Ontem, dia 7 de dezembro, celebrou-se o Dia Internacional da Aviação Civil, mas esta entrevista podia ser publicada (e lida) noutro dia qualquer. A conversa é com José Correia Guedes, piloto da TAP durante quase 40 anos. As histórias que tem são tantas, que reuniu algumas em "O Aviador", um livro bem-disposto que pretende, mais do que relatar uma vida, ou várias, trazer para perto dos aviões aqueles que têm medo de voar, deitando por terra alguns mitos.

Cresceu em Vila do Conde, "uma pasmaceira", e ficava fascinado de cada vez que vinha a Lisboa, "o resto do país era bastante atrasado". Era o tempo dos Beatles e José Correia Guedes, guitarrista, solista principal, teve até uma banda de rock, "Os Condes", convidada para tocar ali e nos arredores: Póvoa de Varzim, Braga, Santo Tirso... "Ganhava-se bastante dinheiro, o que era interessante, e tinha-se a admiração das meninas", o suficiente aos 16 anos.

Também passou pelo clube de futebol da terra, o Rio Ave, mas, "tragicamente, não tinha jeito para aquilo". Foi uma ligação fugaz e infeliz, "ainda por cima nasci com as pernas tortas". O pai também estranhou o convite dos diretores do clube, que o queriam por causa da estatura. Na escola tinha colegas de Caxinas, terra de pescadores e que seria anos mais tarde também a terra de Fábio Coentrão, e para o deixarem jogar futebol só impunham uma condição: "Jogas, mas tiras os sapatos". Não foi há quinhentos anos, mas era assim então, os mais pobres andavam descalços.

Na verdade, a aviação foi um acaso para o "comandante Guedes", que viu o curso de engenharia interrompido pela tropa e pelos dois anos de serviço militar em Angola, no Luso, onde tinha como missão escutar as transmissões dos países vizinhos, Zâmbia e Congo, locais em que estavam sediados o MPLA e a UNITA.

O que queria mesmo era ser jornalista. "Não gostava muito do curso e acho que nem tinha vocação para aquilo, a minha vocação sempre foi para Letras e Humanidades", diz. Quando chegou a altura de escolher, era isso, para onde iam geralmente as raparigas, ou Ciências. O Direito estava fora de causa. "Era o curso do meu pai, que eu achava que ganhava miseravelmente e parecia um eremita - os juizes eram assim, reservados, e o meu pai não se dava com ninguém, não cultivava amizades, não queria nada que o comprometesse e mantinha uma distância enorme com as pessoas, até em relação à família". Afinal, estavam-lhe reservados outros voos.

Ao serviço da TAP quase 40 anos, conhece a companhia por dentro e por fora. O suficiente para dizer que não concorda com o atual modelo accionista e para garantir que o aeroporto de Lisboa é um perigo à espera da tragédia que, só por milagre, ainda não aconteceu. Ele é testemunha e protagonista do que diz, ao ter evitado um acidente causado por uma falha mecânica que podia ter acabado em catástrofe.

Com o telemóvel em modo de avião, a entrevista começa. Nem de propósito, no dia em que falamos há uma quantidade de voos a serem cancelados por causa do mau tempo na Madeira.

Foi na Madeira que se registou o único acidente fatal da TAP. Recorda-se desse dia?

Perfeitamente. Saí do Funchal meia hora antes do acidente. Descolei para Lisboa e quando cheguei contaram-me o que tinha acontecido. Nestas circunstância perguntamos logo quem ia à frente, e ia um dos meus amigos mais próximos, que tinha feito o curso comigo nos Estados Unidos, o Miguel Leal, com quem eu e a minha mulher partilhávamos a vida. Éramos tão amigos, que quando fomos de viagem de núpcias, para Londres, ele e a mulher foram connosco. Foi muito difícil. No início, a minha mulher apanhou um susto, sabia que eu estava no Funchal - e não havia telemóveis. Depois passámos a noite em claro para, às primeiras horas da manhã e juntamente com uma psicóloga da TAP enviada para o efeito, ir dar a notícia à viúva, que tinha uma filha pequena - que, curiosamente, é hoje diretora de comunicação da TAP, a Rita Tamagnini. Ela não fazia a mínima ideia do acidente, a Rita era muito pequenina, teria à volta de um ano, e tinha adormecido cedo, não sabia do acidente e muito menos que o marido estava envolvido.

Sabe-se por que motivo aconteceu o acidente?

Os acidentes acontecem por várias razões, não há uma razão única, é sempre uma cadeia de acontecimentos. E nesse caso também foi. A tripulação do avião estava muito cansada, já tinha ido a Bruxelas, tinha feio outro voo qualquer, tinha passado o dia a voar, que é o que acontece na Europa, passa-se o dia aos saltinhos. O dia deles acabava na Madeira, com muito mau tempo, chuva e vento. Fizeram duas tentativas e não conseguiram aterrar e, por fim, fizeram uma terceira - normalmente, embora não haja uma regra escrita, entre pilotos é adquirido que depois de duas tentativas de aterragem sem êxito vai-se embora, não se faz a terceira, porque a probabilidade de dar asneira é grande, as pessoas estão ansiosas. Eles já só sonhavam com o hotel, com o descanso, uma bebida à chegada, qualquer coisa para libertar o stress. Tiveram azar, chovia torrencialmente, a pista era muito pequenina, não escoava a água que se acumulou, o avião fez aquaplaning, perderam completamente o controlo do avião, que vai a patinar por ali fora, não conseguiram travar, saíram pelo fundo da pista e estatelaram-se. Perceberam claramente que iam ter o acidente, porque ouvimos as comunicações.

Deve ser um terror ouvir as comunicações...

Principalmente para quem tinha o grau de proximidade que eu tinha. E a família dos outros tripulantes, pais e amigos, ouvirem aquilo. Numa primeira fase, foram só para os investigadores e entidades oficiais, mas depois foram abertas, facultadas às famílias, corriam com alguma facilidade no meio dos pilotos. Ainda nos últimos instantes se ouviam vozes de algum otimismo e de brincadeira, "agora é que é", eu faço e aconteço, "vamos lá a ver se conseguimos pôr esta ***** no chão". O ambiente não era de stress nem de grande preocupação. Esperamos que tenha sido a única vez. Foi muito penoso. No dia seguinte voltei para a Madeira como passageiro, tinha funções no sindicato dos pilotos, para irmos à procura dos corpos dos nossos colegas, que tinham sido incinerados no cockpit. Foi um processo que levou anos a concluir, por questões de seguros e outras.

O que se aprendeu com o acidente?

Aprendeu-se alguma coisa, aumentou-se a pista, que é hoje praticamente o dobro da que existia. Claro que o aeroporto continua a fechar cada vez que há vento, aqueles ventos são incontornáveis. Na altura, foi nomeada uma comissão para estudar o Aeroporto do Funchal, liderada por André Turcat, o piloto de testes do Concorde, que sabia tudo e mais alguma coisa sobre aviação. Participei nela em representação do sindicato dos pilotos, e chegou à conclusão que o projeto de alargamento do professor Edgar Cardoso, que então se estava a fazer, não era viável, porque não resolvia problema nenhum. De resto, como se viu, não resolveu. A pista é maior, mas quando vêm os ventos é como se fosse pequenina, não adianta porque os aviões não conseguem aterrar. A comissão deu o parecer negativo, mas os políticos - neste caso, o presidente do governo regional - conseguiram financiamento e fez-se a obra. Não resolveu grande coisa mas, de facto, a pista é maior.

Em 2017 não houve um único morto em todo o mundo - e estamos a falar de milhões e milhões de passageiros que voaram durante um ano em todas as companhias. É muito mais perigoso andar de cadeira de rodas ou de bicicleta ou de elevador ou de trotineta

Hoje, o que acontece muito, penso que demasiadas vezes, são acidentes com ultraleves. Porquê?

