Quando Rafael Gallo, o mais recente vencedor do Prémio Literário José Saramago, foi instado a explicar a sua relação com a obra do escritor que batizou este galardão, o autor brasileiro não poupou nas palavras para descrever como “Ensaio sobre a Cegueira” o influenciou.

“Foi um daqueles livros que li quando era mais jovem, daqueles livros que realmente mudam a nossa visão de mundo. Como se instalasse uma nova chave no seu cérebro, que dali para frente se pode acionar e viver tudo na vida de formas diferentes”, disse aos jornalistas, no final da cerimónia de entrega do prémio.

Não foi o único. A propósito da celebração do centenário de José Saramago, o SAPO24 desafiou outros vencedores deste prémio a explicar o que os livros do autor ribatejano representam para si e como moldaram o seu percurso.

“Acho que para a escrita, para quase todos os que escrevem em português, e não só, Saramago tem uma enorme importância. Poderá não ser uma influência direta em muitos autores, mas tem muita importância para nós enquanto leitores”, diz Bruno Vieira Amaral, ressalvando “o cruzamento que ele consegue fazer entre o lado erudito da língua e também a oralidade”.

Indo ao encontro do que disse o escritor oriundo de São Paulo, o Prémio Saramago de 2015 — conseguido com “As Primeiras Coisas” — recorda que quando leu Saramago pela primeira vez, com “17 ou 18 anos”, a experiência ajudou a abrir “as possibilidades da língua”, porque “de repente torna-se possível um exercício da língua que até aí não se imaginava”.

“Há ali uma grande ideia de necessidade, parece que a língua está a ser de facto inventada naquele momento, ainda que vá buscar muito a uma fonte mais antiga”, continua o escritor barreirense, lembrando que se Saramago foi influenciado em parte pela escrita de Padre António Vieira e do Barroco, “quando se lê os livros dele aquilo nunca soa nem parece um exercício de recriação ou quase de pastiche do que foi feito, pelo contrário”. “Quem está a ler pela primeira vez sente esse impacto. Aquilo parece uma coisa ao mesmo tempo muito antiga e muito moderna”, sugere.

Daí surge uma “sensação de espanto” que, adverte, dependerá “da altura em que se lê” Saramago pela primeira vez e “daquilo que já se leu antes”, mas que, acredita, “será uma experiência comum a muitos leitores”. Foi assim também para Gonçalo M. Tavares.

“O primeiro livro que eu li de José Saramago, se não me engano, foi o ‘Memorial do Convento’. Marcou-me logo muito”, conta o vencedor do prémio em 2005 por “Jerusalém”. “O momento em que se lê Saramago é um momento que fica. Por exemplo, com “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Aquelas primeiras páginas sobre a chuva em Lisboa são qualquer coisa que é impossível esquecer”, continua, apontando para a “potência de realmente estarmos a ler qualquer coisa que de repente se transforma em imagem”. No seu entender, a leitura de Saramago proporciona imagens com lugar cativo na cabeça, “não porque tenham passado para filmes, mas porque são visualmente fortíssimas”.

Um dos elementos que aponta como singulares em Saramago é o facto de criar um imaginário que “parte de uma hipótese aparentemente impossível — uma cegueira que se contamina [“Ensaio sobre a Cegueira”] ou a morte que é interrompida no mundo [“As Intermitências da Morte]” —, para qualquer coisa que depois, ao fim de 10 páginas, se torna absolutamente natural”.

“Há ali um encantamento, que tem a ver muito também com esta construção do mundo paralelo”, explica Gonçalo M. Tavares, atribuindo o caráter sedutor das obras saramaguianas à forma como “de repente saímos da realidade e entramos num mundo que não é um mundo de total fantasia”, como é, por exemplo, o do italiano Italo Calvino, em “Cidades Invisíveis”. “O Saramago está lá no meio. Cria um mundo que não é nem real, nem totalmente fantasista. O paranatural, uma espécie de hipótese alternativa da realidade. E isso marcou-me muito”, afirma. 

No caso de João Tordo, a relação com a obra de Saramago é já muito antiga e chegou mesmo a atravessar fronteiras. “Era tão aficionado que me lembro que, nos anos em que vivi em Inglaterra e depois nos EUA, a minha irmã enviava-me os livros dele. Era o único escritor que eu fazia questão que me enviassem os livros”, revela o escritor, galardoado com o Prémio Saramago de 2009, por “As Três Vidas”.

Tendo feito parte do conjunto de vencedores que chegou a privar com José Saramago em vida, por ocasião das cerimónias do prémio, João Tordo, não obstante, diz que a sua relação com o autor de Azinhaga já tinha sido criada “através dos livros”. “Sentia que o conhecia, era uma relação estranha que um escritor só cria com uma mão cheia de autores ao longo de sua vida”, admite.

