O centro de Lisboa acordou a puxar tons britânicos para testemunhar o arranque do segundo funeral de Estado presenciado pela democracia portuguesa.
Debaixo de um céu cinzento e um calor bem português, o cortejo fúnebre de Jorge Sampaio (1939-2021), antigo presidente da República (1996-2006), foi pensado para homenagear o percurso político e a personalidade de um homem de coragem e de causas, promotor de pontes e diálogo, próximo das pessoas e das comunidades.
O modelo das exéquias de Mário Soares (1924-2017) serviu de base, com algumas pequenas adaptações e uma grande diferença. Diferente, na essência, na dispensa, por parte da família, do armão, uma charrete puxada a cavalos, para fazer o percurso até ao Museu Nacional dos Coches e do Mosteiro dos Jerónimos até ao cemitério do Alto de São João (amanhã, 12 de setembro).
Ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa (1990-1995), a primeira paragem do cortejo fúnebre fez-se, por esse motivo, em frente aos Paços do Concelho. Aí esperavam Fernando Medina, atual edil da capital, vereadores, presidentes das juntas de freguesia e candidatos à corrida autárquica de 26 de setembro.
A anteceder o momento da chegada e a cerimónia protocolar (10h36), alguns turistas transportando pastéis de nata (Manteigaria-Fábrica de Pastéis de Nata), outros de passagem para uma unidade hoteleira ali colada e outros ainda por via da prática do jogging e ciclismo, questionavam, por um lado, a razão do encerramento da Praça do Município e da rua do Arsenal e, por outro, da presença de mais de uma dezena de motas da GNR e um jeep da Guarda Nacional Republicana.
Com algumas dezenas de pessoas em silêncio, um popular atravessou em passo acelerado a praça do município e disparou: “por eles fazem tudo, agora do povo ninguém quer saber”.
Duas faixas com fotografias e a frase "obrigado, Jorge Sampaio" desciam a fachada do edifício da Câmara Municipal de Lisboa onde permanecerá a bandeira da cidade de Lisboa a meia-haste.
O silêncio marcou a chegada do cortejo à porta da câmara. Após breves minutos de cerimónia protocolar, com a entrega, pelos familiares, das insígnias honoríficas (condecorações nacionais) do antigo Presidente a três militares da GNR, que as iriam transportar até ao local do velório, para serem colocadas ao lado da urna, seguiu-se uma demorada despedida ao som de aplausos.
O cortejo prosseguiu (10h43) pela rota delimitada: Rua do Arsenal, Praça do Comércio, Avenida da Ribeira das Naus, Cais do Sodré, Avenida 24 de Julho, Avenida da Índia, Praça Afonso de Albuquerque até chegar ao antigo Picadeiro Real, transformado em Museu Nacional dos Coches.
A dança das mãos das três mais altas figuras do Estado português
As três mais altas figuras do Estado - Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues e primeiro-ministro, António Costa - aguardavam serenamente, lado a lado, por esta ordem, da esquerda para a direita, a chegada do cortejo.
Marcelo, permanecia hirto e firme, de mãos coladas às pernas, Ferro Rodrigues saltitava entre as mãos atrás das costas e descaídas ao longo do tronco e António Costa preferia juntar, naqueles instantes, as mãos ao abdómen.
À chegada, a pé, da família direta de Jorge Sampaio, Maria José Ritta, antiga primeira-dama, ladeada pelos dois filhos, Vera e André, escutou-se (11h13) a marcha fúnebre. Os Sampaio, de mão dada entre si, colaram-se à direita de Marcelo Rebelo de Sousa, um momento presenciado por escassa dezena de populares.
A urna coberta com a bandeira nacional foi transportada por seis cadetes dos três ramos das Forças Armadas para dentro do Picadeiro Real. 18 mãos, ao todo.