Porque os ultraleves são praticamente aviões de construção artesanal, alguns até se compram em kits e montam-se em casa. O processo de licenciamento é muito vago; enquanto para os outros aviões é preciso um curso, o processo de licenciamento já é universal, para estes o processo é amador, não é preciso ter nenhuma qualificação especial para voar. Não vou dizer que as pessoas são más, mas os aviões são muito frágeis. Há demasiados casos, em Portugal e noutros países. Mas, em relação a acidentes, podemos falar do outro lado: os acidentes estão praticamente a acabar. Em 2017 não houve um único morto em todo o mundo - e estamos a falar de milhões e milhões de passageiros que voaram durante um ano em todas as companhias. Nem uma vítima mortal em toda a aviação civil no mundo. É muito mais perigoso andar de cadeira de rodas ou de bicicleta ou de elevador ou de trotineta.

Infelizmente, não podemos dizer o mesmo em relação a 2018...

Não, porque houve um problema com os Boeing 737 Max, mas aí há um problema de tecnologia envolvido e já encontrado. O que mudou muito as coisas, e participei nessa transição - passou-se do hélice para o jacto, com evoluções dentro do jacto, e depois houve a grande mudança, durante os anos 1980, que foi passar do analógico para o digital, digamos assim, para a tecnologia fly-by-wire [sistema de controlo por computador]. Os aviões tornaram-se muitíssimo mais automatizados, depois de os fabricantes e as companhias perceberem - as estatísticas não mentem - que a esmagadora maioria dos acidentes era provocada por erro humano, fosse ele do piloto, dos mecânicos, dos controladores de tráfego aéreo.

E está a resultar?

A filosofia é retirar responsabilidades aos humanos, dando-lhes um backup rigoroso (os computadores). Estes sistemas, que passaram a desempenhar uma série de funções que os pilotos desempenhavam até então. Funcionam bem, com excepção do caso dos 737, que acabou por ter aquelas tragédias em consequência de uma programação de um software que não funcionou bem ou não estava bem testado - não vou elaborar sobre isso.

Há uma expressão, "jet set", que vem do final dos anos 1960, quando se começa a viajar a jacto, com os Boeing 707, e que só pessoas muito endinheiradas podiam dar-s ao luxo de pagar

Que grandes progressos se registaram na aviação civil nestes anos?

Estive praticamente 40 anos nos aviões e durante esse tempo registaram-se dois enormes progressos: a segurança, que aumentou exponencialmente - é hoje raríssimo haver um acidente de avião - e a economia, a capacidade de tornar o avião mais acessível às massas - os motores tornaram-se muito mais económicos, os bilhetes mais baratos e um avião leva 300 passageiros - já fizeram um modelo que leva quase o dobro, mais de 500. Uma parte muito considerável da população já tem possibilidade de voar. Há uma expressão que se usa hoje a propósito de outras coisas, jet set, que vem do final dos anos 1960, quando se começa a viajar a jacto, com os Boeing 707, que ainda voei, e que só pessoas muito endinheiradas podiam dar-se ao luxo de pagar. Era esse o chamado jet set [grupo do avião a jacto], mas a expressão banalizou-se.

José Correia Guedes
José Correia Guedes créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O que ficou para trás?

Noutros aspectos a evolução é quase nula. Por exemplo, a velocidade: um avião dos anos 1960 voa à mesma velocidade do que um de 2000. Evoluiu-se muito pouco em termos de encurtar tempos de viagem. O Concorde é um filme diferente, voava muito mais rápido que estes.

Mas foi um flop.

Foi um flop porque aconteceu algo que não estava nas previsões de quem concebeu o avião, a crise do petróleo. O Concorde, para voar duas vezes à velocidade do som, tinha de recorrer a um forte impulso dos reatores, que consumiam uma barbaridade de combustível. A partir de 1973, quando vem a primeira crise do petróleo, logo se ficou com a ideia de que o Concorde estava condenado, porque as viagens iam ser caríssimas, e trata-se de um avião relativamente pequeno. Não gerava receitas suficientes para pagar a viagem. Só tinha uma classe, primeira classe, era mesmo para o jet set. Nunca viajei num Concorde.

Existe uma probabilidade maior ou menor de acidente em função do tamanho do avião?

Não. Podemos é falar em termos de estabilidade, por exemplo, no sentido de reagir melhor ou pior ao vento numa fase de aterragem, por exemplo. O 737 é o avião que mais gostei de pilotar em toda a minha vida, justamente porque era um avião muito ágil, mas qualquer rajada de vento causava uma perturbação.

Os drones nos aeroportos, são de facto perigosos?

Isso é outra coisa que está a começar a ser regulada, porque até aqui era o caos. Enquanto os drones forem pequeninos, que é o que tem acontecido até aqui, penso que não há um perigo grande, uma vez que os drones são de plástico, são coisas leves. É muito pior levar com uma gaivota, que causa danos nos motores. Os drones também podem causar, mas uma catástrofe, não me parece. Claro, estão a tornar-se maiores, há no Iraque ou no Afeganistão drones enormes, que disparam mísseis e coisas do género. Mas isso é outra história.

não me parece nada mal, bem pelo contrário, que se desliguem os telemóveis. Não porque afectem os controlos do avião, mas, na dúvida, o melhor é desligar

E quanto às comunicações - há no YouTube um vídeo muito engraçado sobre isso - desligar o telemóvel e outros aparelhos é mesmo essencial?

Nunca foi demonstrada uma relação de causalidade entre o telemóveis e os instrumentos do avião. Às vezes os aviões avariam porque têm de avariar. Existe alguma preocupação em relação às baterias e ao sobreaquecimento das baterias, porque são inflamáveis. Agora, não me parece nada mal, bem pelo contrário, que se desliguem os telemóveis. Não porque afectem os controlos do avião, mas, na dúvida, o melhor é desligar.

Por falar em arder, antigamente fumava-se nos aviões, o perigo era ainda maior...

E aconteceu pior, acidentes gravíssimos, um deles, trágico, com um avião da Varig [brasileira] em Paris, nos anos 1980, se bem me lembro. Um passageiro foi fumar para a casa de banho - e não precisava, podia fumar na cabine de passageiros, as cadeiras tinham cinzeiro - e pegou fogo àquilo tudo. Os materiais do interior do avião, cadeiras, etc., são inflamáveis e o avião ardeu. Os pilotos tentaram aterrar o avião, pilotaram com a cabeça de fora, porque o cockpit estava coberto de fumo e não viam os instrumentos. Não conseguiram, bateram com o avião no chão e morreu uma quantidade de gente - o avião transporta umas toneladas largas de combustível. Concordo plenamente com a proibição de fumar, até por uma questão de conforto: a pessoa que não fuma não tem de levar com o fumo dos outros, é incómodo.

O que o fez tornar-se num piloto de aviões, sempre quis ser piloto?

Não, foi uma circunstância fortuita. Eu não era muito bom aluno - fui bom aluno até aos 14 ou 15 anos, altura em que aconteceram uma série de desgraças, entre aspas: fundei uma banda de rock and roll, "Os Condes", comecei a namorar e a interessar-me por miúdas e deixei de ter tempo para estudar. Quando estava a estudar Engenharia fui mobilizado para Angola, onde estive dois anos. No regresso, em meados de 1970, ainda faltavam alguns meses para o início do ano letivo - tinha deixado o curso a meio - estava em Lisboa à espera que me entregassem o carro que acabara de comprar, e comecei a ver anúncios nos jornais: "Com ou sem experiência de voo, venha para piloto da TAP". Elencavam as condições, eu preenchia todas, incluindo o serviço militar cumprido, que era vital para o que quer que fosse, tinha a frequência universitária, tinha idade, e dei comigo a pensar: "Isto era giro". Tinha viagens e tudo aquilo de que um miúdo com vinte e poucos anos gosta. Meti os papéis para piloto e meti os papéis para comissário, também. Fui galgando etapas, fazendo exames, exames médicos e psicológicos, uma bateria que nunca mais acabava. O concurso era nacional, havia centenas de candidatos, e nunca acreditei que seria chamado.

Mas foi...

