Em 2019, Biden viu negado o direito a comungar numa igreja da Carolina do Sul, já que, apesar de dizer ser contra o aborto, também afirma que não deve impôr a sua crença à sociedade norte-americana — posição que tem vindo a trazer alguns problemas, uma vez que a Igreja é contra esta intervenção.

Por isso, no verão passado, a Conferência Episcopal dos Estados Unidos votou em larga maioria, numa reunião virtual, para começar a elaborar orientações sobre o sacramento da Eucaristia. Existindo tal documento, este poderá tornar-se num veículo para os líderes conservadores da Igreja pressionarem para que a comunhão a católicos que apoiem o aborto seja de facto proibida.

Todavia, tal pode não ser assim tão simples. De acordo com as leis da Igreja, para o documento ser aprovado, agora no mês de novembro, uma de três coisas teria de acontecer: haver apoio de todos os bispos, de pelo menos dois terços destes ou, o dito impossível, a aprovação do Vaticano.

Na opinião de vários especialistas, o documento em causa pode vir a afirmar fortemente a importância da Eucaristia, um dos sacramentos mais importantes do Cristianismo, refletindo as preocupações do Papa e não apelando explicitamente à negação da comunhão a figuras políticas e culturais influentes.

Depois do democrata John F. Kennedy, Joe Biden é o segundo presidente norte-americano católico — vai à missa todos os domingos, faz o sinal da cruz quando discursa e tem uma fotografia do Papa Francisco na Sala Oval. Por isso, o encontro que hoje aconteceu com o Papa teve também algo de pessoal.

Mas pode ter sido algo mais ainda, já que o tema que tem estado em debate na Igreja Católica norte-americana surgiu brevemente no encontro.

"A comunhão não é um prémio para os perfeitos"

Ao longo do pontificado de Francisco, o lado conservador da Igreja Católica americana tem entrado por diversas vezes em conflito com as opiniões do Papa. E se tal já era inegável, é agora ainda mais perceptível ao surgir esta intenção de proibir a comunhão a quem apoie valores contrários aos defendidos pela doutrina — ou que não imponha travões ao procedimento, como é o caso de Joe Biden.

Neste sentido, têm vindo a ser pensadas orientações por parte dos bispos para que o plano seja colocado em marcha. O Vaticano tem conhecimento, mas o Papa Francisco não se manifestou em grande escala sobre o tema porque, como referiu o The New York Times em junho, pensa que nada mais há a dizer. Assim, especialistas entendem este quase silêncio como a manifestação de ausência de surpresa pelo voto dos bispos americanos.

Contudo, no mês passado, o Papa Francisco comentou brevemente o assunto. Questionado sobre o debate sobre a comunhão nos Estados Unidos, disse aos jornalistas que o aborto é "assassínio".

Por outro lado, também pareceu criticar os bispos católicos dos EUA por lidarem com a questão de uma forma política em vez de pastoral. "A comunhão não é um prémio para os perfeitos. A comunhão é um dom, a presença de Jesus e da sua Igreja", frisou o Papa, lembrando que os bispos devem usar "compaixão e ternura" com os políticos católicos que apoiam o direito ao aborto.

A opinião de Francisco não é nova: desde a sua eleição, em 2013, que tem vindo a afirmar que, embora a Igreja se deva opor ao aborto, a questão não se deve tornar uma batalha consumidora em guerras culturais que desviam a atenção de questões como imigração e pobreza.

No fundo, para o Vaticano, a ideia é que, mesmo havendo documento, a decisão final possa ser deixada à responsabilidade de cada bispo — o que já acontece nos Estados Unidos desde 2004, altura em que a conferência episcopal publicou uma declaração que dizia que os bispos poderiam decidir se negariam a comunhão a políticos católicos que apoiavam o direito ao aborto. Neste sentido, o Cardeal Wilton Gregory, de Washington, deixou  já claro que não irá negar a comunhão ao presidente norte-americano.

Porém, resta uma preocupação por parte da Igreja: que os conservadores que dominam a conferência episcopal utilizem o rito da comunhão como arma política, politizando assim o culto.

Assim, a maior ameaça colocada pela votação da possibilidade de vedar a comunhão a um determinado grupo de pessoas centra-se na unidade da própria Igreja americana — e não no facto de Biden e outros políticos católicos que apoiaram o direito ao aborto verem a comunhão ser-lhes negada.