“Grande homem”, escutou-se do lado de lá da barreira de segurança que separava o público das figuras de estado, políticos, familiares e amigos que iriam presenciar, em privado, a cerimónia.
Para a sala de honra, entrou primeiramente a família, seguida, pela ordem do protocolo, das três figuras de Estado, PR, PAR e PM. Feito o tributo e a guarda de honra ao antigo presidente da República, pela mesma ordem, deu-se a saída dos três políticos. Marcelo, foi o primeiro, seguido de Ferro Rodrigues e António Costa.
Nenhum, por questões protocolares falou com a imprensa presente e Costa foi o único, por razões sanitárias, a parar para desinfetar as mãos com gel colocado à entrada do antigo Museu dos Coches.
“Um verdadeiro socialista, não foi um socialista apenas de cartão”
Várias foram as personalidades políticas, uns no ativo, outro nem tanto, que passaram pelo velório (simples) de Jorge Sampaio.
O executivo socialista surgiu em peso na hora de se despedir do antigo secretário-geral do Partido Socialista (1989-1992). Francisca Van Dunen (Justiça), Eduardo Cabrita, Mariana Vieira da Silva (ministra da Presidência), Graça Fonseca (Cultura), Pedro Siza Vieira (Ministro de Estado, Economia e Transição Digital), que relembrou o “mestre e amigo e Pedro Nuno Santos (Infraestruturas e Habitação) desfilaram pela passadeira vermelha.
O histórico dirigente socialista, Manuel Alegre destacou “a elegância e educação, coerência e ética com que fez política”. Catarina Martins (Bloco de Esquerda) e Jerónimo de Sousa (CDU) chegaram ao antigo Museu dos Coches pelo meio-dia, hora prevista da abertura ao público do velório. À saída, relembraram a luta antifascista e o homem de pontes à esquerda.
O povo ainda não tinha ainda entrado e Ramalho Eanes e Cavaco Silva, anteriores presidentes da República, já tinham saído. Estiveram juntos, em privado, no último adeus e saíram ambos, em separado, de braço dado com o filho de Jorge Sampaio, André.
Eanes recuperou os “valores e convicções humanistas, com expressão no pensamento e na ação” de Sampaio, “uma das figuras maiores da vida política portuguesa contemporânea”, sublinhou.
Cotrim Figueiredo (Iniciativa Liberal) destacou o “amor à liberdade e direitos humanos” do antigo líder socialista, um homem íntegro de “coragem e visão alargada do mundo", caraterísticas que considera faltarem na política portuguesa”.
Inês Sousa Real, líder do PAN (perguntou aos jornalistas se queriam uma declaração) que acrescentou a luta pela liberdade do povo de Timor-Leste e as divergências “no que toca à proteção animal” para as frases de despedida.
O público começava a entrar no Picadeiro Real. Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e apontado como um dos sucessores de António Costa, recordou Jorge Sampaio como uma das suas referências. “Um verdadeiro socialista, não foi um socialista apenas de cartão” e o primeiro a promover e a arriscar no diálogo das esquerdas, sentenciou.
Lá fora, na fila, entre os anónimos cidadãos, destacava-se Maria de Belém, antiga ministra da saúde do governo de António Guterres (1995-1999) e candidata a Belém, em 2016, e D. Manuel Clemente. À saída do velório, o cardeal-patriarca de Lisboa afirmou aos jornalistas presentes guardar “uma memória cheia de respeito e de gratidão” pelo antigo presidente, enaltecendo a sua “atitude constante de cidadania”, numa alusão, em especial, ao empenho do antigo chefe de Estado na “ligação dos povos e das civilizações” e no “apoio aos refugiados sírios”.
À cerimónia não podia faltar um cachecol do Sporting Clube de Portugal. Um cidadão fez questão de relembrar, com o gesto, que Sampaio, ilustre adepto do clube de Alvalade, para além de “socialista de coração”, nas palavras de Pedro Nuno Santos, dividia o dito com o leão.
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