De repente, dei comigo e estava aprovado, no ano seguinte ia para os Estados Unidos fazer um curso de piloto - só havia um curso por ano. Já estava a voar como comissário, achei aquilo uma delícia. A TAP fazia estes cursos porque a maior parte dos pilotos dos aviões comerciais, até início dos anos 1970, vinha essencialmente das forças aéreas, eram pilotos militares que transitavam para a aviação comercial. Em Portugal isso não podia acontecer, o país estava em guerra, a Força Aérea estava toda empenhada nessas frentes. A TAP não foi a primeira companhia a fazer isto, a Lufthansa já fazia, a Swissair também... As companhias deram-se conta de que havia uma diferença grande entre ser piloto militar e ser piloto comercial, de maneira que fazia todo o sentido começar a preparar os pilotos comerciais desde o início. A TAP aproveitou a onda, penso que fez dez cursos.

Por que motivo eram feitos nos Estados Unidos?

Não havia cursos em Portugal, havia pouquíssimos na Europa, aliás. Na altura em que fiz o curso havia lá pilotos da Lufthansa e outros, era uma grande escola americana. Esse processo, a formação de pilotos comerciais, estava então a começar.

Hoje toda a gente se queixa da comida, das cadeiras, da falta de espaço para as pernas, a segurança é uma chatice, é-se apalpado, tem de se estar em filas... Viajar de avião tornou-se a coisa menos glamorosa do mundo, mas, como é barato, as pessoas aproveitam

Quer dizer que quando se dizia que os pilotos da TAP eram os melhores, isso era, de certa forma, um mito, já que a escola era a mesma de tantos outros?

Sim, de muitos outros. Mas não era um mito, aí tenho de acrescentar qualquer coisa. O nível e exigência da TAP sempre foi muito elevado, não sei como estão as coisas agora, porque deixei de voar há dez anos, mas sempre foi muito elevado. Principalmente com a tecnologia fly-by-wire, complicadíssima. Eu e outros colegas desabafávamos muitas vezes que sabíamos mais do que os tipos da Ryanair, que não sabiam metade. Lamentávamos porque tínhamos de estudar mais, mas a TAP, nesse aspecto, sempre teve padrões de exigência muito elevados. Talvez por isso se tenha criado essa imagem, de que, obviamente, gostávamos. Quando diziam que éramos os melhores do mundo, não era eu que ia desmentir. Não havia nenhum campeonato, mas seríamos dos melhores, estávamos no patamar dos bons. Porque não há especiais, isso não existe - haverá alguns mais fraquinhos. Era uma imagem que nos agradava e que dava algum conforto aos passageiros. Hoje toda a gente se queixa da comida, das cadeiras, da falta de espaço para as pernas, a segurança é uma chatice, é-se apalpado, tem de se estar em filas... Viajar de avião tornou-se a coisa menos glamorosa do mundo, mas, como é barato, as pessoas aproveitam. É mais confortável andar de comboio, eu adoro.

Virá a altura em que voamos em pé?

Leu o meu pensamento, ia falar-lhe nisso. Essa ideia já anda aí, umas cadeiras praticamente verticais, os passageiros vão ali amarradinhos, uma coisa pensada para voos pequenos - não se vai fazer uma viagem de dez ou doze horas naquela figura. Mas foi feito um inquérito, mostrando as cadeiras e as circunstâncias, e a maior parte respondeu que se os preços refletirem a situação, ou seja, se viajarem muito mais barato, não se importam. E anda aí outra guerra mais complicada... Comecei a voar nos anos 1970, mas em finais dos anos 1960 havia cinco homens - na altura eram só homens - no cockpit: comandante, copiloto, navegador, radiotelegrafista e mecânico de voo. Foram sendo gradualmente eliminados, primeiro para três, comandante, copiloto e flight engineer, uma figura que já desapareceu, depois para dois, comandante e copiloto. Agora começa a falar-se na possibilidade de os aviões da próxima geração só terem um piloto.

Pensei que ia falar em aviões telecomandados...

Lá chegaremos, essa será a fase seguinte. Obviamente, isto está a gerar uma grande polémica.

E se o comodante tem um fanico?

Isso está previsto. A tecnologia existe, como existe a tecnologia para enviar o avião do ponto A para o ponto B automaticamente. Se pensarmos que há drones no Afeganistão a serem pilotados no Texas e que actuam com uma precisão cirúrgica... Para os fabricantes é muito melhor, porque reduz os custos, evita a duplicação de painéis, um para o comandante outro, exactamente idêntico, para o copiloto. E as companhias ficam todas contentes porque têm de pagar menos salários, têm menos problemas sindicais... Isso existe e é fazível a curto prazo, dizem os fabricantes. Eu tendo a acreditar que sim.

Se é assim, qual o problema?

Há aí um problema difícil de ultrapassar, que é convencer os passageiros.

Durante os exames de simulador temos de demonstrar variadíssimas coisas, uma delas é que somos capazes de pilotar o avião sozinhos.

Se calhar os passageiros também não sabiam que antes havia cinco pessoas no cockpit em vez das actuais duas...

Durante toda a nossa carreira - e penso que é a única profissão em que isto acontece - somos examinados quatro vezes por ano, dois exames técnicos e dois físicos, todos eles eliminatórios. Isto cria stress, cria neuroses, porque vivemos sempre nessa ansiedade. Em relação aos exames técnicos podemos fazer qualquer coisa, estudar e conhecer  bem o avião e os seus instrumentos, mas em relação à saúde podemos fazer pouquíssimo, que é tomar as precauções do costume. Durante os exames de simulador temos de demonstrar variadíssimas coisas, uma delas é que somos capazes de pilotar o avião sozinhos. Ou seja, de repente dizem-me: "o copiloto morreu", e tenho de demonstrar que sou capaz, não só de pilotar o avião sozinho, mas também de resolver emergências: um fogo no motor, uma fuga de combustível...

Agora o que querem - eu não concordo - é ter só um piloto no cockpit, o segundo piloto é a tecnologia. Isto é muito bonito do ponto de vista tecnológico, mas o que pergunto às pessoas é se aceitam, se se sentem confortáveis nesta situação.

Não será mais perigoso ter retirado o mecânico ou o flight engineer?

O mecânico passou a ser chamado operador de sistemas a seguir ao 25 de Abril, porque já não fazia nada daquilo que fazia anteriormente. Por exemplo, no Yankee Clipper, esse avião que atravessava o Atlântico nos anos 40, cada asa tinha um túnel por onde o mecânico ia para ter acesso aos motores e afinar carburadores, por exemplo. Nesta geração o mecânico já operava painéis, não andava a apertar parafusos. Agora o que querem - eu não concordo, que fique isto bem sublinhado - é ter só um piloto no cockpit, o segundo piloto é a tecnologia. Ou seja, existe um contacto permanente ar/solo, o avião está permanentemente sob vigilância, radar ou outras formas, e é possível a quem está no solo trazer o avião para o chão sem dificuldade. A redundância é feita no solo. Isto é muito bonito do ponto de vista tecnológico, mas o que pergunto às pessoas é se aceitam, se se sentem confortáveis nesta situação.

Enquanto piloto diz que discorda. Mas já passou por outras mudanças difíceis...

Passei por isso tudo, vi cair os navegadores, vi cair os mecânicos - e o que nós pilotos lutámos para que isso não acontecesse... Mas o interesse dos fabricantes e das companhias, ou seja, as razões económicas, venceram. Suspeito que fabricantes e companhias vão continuar a ganhar, e um dia os aviões terão um só piloto e, mais tarde, nessa altura já não estarei cá, não terão nenhum. Porque a tecnologia consegue fazer isso. A dificuldade é a dos efeitos psicológicos. Nesta história do piloto único já se fala numa transição, começar a experimentar nos aviões de carga. Esse é o primeiro passo, depois evolui-se para a fase seguinte, que são os aviões de passageiros. Não é uma fase bonita - não a acho bonita - mas é para aí que caminhamos, parece-me.

Em quarenta anos tem a sua dose de histórias, algumas divertidas, outras nem tanto. Qual foi a história mais fantástica que lhe aconteceu?

