Em entrevista à agência Lusa, o conselheiro José António Lameira manifestou esta posição, a qual esteve em minoria no debate em plenário do CSM. Apesar de a sua solução ter menos apoiantes, a mesma ficou a constar da deliberação final do plenário do CSM, tomada no início de maio.

As duas soluções já foram entregues ao Ministério da Justiça.

A que obteve maioria no plenário, e que foi defendida pelo anterior presidente do CSM, António Joaquim Piçarra, foi a de propor a fusão do "Ticão" com o Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, aumentando de dois juízes (Carlos Alexandre e Ivo Rosa) para sete, deixando estes dois tribunais de funcionar separadamente.

Segundo José António Lameira, o TCIC (com sede em Lisboa) tem uma distribuição anual de cerca de 14 processos de instrução por cada um dos [2] juízes", pelo que, pessoalmente, considera não poder aceitar a solução de quem é favorável ao "aumento do número do quadro de juízes para este tribunal [Tição]", ainda que os casos judiciais possam ser complexos, porque absorve "um diminuto número de processos".

Não havendo em Portugal um tribunal central de julgamento, como acontece em Espanha (Audiência Nacional, com sede em Madrid e que tem jurisdição em todo o território espanhol), os processos instruídos pelo "Ticão", referiu, vão para os vários tribunais de julgamento, onde os respetivos juízes "não têm uma pendência [anual] de 14 processos, nem de 20 ou 30", mas de toda uma "panóplia de outros processos".

Tudo isto, explicou, com a agravante de que o julgamento a realizar nesses tribunais criminais "deve ter maior exigência de apreciação [dos factos] do que a fase de instrução", que é a etapa processual que compete ao TCIC nos chamados crimes de catálogo (criminalidade mais grave e complexa) ou "quando o crime seja praticado no território de mais de uma Comarca pertencente a Tribunais da Relação diferentes".

José António Lameira deu exemplos da forma "incongruente" como o atual sistema funciona, em que um crime com factos ligados a três cidades distantes entre si vai parar ao tribunal de instrução criminal do Porto e outro crime com factos praticados em cidades muito próximas vai parar ao "Ticão".

"Isto compreende-se?", questionou o juiz conselheiro e antigo presidente do Tribunal da Relação do Porto.

Também sucedem situações em que um processo cuja instrução foi efetuada pelo TCIC siga depois para julgamento num tribunal criminal em Braga, Bragança ou Vila Real, o que é também revelador da "incongruência" do sistema.

Assim, o vice-presidente do CSM defende, a título pessoal, a solução que diz ter sido, no passado, preconizada pelo antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do CSM, Henriques Gaspar, e também pelo gabinete da antiga ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz que "é a disseminação da competência do TCIC pelos tribunais de instrução criminais existentes no país".

José António Lameira lembrou que um dos argumentos em defesa da manutenção em funcionamento do "Ticão" é o de que "é um tribunal especializado", mas considerou esse argumento "falso", porque "todos os tribunais de instrução criminal são tribunais de competência especializada".

O vice-presidente do CSM reconheceu que na altura em que o TCIC foi criado, em 1999, "não havia juízes de instrução criminal com as qualificações como as que hoje existem", observando que presentemente "todos os juízes de instrução criminal têm que ter, no mínimo, 10 anos de serviço e classificação de Bom com Distinção".

Por outro lado - sublinhou - "não há diferença na competência entre um juiz do TCIC e qualquer juiz de instrução do Porto, Lisboa ou Coimbra", pois "todos têm a mesma competência" especializada.

Em sua opinião, "isto tem que ser discutido e no CSM já foi amplamente discutido", tendo este órgão de gestão e disciplina dos juízes, composto por 17 membros, apresentado um parecer sobre a matéria ao Governo, pelo que "agora compete ao poder político decidir" sobre o futuro do "Ticão".