Ao contrário de Bruno Vieira Amaral e Gonçalo M. Tavares, que atribuem a Saramago sobretudo um papel formativo enquanto leitores, o escritor lisboeta assume frontalmente que o Nobel da Literatura é uma influência direta na sua escrita. “Acho que se nota muito nos meus livros, talvez a partir do prémio se tenha notado ainda mais, porque fui perdendo um bocado de medo de plasmar as minhas influências, até na linguagem e na forma como ia construindo a narração”. O quê, em concreto? “O próprio registo, o encadeado da prosa, o modo como ele, de certa maneira, revolucionou ou reinventou uma forma de escrever em português que estava esquecida ou perdida ou até que nunca tinha sido feita. Isso é uma grande influência”, afirma João Tordo.

Andréa del Fuego sentiu-se arrebatada quando leu ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’, o seu primeiro contacto com Saramago e do qual nunca mais recuperou “do susto diante dessa obra monumental”. Respondendo por e-mail ao SAPO24, a vencedora de 2011 do Prémio Saramago (com “Os Malaquias”) atribuiu outro tipo de influência, a “mais importante” que poderia ter tido, ao ler esta obra: “a audácia”. “No meu trabalho, a audácia não está exatamente numa linguagem ou tema, mas na decisão diária pela escrita, uma decisão sem retorno”, frisa a escritora brasileira.

O que nos pode dar José Saramago em 2022? Humor, oralidade e “outra hipótese de vida”

Desde “Terra do Pecado” — editado em 1947 e agora reeditado como “A Viúva”, o título que Saramago originalmente queria — até “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas” — incompleto e publicado postumamente em 2014 — há muito a explorar na obra saramaguiana, e está-se apenas a considerar a vertente de ficção.

Mas, para quem nunca se dedicou a ler Saramago e queira fazê-lo agora, o que pode esperar dos seus livros?

Para Bruno Vieira Amaral, depende de qual dos dois períodos distintos da sua obra as pessoas optarem. Um, explica, “é mais clássico”, no sentido de “procurar uma recriação histórica, ainda que o termo romance histórico não seja aplicado, pelo menos no sentido redutor, à obra de Saramago”. Para isso dá o exemplo d’ “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, passado nos anos 30 em Lisboa e que “acaba por ser um diálogo com essa história”.

O outro entra já numa dimensão de “ficção mais especulativa, até mais próxima da ficção científica”, como no “Ensaio sobre a Cegueira” ou no “Ensaio sobre a Lucidez”, onde “no fundo, se discutem quase hipóteses”. “São romances de ideia, no singular”, aponta. No entanto, tanto num caso como noutro, a atitude de Saramago acaba por ser a mesma.

“O que há de comum, além da questão linguística, é a problematização da história e a problematização também do futuro, das possibilidades, do que poderia acontecer. Como se o escritor interrogasse não só a história, mas também as possibilidades do meio. Acho que é isso que distingue a obra do Saramago”, conclui.

Gonçalo M. Tavares também destaca a forma como Saramago se dedicou a criar “construções de utopias e distopias” sem enveredar verdadeiramente pela ficção científica. Ao invés, oferece a “possibilidade de viver durante umas horas num mundo totalmente diferente, mas com grandes semelhanças. Uma outra hipótese de vida”.

“Acho que há mesmo esta ideia de mergulhar numa espécie de aquário, que parece primeiro fora do mundo, um outro elemento líquido, em comparação com outro mundo sólido. E de repente esse aquário vai-se alargando e alargando e aquilo que parece o suposto 'fora do mundo' de repente vai-se alargando e parece que é o mundo. No ‘Ensaio sobre a Cegueira’, por exemplo, tem-se essa experiência: subitamente, aquilo torna-se o mundo e não uma hipótese de mundo”, explica.

O escritor realça também um outro aspeto já aflorado por Bruno Vieira Amaral, o de como a oralidade está tão patente na escrita de Saramago. “Podermos ler Saramago de duas maneiras: em silêncio, ou em voz alta. E há qualquer coisa que se revela quando lemos em voz alta, o que é muito interessante. Ou seja, é por um lado uma escrita, digamos, com uma espécie de grande caudal, mas de repente, quando nós lemos, aquilo que pode parecer ambíguo fica claro, há uma clareza dada pela oralidade”, aponta Gonçalo M. Tavares

Esta característica foi igualmente destacada por Andréa del Fuego, de uma “oralidade que nos traz a notícia de que talvez a erudição seja anterior ao alfabeto”,”ela está no ato de fala e na transmissão de nossas narrativas de geração em geração”, refere a escritora brasileira.

“Não é nada fácil fazer o que ele fez em português, que é aliar um poder de narrativa imenso com uma linguagem sua”, aponta, por seu lado, João Tordo, lembrando a “velha questão um bocadinho viciada em Portugal” da forma da escrita versus o conteúdo dos livros. E diz que Saramago conseguiu aliar as duas, sendo moderno ao mesmo tempo.