Quando escrevi "O Aviador" tive um cuidado especial: sei que muita gente tem medo de andar de avião, penso mesmo que a maior parte das pessoas tem medo de andar de avião - e nós, pilotos, quando as coisas não correm bem, também temos, não vamos fingir que somos heróis, todos passamos por situações difíceis e sabemos bem até onde foi o coração, quantas pulsações... Isto é medo, não tem outro nome. O medo é uma reacção natural. Se um dia eu entrasse num avião e me dissessem que quem nos leva é o "comandante destemido", dizia que com esse não vou, porque vai-se matar. Queremos humanos no cockpit, pessoas que tenham bom senso, que não corram riscos desnecessários. Por isso, neste livro só conto histórias divertidas e com um final feliz. Obviamente em tantos anos de carreira também podia contar algumas histórias deprimentes, mas o objectivo era, numa linguagem muito simples, tirar o peso, a carga emocional enorme que um avião tem.

Eu ia de Lisboa para Faro, num Boeing 727-100, tinha cerca de oitenta passageiros, e acabámos em Madrid, sempre com uma arma de fogo apontada

Pode contar uma dessas histórias?

É impossível escapar à história do "Piratinha". Afinal, não é todos os dias que se é sequestrado - houve o sequestro do Palma Inácio, que veio a Lisboa, despejou uns panfletos, até a tripulação colaborou, e foi uma festa. Este não, este foi um desvio a sério. Eu ia de Lisboa para Faro, num Boeing 727-100, tinha cerca de oitenta passageiros, e acabámos em Madrid, sempre com uma arma de fogo apontada.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Imagino o susto. Quem era o sequestrador e como chegou ali?

Era um miúdo que nunca tinha andado de avião, mas que tinha estudado bem o avião. Com 17 anos já fazia programas sobre OVNI [objectos voadores não identificados] para a RTP, era uma cabecinha especial. O pai era taxista e tinha uma arma de defesa, ele roubou a arma ao pai, meteu-a dentro de um rádio portátil, no local do altifalante, e a seguir à descolagem foi à casa de banho, desapertou aquilo tudo, sacou a pistola e entrou pelo cockpit dentro.

Não havia segurança na altura, claro. E o que disse, o que fez?

Apontou-me a arma diretamente, primeiro ao flight engineer, que estava atrás, mas quando viu que não era ele quem pilotava o avião apontou-a a mim: "Vamos para Madrid! Vamos para Madrid!", gritava ele. É um choque, obviamente. A primeira coisa que pensei foi "isto é uma brincadeira". Mas temos de pensar no contexto da época, estávamos em 1980, na altura dos Baader-Meinhof [extrema-esquerda alemã], das Brigadas Vermelhas [guerrilha comunista italiana], particularmente ativos. Havia aviões a ser desviados para a Líbia, para Cuba, estava na moda sequestrar aviões. Um colega meu, muito infeliz na altura, telefonou para minha casa a dizer à minha mulher que eu tinha sido sequestrado e que podiam ter sido as Brigadas Vermelhas. Ela entrou em pânico - ele merecia um par de estalos, mas enfim...

E então acontece uma coisa verdadeiramente extraordinária, só possível em Portugal: "Os senhores desculpem o trabalho que lhes estou a dar...".

Quando ultrapassou a fase de choque, como reagiu?

Eu era copiloto do voo, o comandante era mais velho, mas, nestas circunstâncias, o sequestrador acaba por escolher para interlocutor a pessoa com quem tem mais empatia, que é com quem vai falar e negociar. Escolheu-me a mim, provavelmente por ser o mais novo. Comecei logo a fazer-lhe perguntas e a tratá-lo por tu, que é uma coisa que aproxima as pessoas: "Tem calma, senta-te. Larga a arma", porque todo ele tremia. "Larga a arma, senta-te aí atrás. O que é que tu queres?". E então acontece uma coisa verdadeiramente extraordinária, só possível em Portugal: "Os senhores desculpem o trabalho que lhes estou a dar...". Aí pensei: "Alto, estou com a minha gente, isto vai resolver-se". Mas ele continuava armado e a apontar a arma e lá fez as suas exigências. Entretanto, já estávamos a rumar a Madrid, porque ele não queria que fossemos para Faro.

E os passageiros, alguém os avisou sobre o que se estava a passar?

Aí o comandante faz um discurso a dizer que por razões de ordem meteorológica não podemos aterrar em Faro, vamos divergir para Madrid - mentiu aos passageiros, que era o que tínhamos de fazer. Azar dos Távora, bastava olhar pela janela do avião via-se tudo de Vila Real de Santo António a Sagres, estava uma noite fantástica. Aí os passageiros começaram a desconfiar de que alguma coisa não estava bem.

O que queria o rapaz?

Queria vinte milhões de dólares e um salvo-conduto para a Suíça - vi logo que não sabia o que era isso de salvo-conduto. Em relação aos dólares, não podíamos fazer nada, mas iríamos depois negociar. Os aviões têm um sistema, um código, que alerta quando alguma coisa não está bem dentro do avião e isso é recebido pelo controlo de tráfego aéreo. Existe um código para sequestro, que selecionámos, e ao entrar no espaço aéreo espanhol nem foi preciso falar com os espanhóis, eles perceberam imediatamente o que se estava a passar. Aterrámos em Madrid e fomos imediatamente afastados para uma área isolada do aeroporto, a polícia rodeou logo o avião - e a polícia de choque espanhola não era para brincadeiras, esse foi, aliás, um dos problemas que tivemos durante essas horas: controlar a polícia espanhola.

Uma vez no aeroporto de Madrid, o que negociaram?

Entretanto o embaixador português em Madrid, João Sá Coutinho, tinha sido chamado, veio para a torre de controlo e começámos a conversar. Fui dizendo o que se passava. Passado um bocado, o embaixador Sá Coutinho vem à torre e diz-me: "Falei com o primeiro-ministro, Sá Carneiro - era de noite - e ele diz-nos que 20 milhões de dólares nem pensar. Não há dinheiro, e quanto ao salvo-conduto é um disparate, essa figura pura e simplesmente não existe..." E eu perguntava: "Então, senhor embaixador, como é que saímos desta?!" "Vocês negoceiem", dizia ele - anos mais tarde foi para a embaixada portuguesa no Vaticano, uma coisa linda de morrer, e convidou-me para lá ir passar um fim-de-semana com a minha mulher. E então confessou-me: "Há uma coisa que eu nunca lhe podia dizer pela rádio, é que, enquanto conversávamos, os espanhóis estavam a treinar invadir o avião num avião da Ibéria igual ao vosso". Isso teria sido uma tragédia, um avião no chão, com combustível, com passageiros, morria ali uma quantidade de gente. O rapaz morria, o que também era um disparate, se calhar morríamos nós, era um banho de sangue absolutamente desnecessário. Nós já lhes tínhamos dito que íamos resolver aquilo.

Quando aterraram em Madrid as pessoas tiveram a certeza de que algo se passava. Ficaram todos no avião?

Era um voo doméstico, não havia comida, só havia chá, café e laranjada, e os passageiros começaram a ter fome. Havia crianças, senhoras, acho que até uma grávida... E começou a haver necessidade de comida, de bebida e começámos a negociar isso. Só que ele não autorizava, tinha medo de que ao abrirem-se as portas ou ao enviarem um contentor para bordo viesse de lá qualquer coisa que lhe estragasse os planos. Acabou por ir cedendo, e sabemos que quando começam a ceder em alguma coisa é provável que cedam em toda a linha. Começou por ceder nas senhoras e nas crianças, que deixou sair, foi esse o primeiro passo. Eram aí uns 18 quando foi feita a contagem, mas de repente ele olha pela janela e vê para aí umas 30 pessoas, incluindo homens que aproveitam para fugir, e desata aos gritos, "fecha as portas". Lá continuámos as nossas conversas. Aí ocorreu-me uma negociação - aquilo só se poderia resolver através da negociação. Era um miúdo e eu estava convencido que lhe era superior, tinha de ser.