Pelo TCIC passaram alguns dos processos de criminalidade mais grave, organizada e complexa, e também mais mediáticos, como a Operação Marquês, caso BES, caso BPN, os Hells Angels, Vistos Gold e a Máfia do Sangue, entre outros.

Na entrevista, José António Lameira mostrou-se contrário a uma eventual mudança legislativa para acabar ou restringir a instrução - fase processual facultativa frequentemente apontada como uma das causas da morosidade da justiça criminal -, assinalando, a título de exemplo, que no "caso Selminho no Porto, a fase de instrução foi rapidíssima", após a "juíza indeferir algumas diligências de prova".

Reconheceu existirem outros juízes com "uma visão mais ampla do que é a instrução" e que "admitem diligências de prova que, se calhar, o colega do lado não admitiria", com reflexos no andamento dos trabalhos. Vincou que tudo depende da "interpretação da lei" que é feita pelo juiz titular e que o CSM "não se pode imiscuir" nessa esfera de competência.

Na entrevista à Lusa, José António Lameira revelou que o CSM está a discutir uma proposta sobre distribuição dos processos, para apresentar ao Governo, que reforça o conhecimento e as competências do CSM nesse domínio, pois, conforme admitiu, o CSM, na prática, "não controla", nem sabe como funciona o "algoritmo" usado para sorteio dos processos nos tribunais, uma vez que tal função informática está nas mãos de uma entidade (IGFEJ - Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça) tutelada pelo Ministério da Justiça.

"É evidente que o IGFEJ está tutelado pelo Ministério da Justiça e, nesse sentido, se quiser, é o poder político que controla [o sistema informático de distribuição aleatória dos processos]. Nós não temos acesso a isso (algoritmo)", concluiu.

Entrevista ao vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura José António Lameiras
O vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura, José António Lameiras, durante uma entrevista à Agência Lusa, em Lisboa, 8 de junho de 2021. MIGUEL A. LOPES/LUSA créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

CSM quer acelerar formação de juízes para colmatar défice

"Temos sempre problemas com as licenças de maternidade ou com baixa por motivos de doença, prevendo-se muitas jubilações, e este ano houve bastantes", afirmou, notando que "tudo isso" causa "uma carência tremenda de quadros".

Quanto à falta de juízes, o vice-presidente do CSM admitiu que está prevista na lei uma "bolsa de juízes", mas notou que esta "se esgota a ela própria quando os juízes colocados na bolsa entram de licença de maternidade" ou de baixa, e "não há quem os substitua".

"A bolsa de juízes tem muito poucos juízes para substituir todas essas situações de licença de maternidade, doença ou outras", afirmou, dizendo que o CSM alertou a ministra da Justiça e o diretor do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) para a eventual necessidade de "encurtar o curso [para juízes], como ocorreu no passado, ou "criar um curso especial para solucionar" o problema.

Segundo indicou, nos últimos dois anos a renovação anual do quadro de juízes oscilou entre 35 e 40 e idêntico número está previsto para 2022, pelo que será preciso "um curso especial" de formação de juízes ou "encurtar os cursos".

José António Lameira refutou críticas de quem acusa o CSM de "não prever o futuro".

Referindo que no Tribunal de Comércio de Lisboa, "onde há largas dezenas ou centenas de processos anteriores a 2014", o CSM, em conjugação com o presidente da Comarca "está a tentar formar uma equipa de reforço não só para solucionar os processos que se encontram parados e muitos deles antigos", mas também para enfrentar um eventual acréscimo de processos" resultantes da pandemia.

Admitiu que, com a pandemia por covid-19, é previsível que surjam mais processos na área dos tribunais do Comércio e do Trabalho, observando que tudo vai "depender as medidas que o poder político tomar", pois o CSM "não sabe se as moratórias ao crédito vão ser prolongadas" e se "vai haver restruturação das dívidas das famílias e das empresas", situações que "vão condicionar a litigiosidade nos tribunais".