Uma reunião em que Biden foi referido como "bom católico"

Biden iniciou hoje no Vaticano, com um encontro com o Papa Francisco, uma viagem de cinco dias pela Europa que o levará no sábado à vizinha Roma, para participar na cimeira do G20, e posteriormente a Glasgow para a conferência climática COP26.

Estava previsto que o encontro fosse transmitido em vídeo, mas o Vaticano informou ontem que afinal isso não iria acontecer, sem dar justificações para a mudança de ideias à última hora, embora a hipótese mais apontada esteja relacionada com as restrições devido à pandemia. Contudo, foram divulgadas, posteriormente, imagens de algumas partes da chegada e a saudação do Pontífice.

"É bom estar de volta", disse Joe Biden à chegada ao Vaticano, lembrando que já tinha ali estado na condição de vice-Presidente dos EUA, durante a presidência de Barack Obama.

Da última vez, em 2016, a visita deu-se depois de um momento difícil para a família Biden: a morte de Beau Biden, filho do agora presidente, em 2015. Durante o período de luto, o Papa aconselhou em privado Joe Biden e outros membros da sua família.

Embora não seja conhecida a totalidade do que saiu da reunião de hoje quanto ao tema que a Igreja norte-americana quer ver resolvido — apenas foi referido pela CNN que Biden afirmou que Francisco o considera um "bom católico que continua a comungar" —, especialistas acreditam que o dia de hoje deverá ajudar Biden no seu impasse com os bispos dos EUA, numa altura em que o tema voltou à ordem do dia depois de um tribunal federal de recurso ter restabelecido a lei anti-aborto aplicada no estado do Texas, episódio que vai ser debatido no Supremo Tribunal dos EUA na próxima segunda-feira.

Esta sexta-feira, a totalidade do encontro durou cerca de 90 minutos — com uma conversa quase duas vezes mais longa do que aquela que aconteceu com João Paulo II, na década de 1980. Depois, o Papa Francisco esteve reunido com uma delegação maior dos EUA, incluindo o presidente, a primeira-dama Jill Biden, o secretário de Estado Anthony Blinken, entre outros, de acordo com a Casa Branca. Com esta visita, é a quarta vez que Joe Biden se encontra com Francisco, além de terem trocado também várias cartas.

Já depois da reunião, a Casa Branca emitiu uma nota que resume o encontro. "Na sua audiência com o Papa Francisco, o presidente Biden agradeceu a Sua Santidade a defesa dos pobres do mundo e daqueles que sofrem devido à fome, conflitos e perseguição. Elogiou a liderança do Papa Francisco na luta contra a crise climática, bem como a sua luta para garantir o fim da pandemia para todos através da partilha de vacinas e de uma recuperação económica global equitativa", pode ler-se.

Também a Santa Sé se manifestou, referindo como pontos essenciais o "compromisso conjunto para a protecção e cuidados do planeta, a situação dos cuidados de saúde e a luta contra a pandemia de Covid-19, bem como o tema dos refugiados e a assistência aos migrantes. Foi também feita referência à proteção dos direitos humanos, incluindo a liberdade de religião e de consciência".

Além disso, "as conversações permitiram uma troca de pontos de vista sobre algumas questões relativas à atual situação internacional, também no contexto da iminente cimeira do G20 em Roma, e sobre a promoção da paz no mundo através da negociação política".

As imagens entretanto divulgadas pelo Vaticano mostram Joe Biden a entregar uma moeda ao Papa Francisco, com o selo dos Estados Unidos de um lado e com o selo do Delaware do outro — o estado norte-americano de que foi governador Beau Biden.

"Sei que o meu filho gostaria que eu lhe desse isto", apontou, acrescentando que as moedas são dadas a "guerreiros e líderes" e que Francisco é "o guerreiro pela paz mais importante" que já conheceu.  Depois, Biden brincou com o Papa, dizendo que este teria de pagar-lhe uma bebida se não tivesse a moeda na próxima vez que se encontrassem. Francisco, mostrando o seu habitual bom humor, riu da piada.

Durante a tradicional troca de presentes, o Papa ofereceu a Biden uma peça de cerâmica representando um peregrino e o Presidente dos Estados Unidos deu-lhe ainda uma peça da Companhia de Jesus bordada à mão, de 1930, que pertence ao acervo da Igreja da Santíssima Trindade em Washington.