O que fez?

Comecei por lhe dizer que aquilo era um grande disparate e que ia acabar muito mal, para ele e, se calhar, para nós, e que para correr de outra maneira teríamos de pensar numa solução, numa forma de sair daquilo com alguma limpeza. E ele perguntava: "Tens alguma ideia?", já a tratar-me por tu. "Tenho. Como sabes, Portugal é um país de gente porreira, somos todos uns porreiraços. O meu pai é juiz conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça, é uma pessoa muito importante" - eu a pintar aquilo mais do que era. "Prometo que quando isto acabar vou falar com ele e dizer que não fizeste mal a ninguém, que és maluco, mas és um bom rapaz. Tenho a certeza de que ele vai ajudar-te". E ele pensou naquilo como uma possível saída, uma porta entreaberta. Depois juntámo-nos os dois no cockpit, fechámos a porta, ele sentado de um lado e eu do outro, e disse-lhe: "Há aqui um fator: só podemos resolver isto quando me entregares a arma".

Ele continuava de arma apontada?

Não. Sempre de arma na mão, mas já não apontada. "Tens de me dar a arma ou, no mínimo, as balas. Tu dás-me a arma sem balas e eu vou dizer a toda a gente que a arma estava descarregada. O que achas?" Ele ficou a pensar no assunto. "Prometes?" "Prometo e vou cumprir". E ele então deu-me cinco balas. Disse-lhe: "Fui militar, andei na guerra, conheço armas, tens no mínimo seis balas". "Ah, mas esta é para mim, eu vou acabar aqui". E começa a chorar como uma criança, aí começo eu a chorar também... Portanto, isto é telenovela mexicana de quinta categoria, os dois a chorar ali dentro. No meio disto, ele ia deixando sair os passageiros.

Em algum momento ele explicou o que o levava a fazer aquilo?

Disse, mas depois. Foi deixando sair os passageiros e também deixou sair a tripulação, comissários e assistentes, mas eles, muito corajosamente, quiseram ficar, foram fantásticos. "Não saímos daqui. Os nossos colegas estão cá, também não saímos". Até que me deu a sexta bala. E pronto, fiquei com o problema resolvido, só tinha de sair dali, sair de Espanha. E dissemos aos espanhóis: "Já não temos passageiros a bordo, só temos a tripulação, mas continuamos sob sequestro". Porque não queríamos deixar o miúdo em Espanha - aqui começou a proteção - se isso acontecesse o puto era fuzilado no dia seguinte - tinham matado outros, os espanhóis são meio brutos. Vamos tentar salvar este rapaz, estávamos todos de acordo. Então pedimos aos espanhóis para nos meterem combustível - tínhamos o avião seco - que íamos partir com destino desconhecido. Era o que os espanhóis queriam ouvir: tomem lá combustível e desamparem a loja. Uma vez descolados, então dissemos aos espanhóis que ele acabava de se entregar e, uma vez que já estávamos no ar, seguíamos para Lisboa. E assim foi.

E como foi a chegada a Lisboa?

Lá estava a polícia toda à espera dele. E eu cumpri o prometido. Foi lá o capitão da polícia, o capitão Nortada, e entreguei-lhe a arma vazia. "Então e as balas?" "Não tinha, estava descarregada". Ele olhou para mim como quem diz "estás-me a enganar", mas eu reafirmei e era o piloto. Quando há episódios deste tipo, há sempre um briefing com o diretor do aeroporto, o diretor da TAP, o presidente, o diretor de operações de voo, etc., são todos tirados da cama, que foi o que aconteceu, para fazer um briefing sobre o sequestro - uma coisa que nunca tinha acontecido em Portugal e que nunca voltou a acontecer. No meio, lá estávamos nós, frente às autoridades. O meu chefe direto, o diretor das operações de voo, dizia: "Parabéns, Guedes, o problema resolveu-se graças à vossa intervenção, ao comandante Coutinho, estiveram muito bem...". E eu digo: "Muito bem, mas tenho aqui seis balas. O que é que lhes faço? É o produto da negociação, foi assim que a coisa se resolveu, fiz este acordo assim, comprometi-me, entreguei a arma descarregada à polícia e tenho aqui as balas. E agora?" "Ah, pois, terá de ficar com elas, a TAP não pode assumir essa responsabilidade...". Não me deram saída.

E o seu pai, falou com ele?

Já lhe conto. São cinco ou seis da manhã, vou para casa, a minha mulher tinha passado a noite que imagina, com amigos da onça a dizer que eram as Brigadas Vermelhas, dou um beijo à minha mulher e vou a correr para o telefone cumprir a segunda parte da promessa, que é telefonar à mãe dele. Continuamos na telenovela mexicana de quinta categoria, porque ele pediu-me: "Quando chegares a casa, liga para este número e diz à minha mãe, porque eu nunca dormi fora de casa".  Às seis da manhã estou eu a ligar para o Seixal ou para o Feijó, já não sei, e vem a mãe ao telefone, assustada, para me ouvir dizer: "O meu nome é José Guedes, sou piloto da TAP, e o meu avião foi assaltado pelo seu filho". A senhora desata aos insultos, "o senhor está é bêbado, o meu filho nunca dormiu fora de casa, quem é você?" Foi muito difícil convencê-la. Depois, claro, foi ao quarto dele, não o viu... A seguir lá fui descansar um pouco, porque estava encharcado em adrenalina, todo a tremer, e cerca das dez da manhã vou falar com o meu pai, que estava no Porto. Já tinha ouvido pela rádio e pelos jornais que tinha havido o sequestro e que eu estava envolvido, e então conto-lhe a negociação, convencido de que ele ia orgulhar-se do filho...

Como é que ele reagiu?

Quando lhe conto a história das balas ele diz assim: "Mas tu só fazes disparates?" - voltei a ter 14 anos. "Tens alguma noção do que fizeste? Está a cometer um crime". "Qual crime?" "Ocultação de provas!" E eu comecei a pensar: "Pronto, já fiz porcaria". "Vai já a correr à Polícia Judiciária, já, fala com o inspetor que está a tratar do assunto e diz o que se passou, que fizeste a negociação e que estão aí as balas. Não vais esconder isso como se nunca tivesse acontecido, senão metes-te num enorme sarilho". E assim aconteceu. Cheguei lá, pedi para falar com o inspetor que estava a tratar do assunto, e conto-lhe. "Ah, nós já sabíamos isso tudo", que é como quem diz, o puto levou um par de estalos e confessou tudo. "Dê cá as balas e vá descansado".

E o que aconteceu ao rapaz?

O rapaz foi preso, foi para a penitenciária em Lisboa. No dia seguinte -  ou dois dias depois, não consigo precisar - aparece em minha casa o pai dele - não sei como descobriu o nosso endereço, mas descobriu. Não achámos muita graça, nem eu nem a minha mulher, mas quisemos saber ao que vinha. "É que o Rui queria muito falar com o senhor Guedes". "E como é que ele fala comigo?" "Vá lá visitá-lo à penitenciária". Cheirou-me a armadilha, mas registei o pedido e no dia seguinte, para me proteger, fui falar com os meus chefes. E um dos sábios disse: "O que aconteceu parece demasiado inocente para ser verdade, provavelmente é um balão de ensaio para coisas maiores, o miúdo deve estar metido nalguma trapalhada, e interessava-nos saber o que está por trás disto tudo".

Queriam que fosse para obterem mais informações...

Com esse respaldo, fui. O pai dele subornou a guarda para eu entrar - o processo é todo mirabolante - e lá fui ter com ele à cela. Levei um livro para ele ler na prisão, sempre gostei de ler e tratava tudo em livros.

O que é que ele queria?