Realçou que, ao contrário do que muitos previram durante a pandemia, não houve, em setembro de 2020, uma avalancha de processos, assim como não ocorreu em janeiro de 2021, quando tantos anunciavam que ia ser o "caos" nos tribunais.

"Os tribunais, ao contrário do que se possa pensar, durante a pandemia acabaram mais 13.226 processos do que aqueles que entraram", embora reconheça que nesse período o volume de processos entrados também decresceu.

Assinalou contudo que "nos últimos anos se assiste a uma diminuição substancial das pendências nos tribunais", rejeitando a ideia que isso resulta basicamente do valor elevado das custas judiciais, que dificultam o acesso à justiça.

Em termos numéricos, o vice do CSM revelou que nos últimos meses deste ano entraram nos tribunais 324 mil processos e findaram 330 mil, mercê da resposta positiva dos juízes e dos tribunais.

Na entrevista, acerca da crescente desjudicialização e privatização da justiça, José António Lameira disse "não ter nada contra a arbitragem", mas criticou e disse não poder aceitar que "seja o próprio Estado a não confiar nos tribunais estaduais e a socorrer-se das arbitragens".

"Isso é que não aceito. Não aceito que o setor público ou o setor estadual na resolução de litígios com particulares privilegie a arbitragem em detrimento dos tribunais estaduais. O Estado não pode desconfiar de si próprio", enfatizou.

A arbitragem é um método de resolução de conflitos, no qual as partes definem que uma pessoa ou uma entidade privada irá solucionar a controvérsia apresentada pelas partes, sem a participação dos tribunais comuns, sendo que alguns casos dirimidos pelo Estado em arbitragem atingem valores de milhões de euros.

Ainda sobre a arbitragem, vincou que o CSM "é bem claro" em considerar que os juízes não podem participam nas arbitragens, mesmo que estejam jubilados, embora diferente seja a situação dos colegas aposentados.

Numa altura em que decorre processo disciplinar relacionado com uma arbitragem efetuada nas instalações da Relação de Lisboa pelo antigo presidente daquele tribunal, Vaz das Neves, o vice do CSM garantiu que atualmente o CSM "não tem conhecimento" de qualquer outro caso envolvendo um juiz.

Alertou contudo que há "uma situação em que é a própria lei que impõe que seja um juiz a fazer a arbitragem", nomeadamente no Tribunal Arbitral do Desporto, embora não possa haver remuneração.

Admitiu que esta lei do Tribunal Arbitral do Desporto possa colidir com o Estatuto dos Juízes, gerando conflito de leis, mas avançou que não vai ser o CSM "a levantar a questão".

Questionado sobre alegadas irregularidades e outras críticas apontadas ao concurso de graduação de juízes desembargadores para acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, José António Lameira, que integrou o júri, ironizou que, muitas vezes, "só o primeiro [classificado] fica satisfeito e os outros ficam todos zangados", assegurando que o trabalho do júri foi "sério" e "honesto", tendo algumas reclamações sido já decididas pelo STJ, não dando razão aos reclamantes.

Quanto à critica de o CSM não quis discutir a proposta com a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) sobre transparência interna da classe, respondeu serem "naturais as tensões". Confirmou que o CSM "não subscreveu a proposta" e disse foi o plenário daquele "órgão de Estado" (CSM), que "não quis receber a ASJP".

Em contrapartida, realçou que CSM e ASJP tem grupos de trabalho em conjunto para tratar de matérias como "inspeções e complexidade de processos" e que o CSM deu já pareceres a diplomas do BE, PCP, PSD, CDS, CHEGA e do PS sobre a questão das "obrigações declarativas [de rendimentos] e crime de ocultação e enriquecimento".

Por: Fernando Carneiro da agência Lusa

Porque o seu tempo é precioso.

Subscreva a newsletter do SAPO 24.

Porque as notícias não escolhem hora.

Ative as notificações do SAPO 24.

Saiba sempre do que se fala.

Siga o SAPO 24 nas redes sociais. Use a #SAPO24 nas suas publicações.