesmo que se avistem, mesmo que se encontrem, os cuidados em termos de máscara, de não tocar, de não se aproximar, estão a gerar uma profunda alteração nas relações afetivas”, sustentou Adalberto Dias de Carvalho.

As alterações observadas são consideradas inquietantes pelo investigador, professor catedrático aposentado da Universidade do Porto, que se mantém ligado ao Instituto de Filosofia daquela instituição e que coordena o Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo.

“As pessoas manifestam ter consciência, ou sentirem, que as suas relações, nomeadamente com os mais próximos, por razões familiares ou de amizade, estão alteradas, estão deterioradas”, relatou.

“Isto provoca um afastamento. A perda de uma proximidade afetiva, em que as pessoas se sentem penalizadas e sentem que isso lhes traz frustração, que lhes traz tristeza. Penso que isso é um dos aspetos mais importantes que o prolongamento da pandemia traz”, admitiu o académico.

De acordo com Adalberto Dias de Carvalho, a perda da esperança ou o risco de se perder a esperança no regresso uma situação de regularidade relacional é um dos aspetos mais marcantes da pandemia nesta fase: “No início, apesar de um isolamento mais forte, havia aquela expectativa de que fosse de curto prazo, depois passava, depois a expectativa das vacinas, que iam resolver tudo. Realmente sabemos que a situação a esse nível está melhor, mas a pandemia continua aí e as pessoas têm receio de que, mesmo que ela venha a diminuir, volte de novo e isso é um aspeto muito importante”.

A par do sentimento de solidão decorrente do prolongamento da pandemia, há também, na opinião do investigador, uma “carência” de informações que transmitam segurança.

“Se houve uma ´crença´ na ciência, esta ´crença´ na ciência esboroa-se de alguma forma, dado o prolongamento da pandemia e dadas as contradições entre os vários interveniente que aparecem frequentemente nos meios de comunicação social a dizer algo de contraditório”, referiu.

Acrescem as diferenças com que os vários países gerem a pandemia.

“Cria descrença na ciência, mas nós até podemos acreditar que todos eles têm razão. Também podem dizer que a ciência não tem certezas à partida, as certezas vão sendo construídas, as verdades vão sendo construídas. Pode dizer-se tudo isso, mas numa altura em que as pessoas estão a padecer e numa época em que a mediatização dos resultados científicos é constante (...), por um lado houve uma aproximação à ciência, mas foi uma aproximação à ciência que está a ser, neste momento, em grande parte, funesta para as pessoas”, declarou o responsável pelo Observatório.