Queria dar-me um grande abraço e agradecer-em a forma como lidei com o assunto. Foi aí que lhe perguntei: "Mas que raio é que te passou pela cabeça para fazeres uma coisa destas?" "O ambiente em minha casa é trágico, o meu pai tem não sei quantas amantes, bate na mãe e eu quero sair daquele inferno, não aguento mais aquilo". Uma infantilidade, pensou que ganhava dinheiro, que ia com o tal salvo-conduto para a Suíça e que os problemas dele ficavam resolvidos. Na altura disse-lhe: "Se todos os miúdos deste país que têm problemas com os pais, idênticos ou piores que os teus, fizessem o que fizeste, passávamos a vida a ter os aviões sequestrados". Lá ficou seis meses, o limite da prisão preventiva, e depois saiu. A primeira coisa que faz é ir a minha casa.

Já que estás aqui, jantas connosco". O outro só dizia: "Isto não está a acontecer, eu estou a jantar com o sequestrador e com o sequestrado"

Outro susto, não?

Na altura eu estava a fazer um curso de jornalista - sempre quis ser jornalista e havia um curso organizado pelo Partido Comunista Português, dado por jornalistas chilenos fugidos ao Pinochet - o meu professor chamava-se Jorge Cabello, nunca mais me esqueço. Por isso estava lá em casa um colega de curso, tínhamos de fazer uma primeira página para apresentar no dia seguinte - que foi um fracasso, porque fiz uma primeira página em que só dava notícias boas. Eu morava em Carcavelos, ele chega lá, toca à campainha, a minha mulher abre a porta e ele desfaz-se em desculpas pelo que a tinha feito passar. Ela era professora de liceu, estava habituada a lidar com miúdos, e deu-lhe uma desanca como se estivesse a lidar com um dos seus alunos que teve uma negativa. Ele lá foi ouvindo, com os olhos baixos, pediu desculpa, "lamento muito"... Entretanto aparecemos: "Então, já saíste da prisão?" "Já, vim no comboio, fartei-me de dar autógrafos, toda a gente me conhecia". Era uma celebridade. Eram umas sete da tarde, o meu colega ia ficar para jantar, e convidei-o também: "Já que estás aqui, jantas connosco". O outro só dizia: "Isto não está a acontecer, eu estou a jantar com o sequestrador e com o sequestrado".

Mas ele acabou por ser preso?

A TAP não apresentou queixa e mandou-me a mim ao julgamento. Era suposto eu ser testemunha de acusação, falar em nome dos ofendidos, mas passado um bocado eu já estava a dizer ao juiz que ele era um rapaz espertíssimo, inteligentíssimo, que não tinha feito mal a ninguém, aquilo foi uma loucura, um disparate, precisava de um par de estalos mas não mais do que isso... A apelar à compreensão do tribunal. Acabei por ser testemunha de defesa e o rapaz levou dois anos de pena suspensa.

Voltou a vê-lo?

Esteve no lançamento do livro "O Aviador", foi lá dar-me um abraço e teve o aplauso da noite [ri]. Teve e tem uma carreira brilhante nos media, é sócio do Balsemão filho na empresa de publicidade no Multibanco, mas foi diretor da RTP Comercial no tempo do Rangel, o que não é brincadeira, esteve na TSF com o Luís Paixão Martins, tem uma carreira muito boa. E casou, tem uma família fantástica. E ele tem - e isso até certo ponto me comove - a noção de que as coisas podiam ter corrido muito mal. Ao fim e ao cabo, aquela lamechice - porque foi uma lamechice - ajudou-o muito, e acaba por ter sucesso na vida. E eu acabo por ficar muito orgulhoso do que fiz, também. Somos amigos, não nos encontramos todos os dias, mas de vez em quando falamos.

"Meu comandante, já conseguimos neutralizar os agressores". "E como é que conseguiram?" "Caímos-lhes em cima e amarrámo-los com os cintos das calças"

Não haverá muitas histórias destas para contar. Hoje, não sei se os passageiros não se teriam levantado para o tentar imobilizar...

Posso contar-lhe uma história em que isso aconteceu. Uma semana ou dez dias depois do 11 de setembro faço um voo para São Paulo - nos últimos dez anos só fazia voos de longo curso. O avião vai cheio, 300 passageiros, e ninguém ia à vontade. Depois do que aconteceu com as Torres Gémeas, não se sabia o que estava a passar nem quem seria a próxima vítima, inclusive nós, pilotos, que se calhar estávamos até mais preocupados. A viagem é longa, 11 horas, atravessamos o Atlântico e entramos no Brasil por alturas de Fortaleza e descemos a linha de costa para São Paulo, que são mais umas três horas. Quando estamos a aproximar-nos de Fortaleza vêm dizer-me: "Há uma cena de enorme pancadaria na cabine de passageiros, há passageiros a serem agredidos e temos a situação completamente fora de controlo, já há sangue nas bagageiras..." A minha primeira reacção foi: "Fecha a porta do cockpit, põe dois comissários à porta - como se eles resolvessem algum problema - e não entra aqui ninguém". Declaro emergência e peço para aterrar em Fortaleza porque tenho um motim a bordo. Os brasileiros, impecáveis, também à rasca. Passado menos de meia hora estávamos no chão. Entretanto, durante a descida, aparece-me um comissário com a camisa coberta de sangue: "Meu comandante, já conseguimos neutralizar os agressores". "E como é que conseguiram?" "Caímos-lhes em cima e amarrámo-los com os cintos das calças". Imagine isto, uma semana depois do 11 de setembro. Agora tínhamos de os desovar, não íamos continuar mais quatro horas até São Paulo assim, com 300 passageiros em pânico sem saber o que é que os tipos têm, se bombas, se sabe-se lá o quê.

E quem eram, afinal?

Aterramos em Fortaleza e vem imediatamente a polícia federal e leva-os para um gabinete. Passado um tempo aparece-me o delegado da polícia federal: "Comandante, isto passou-se num avião português, no espaço aéreo em voo, não temos forma de reter aqui os passageiros, é ilegal. Eles vão ter de continuar viagem e em São Paulo, se quiser, apresenta queixa deles". E eu a pensar como é que ia meter outra vez os caramelos no avião, com os passageiros em pânico se os vissem entrar outra vez. "O que é que faço?" E o delegado diz-me: "Há uma alternativa, o senhor faz a denúncia aqui, mas vou ter de entrevistar os 300 passageiros". Bem, se fosse assim ainda hoje lá estávamos. "Não pode ser, o senhor tem de me apresentar uma solução". "Pera aí, vou pensá", diz ele. Até que me entra pelo cockpit e propõe: "Já sei. Vou levar os caras lá para um gabinete, você fecha o avião, vai andando, chega à pista, decola, e aí eu grito: 'Puta que o pariu, o português fugiu!'" E foi isso que fizemos. Ah, porque os agressores eram dois holandeses com um metro e noventa, mas falavam português, estavam a viver em São Paulo.

E qual era o problema deles?

Estavam a ressacar, estavam em abstinência de droga. E como estavam bêbados, já não lhes davam mais álcool, desataram à pancada a toda a gente. Depois perguntei como tinham resolvido o assunto e fiquei a saber que os meteram num avião para São Paulo, não sei quem pagou.

Posso imaginar, porque ainda há pouco tempo voei de São Paulo para Lisboa, uma senhora teve um AVC, e o marido gritou: "Chama um médico". E só se vêm os passageiros todos a baixarem-se de repente, convencidos de que era uma bomba.

Da parte médica também tenho o meu momento delicotrágico. Vinha do Rio de Janeiro para Lisboa, o avião completamente cheio, e, por alturas de Salvador da Bahia, vêm dizer-me que há um passageiro que parece estar a ter um ataque de coração. Disse as coisas do costume, vejam se há algum médico a bordo - tenho amigos médicos que nestas situações, moita carrasco, não dizem nada. Nem se mexem, o que acho indecente. Desta vez havia um casal de médicos, ela pediatra, ele médico de uma especialidade que não recordo. Examinaram o doente e disseram: sem margem para dúvidas, está a fazer um enfarte agudo e precisa de assistência imediata, senão apaga-se. Decidi logo aterrar. Venho por ali abaixo, mas tenho problemas para resolver, o avião está cheio de combustível - cerca de 20 toneladas a mais do que o limite para a aterragem - e a descarga é de uma tonelada por minuto, só ali perdia 20 minutos. Só que há um procedimento de emergência, que se chama overweight landing, que tem de ser feita com muito cuidado, cabeça, tronco e membros. Optei por isso. Tive um copiloto que me ajudou muito também, e lá aterrámos sem problema.

E correu tudo bem com o passageiro?

Os brasileiros foram impecáveis, tinham uma ambulância toda equipada à espera, entraram pelo avião, fizeram a reanimação ao senhor e levaram-no. O chefe de escala veio entretanto perguntar-me para onde deviam levar o senhor, ao que eu respondi, para o melhor hospital da Bahia. E levaram-no para o Real Hospital Português, o melhor hospital privado, excelentíssimo. Três ou quatro meses depois volto ao Brasil, Rio de Janeiro, e a chefe de escala vem ter comigo: "Comandante, temos aí um problema". "Como assim?" "Lembra-se daquele passageiro com um enfarte?" Morreu, foi logo o que pensei. "Não, aí é que está o problema", responde ela. O senhor foi muito bem tratado, safou-se, só que agora tem lá uma conta de 30 mil dólares e não quer pagar. Diz que a responsabilidade é sua, o senhor é que decidiu aterrar na Bahia, reanimá-lo e mandá-lo para o hospital, ele estava inconsciente".

A TAP responsabiliza-se por esses casos?

Obviamente que ao acusar-me a mim ele não está a acusar o comandante José Guedes, está a responsabilizar a TAP. A TAP, como sempre benemérita, pagou.

Deve ter seguros para isso...

Presumo que sim. Mas a reação que isto gera, em mim e nos meus colegas, é que a partir de então os passageiros que se danem. Operei nos limites, com perigos envolvidos e em stress, para salvar a criatura, não se brinca com estas coisas. Mas as pessoas reagem assim, às vezes, em vez de manifestarem gratidão, aproveitam-se.

José Correia Guedes
José Correia Guedes créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Sei que gosta de aviões, mas também gosta de carros. E de bicicleta.

Gosto de praticamente tudo o que tenha motor - a bicicleta é elétrica, também tem motor. Cresci em Vila do Conde...

Daí o nome da banda, "Os Condes"?

Exactamente. E em Vila do Conde sempre houve corridas de automóveis, a minha casa ficava mesmo no circuito. Aquilo ficou-me na massa do sangue, e quando me reformei comprei um dos carros dos meus sonhos, um Porsche dos anos 1960, da primeira série. Foi o presente que dei a mim próprio, as minhas filhas já tinham os seus cursos, a minha mulher já tinha a casa dos seus sonhos, estava na altura de concretizar o meu. Foi bom, porque entretanto ela reformou-se e andámos a fazer passeios e rallies pela Europa. É um dos meus hobbies. Ainda ontem fui ver as luzes de Lisboa de bicicleta, com um grupo de amigos. Há muitas pistas para bicicleta em Lisboa e até dá um certo gozo, porque os automóveis quase não avançam e ficaram para trás. A cidade está muito bem preparada para bicicleta. As pistas começam a estar um bocado cheias, há muitas trotinetas, muitas bicicletas, às vezes há conflito de trânsito, o que é ótimo sinal. Tudo o que seja retirar os automóveis da cidade, acho boa ideia. Sou um acérrimo defensor da substituição dos automóveis por outros meios de transporte, por todas as razões: segurança, mobilidade, poluição...

Esse é também um problema dos aviões, a poluição. Muita gente reclama a redução do número de vos ao indispensável...

Incluindo a Greta [Thunberg].

Concorda com ela?

Concordo, embora me pareça um bocadinho fundamentalista em não querer andar de avião, mas é um statement. É um sinal de alerta, vai ser necessário fazer alguma coisa. Ainda há pouco li um livro que dizia que cada voo intercontinental, por exemplo Londres-Nova Iorque e regresso, destrói três metros cúbicos de gelo da Antártida. Claro que o gelo também tem a capacidade de se regenerar, mas não se regenera ao mesmo ritmo a que é destruído. Portanto, alguma coisa terá de ser feita. Os aviões poluem bastante, não se vê uma solução alternativa no curto-prazo, como está a acontecer com os automóveis elétricos... O problema está aí, mas não são os automóveis e os aviões os principais responsáveis pela poluição. Só 14% da poluição é atribuída aos transportes, a grande parte das emissões de CO2 vem da indústria, Estados Unidos e China.

Isso inclui a indústria da aviação.

Claro, o problema é que não temos alternativas, principalmente para as grandes distâncias. Tenho amigos que para as distâncias mais curtas não viajam de outra forma que não de comboio. E nós não temos isso, nem TGV.

o atual aeroporto não faz sentido, tem de acabar, por todas as razões.

Vamos ter outro aeroporto...

Bom, aí entramos numa zona mais polémica. A própria construção levanta problemas de ordem ambiental. Não sou a pessoa indicada para se pronunciar, não conheço suficientemente a matéria, suponho que as entidades responsáveis estudaram bem a localização do novo aeroporto, mas há outro problema grave, do qual já ando a falar há 20 anos: o atual aeroporto não faz sentido, tem de acabar, por todas as razões.

Operar em Lisboa é extremamente constrangedor do ponto de vista técnico. A TAP terá sempre problemas enquanto existir este aeroporto. De uma coisa tenho a certeza: o aeroporto de Lisboa tem de sair de onde está

Mas, ao contrário, continua a esticar...

Mas isso é péssimo, não devia acontecer. Pela poluição, sonora e ambiental, e pelo perigo: temos um aeroporto no meio da cidade. Um dia, Deus nos livre, um avião tem um problema a descolar e estatela-se no meio de Lisboa, com consequências incalculáveis. Só por milagre ainda não aconteceu, porque já aconteceu noutras cidades. E em Lisboa já houve dois episódios, que eu conheça, que podiam ter acabado muito mal. Os remendos nunca são bons. A TAP está com muitos prejuízos, vai continuar a ter prejuízos, e a situação é cada vez mais preocupante. Uma parte muito significativa dos prejuízos da TAP são indemnizações por atrasos, porque a TAP está permanentemente atrasada. Já no meu tempo tinha alguma tradição de atrasos, não era muito fiel aos horários, mas agora a situação é mais grave, há muitos aviões e o aeroporto está a rebentar pelas costuras, é difícil arranjar horas para descolar, para aterrar. Operar em Lisboa é extremamente constrangedor do ponto de vista técnico. A TAP terá sempre problemas enquanto existir este aeroporto. De uma coisa tenho a certeza: o aeroporto de Lisboa tem de sair de onde está.

O Montijo é alternativa?

O Montijo não é sequer alternativa, é complementar, porque o Aeroporto da Portela vai continuar a funcionar. O problema principal, quanto a mim, é a localização do aeroporto de Lisboa no meio da cidade - isso chegava e sobrava para o tirar dali -, mas há também razões operacionais. O aeroporto tinha duas pistas, uma grande e uma pequena, que às vezes utilizávamos. Essa pista fechou para servir de estacionamento a aviões. Terá sempre o problema de ser uma coisa remendada, que vai servir mal. Sei que somos pobrezinhos, não temos dinheiro, mas temos de arranjar uma solução. A TAP tem um passivo histórico que é difícil ultrapassar. Por má gestão, mas também por razões políticas. Durante anos operou linhas políticas, onde estavam emigrantes. Cheguei a fazer Los Angeles, quando voava Lockheed. Veja o absurdo: tínhamos um voo por semana para LA, porque era preciso servir a comunidade portuguesa à volta de San Diego, e ainda por cima o serviço é sazonal - férias, Natal - o resto do ano as linhas andam vazias. E a tripulação ficava uma semana em LA à espera do voo seguinte, imagine os custos disto - para nós era divertidíssimo, fui a Las Vegas e sei lá onde mais, mas é ruinoso. Isto foi antes de a TAP ser privatizada. E tinha outros serviços para onde quer que houvesse emigrantes: Caracas, Moçambique, Angola, linhas deficitárias, mas que tinham de ser feitas, como a Madeira e Açores. Com a privatização isto mudou um pouco, mas pelos vistos as coisas não estão a correr melhor.

o tempo das companhias de aviação públicas, as chamadas companhias de bandeira, acabou. Era uma coisa dos anos 1940 e 1950, em que cada país se orgulhava da sua companhia de aviação e cada companhia de aviação se orgulhava do seu país. A fase romântica da aviação

A TAP devia ser pública ou privada?

Penso que o tempo das companhias de aviação públicas, as chamadas companhias de bandeira, acabou. Era uma coisa dos anos 1940 e 1950, em que cada país se orgulhava da sua companhia de aviação e cada companhia de aviação se orgulhava do seu país. A fase romântica da aviação. Hoje isso não faz sentido, não faz sentido os Estados terem companhias de aviação. A aviação deve ser um negócio privado, para ser competitivo, e os passageiros, os clientes, beneficiam disso. Com a invasão das low-cost está a chegar-se a um ponto perverso, começaram por tomar conta dos mercados de médio curso e agora estão a entrar nos mercados de longo curso. A filosofia é completamente diferente, o que faz a low-cost é transportar o passageiro do ponto A para o ponto B sem regalias absolutamente nenhumas. Quer qualquer coisa, pago à parte. Tanto quanto sei, os passageiros não se importam, querem viajar o mais barato possível.

As companhias tradicionais estão a oferecer quase o mesmo que as low-cost, mas com preços mais elevados. Funciona?

Tenho regalias especiais se quiser viajar na TAP, como todos os funcionários. Que já raramente utilizo, porque os preços das low-cost são quase idênticos - e na TAP não tenho reserva de lugar, mas se viajar na Easyjet tenho. Em outubro fui de férias para a Sardenha, que não conhecia, e quando estava a fazer os procedimentos para reservar a viagem surge a pergunta: "Gostaria de viajar ao lado de Maria de Lurdes?", que é a minha mulher. E eu penso: espera, isto é a TAP a falar comigo. Respondo: "Gostaria". Então dê cá mais dez euros. Depois: "Gostaria de viajar numa cadeira reclinável?" Estou-me nas tintas para a cadeira, por duas horas... Isto é a "minha" TAP, a companhia onde trabalhei durante quase 40 anos, a tentar competir com as low-cost. Não vai conseguir, porque os custos operacionais das low-cost são muito mais baixos, os salários são mais baixos, elas foram feitas para ser assim. E as companhias tradicionais estão a rebentar umas a trás das outras, a South African Airways está numa situação de praticamente falência, a Alitalia, a Thai Airways...

Não é possível uma empresa funcionar assim, com sindicatos e comissões de trabalhadores a reivindicar poderes de gestão. E acontecia que a função dos sindicatos era criar emprego, por isso é que a TAP foi enchendo e enchendo, metendo sempre mais gente

Há pouco falou-me de sindicatos. A TAP tem esta característica única de ter uns 15 sindicatos. Faz sentido?

Penso que tem mais. E as coisas estão melhor, porque no período áureo da revolução - formámos o sindicatos dos pilotos em 1976, em pleno PREC - era pior. A TAP, como a Lisnave, era uma espécie de laboratório, dominada pelos partidos da extrema-esquerda. Havia uma coisa extraordinária, a comissão de trabalhadores, uma invenção do 25 de Abril, onde os vários setores profissionais estavam representados, e que tinha todas as capacidades, até a de ser consultada ao nível da gestão. Não é possível uma empresa funcionar assim, com sindicatos e comissões de trabalhadores a reivindicar poderes de gestão. Era inviável. E acontecia que a função dos sindicatos era criar emprego, por isso é que a TAP foi enchendo e enchendo, metendo sempre mais gente. O Estado foi sempre metendo dinheiro, até se ter visto na contingência de não poder pôr mais, devido às regras da União Europeia, e ter de ir para a privatização.

Concorda com esta privatização?

Não. Não concordo com o modelo partilhado, uma parte do Estado, uma parte privada. Os interesses do Estado não são compatíveis com os interesses dos investidores privados, portanto a coisa não vai funcionar. Penso que a TAP devia ser 100% privada. Claro que isto tem riscos, porque sendo 100% privada, se as coisas correram mal, a TAP fecha, os privados não são a Santa Casa da Misericórdia. Acredito que a TAP está num momento decisivo, até porque o investidor privado já disse que quer sair. Não sei o que vai acontecer a seguir.

Vai sobrar para o contribuinte?

Ah, disso não tenho qualquer dúvida, vai sobrar para o contribuinte de certeza.

O medo de andar de avião, tem cura?

É uma questão muito interessante, e estou quase especializado nessa matéria. Participei em cursos, fui convidado pela Cristina Albuquerque, psicóloga clínica que tem um programa para aerofóbicos, o "Voar sem Medo". O piloto é convidado a explicar como é que os aviões voam, os ruídos que se ouvem, o que acontece quando cai um raio num avião - que é inócuo. E os cursos têm tido sucesso, as pessoas aprendem a lidar com o medo de andar de avião. Há até um detalhe que me foi dito por um amigo psiquiatra que se interessa por essas matérias, e que a Cristina Alburquerque confirma: há pessoas que depois de vencerem o medo de andar de avião passam para o extremo oposto e tornam-se viajantes compulsivos. E depois, não faz ideia das histórias das pessoas que conheço nestes cursos, quase todas mulheres.

uma executiva de uma grande multinacional que já podia ser vice-presidente se não estivesse tão limitada por ter medo de andar de avião, porque tem de viajar muito,

As mulheres têm mais medo que os homens?

Não, claro que não. Essa foi a questão que coloquei. Acontece que as mulheres dão a cara, os homens são uns palermas, não admitem. Mas é curioso, acompanhei e continuo a acompanhar casos de mulheres engraçadíssimos; por exemplo, uma executiva de uma grande multinacional que já podia ser vice-presidente se não estivesse tão limitada por ter medo de andar de avião, porque tem de viajar muito, ou outra, casada com um holandês e que vai de carro para a Holanda, onde iria mais vezes visitar a família do marido se andasse de avião. Mas há progressos. Às vezes fico até às duas ou três da manhã a responder a casos, dá-me imenso gozo. E há pessoas que vão a entrar no avião e enviam-me mensagens. Gosto muito deste contacto e de saber que há pessoas que se sentem ajudadas, é gratificante.

Até que idade se pode pilotar um avião?

Agora até aos 65, quando eu saí era até aos 60. E eu estava muito farto, não aguentava mais, os meus últimos cinco anos foram penosos. Todas as semanas ia para qualquer lado, incluindo nas férias.

O relatório de 2019 sobre as profissões mais estressantes coloca os pilotos depois dos jornalistas. Ou seja, se tivesse optado pelo jornalismo não estaria melhor...

A sério? Havia e há vários factores que contribuem para isso. Para já, a fadiga, anos e anos a fazer a mesma coisa. Tem muita graça no princípio, quando temos 30 anos, chegamos a Nova Iorque e vamos sair à noite, beber copos, conhecer coisas... Mas aos 50 anos não é a mesma coisa, o corpo demora mais tempo a recuperar, temos de lidar com o problema dos fusos horários. O meu corpo nunca sabia onde estava, eu era um fatigado crónico. Cheguei a ter paragem de intestinos de uma semana. O ritmo normal sofre com isso. Depois vamos para os médicos gritar, mas eles diziam: "O que quer que eu faça? Mude de profissão". Às vezes chegava a casa, onde estava dois ou três dias, mas estava tão cansado e transtornado que bastava alguém dizer "bom dia" para eu desatar aos gritos: "Bom dia porquê?" Estava a tornar-me uma criatura insuportável. E depois já não gostava de sair de casa. Os meus voos eram quase todos à noite, às vezes estava a fazer a mala às 21:30 ou às 22:00 e até me vinham as lágrimas aos olhos. Claro, entrava no avião e aquilo passava. E havia outra coisa: à medida que eu ia envelhecendo os outros ficavam mais novos.