“Mesmo para quem é mais novo e se calhar não conhece, Saramago é muito moderno, é um escritor de uma enorme contemporaneidade. Não é nada fácil de conseguir, porque normalmente o tempo é um bom juiz dessas coisas. Muito do que é feito em literatura acaba por se perder no esquecimento. Grande parte dos livros não sobrevive mais do que cinco ou dez anos”, aponta.

E, por fim, uma característica que sente que é algo ignorada quando se pensa em José Saramago: o “humor”. “Apesar de as pessoas olharem para ele talvez como uma personagem com um ar mais sorumbático, os seus livros não são nada disso, têm imensa graça. Têm um humor muito constante. Uma situação dramática num livro de José Saramago nunca é completamente dramática porque há sempre esse lado”, termina.

Os 23 anos de uma “uma catapulta muito grande” para jovens escritores

Saramago não deixou apenas obra publicada — o facto de um dos mais significativos prémios literários do país ter o seu nome é prova não apenas do seu legado na escrita, como também do seu impacto cultural mais alargado.

Criado em 1999, no rescaldo da conquista do Nobel da Literatura por parte do escritor que o batizou, o Prémio Literário José Saramago destinou-se desde a sua génese a destacar autores com obra publicada em português, não se circunscrevendo a Portugal.

Durante duas décadas, as condições do prémio estabeleciam um limite de 35 anos de idade para participar e apenas poderiam ir a concurso obras já publicadas. Tudo mudou este ano: o limite subiu para os 40 anos e passou a considerar apenas inéditos, sendo o vencedor alvo de publicação futura.

Foi essa mudança que permitiu a Rafael Gallo ganhar este ano, ele que já tinha concorrido em 2017 (e perdido para o conterrâneo Julián Fuks) e que já tinha ultrapassado o limite de idade, tendo agora 40 anos. “Estava quase a perder este livro, mas teve esta reversão e, de repente, ganho-o da melhor maneira possível”, sublinhou aos jornalistas.

“É uma dessas coisas difíceis de explicar, talvez pela relação com os livros mesmo. De eu ter lido os outros vencedores, de serem autores favoritos e livros favoritos meus. Então, poder fazer parte disso também é como um garoto que é fã de uma banda, sonha com essa banda e, de repente, pode subir no palco e estar junto com essa banda”, explicou. O sentimento que deixou aflorar não é surpreendente, dado o papel que a obtenção deste troféu tem tido para os seus vencedores. 

“Creio que todos os galardoados relatarão a mesma experiência. É uma catapulta muito grande para um escritor jovem. Nos últimos 13 anos, diria que não houve nenhuma conferência, apresentação pública ou sessão com leitores em que eu não seja apresentado como ‘João Tordo, vencedor do Prémio José Saramago’", conta o escritor.

No seu entender, este prémio “marcou uma geração” e é “o único em Portugal que não é apenas um prémio — é uma espécie de selo, uma marca, tem características muito diferentes dos outros prémios, que também são muito bons, mas não têm a mesma longevidade nem tanta visibilidade”. “É único nas suas características, porque começou numa época de viragem do milénio onde surgiu uma geração muito forte de escritores e escritoras em Portugal, e estas gerações não surgem todas as décadas. Talvez apareçam de 40 em 40 ou de 50 em 50 anos, não é tão comum como possa parecer, e o prémio teve essa marca”, aponta.

Andréa del Fuego registou um percurso semelhante, confessando que ainda hoje sente o impacto do prémio na sua carreira. No entanto, para si importa destacar um outro aspeto: a responsabilidade para com a literatura. “Atualmente, sinto o impacto do prémio cada vez mais na maneira como vejo o processo de criação, no sentido do compromisso com a escrita — não pelo prémio em si, mas pela própria postura do José Saramago com sua literatura. Ele é um horizonte para quem escreve, no sentido da seriedade e transparência com o próprio trabalho”, afirma.

No que toca a responsabilidade, Bruno Vieira Amaral diz que, enquanto elemento do júri deste ano, sabe que ele e outros vencedores no passado têm “noção da importância que o prémio” teve para as suas vidas “e da importância que teria sempre para qualquer escritor que o recebesse, como neste caso o Rafael”.

“O impacto foi enorme nas opções que pude tomar a partir daí, na decisão de me dedicar à escrita, e creio que essa era a intenção de Saramago quando o prémio foi instituído, de criar condições para que os escritores que recebessem o prémio também eles pudessem fazer aquilo que ele não fez em devida altura, que foi dedicar-se à escrita quando era mais jovem”, conta.

E é nessa lógica que Gonçalo M. Tavares aceitou fazer parte do painel deste 2022, ele que se pautou pela recusa de fazer parte de júris de concursos literários. “Aqui era especial,  porque é bom haver oportunidades para escritores com menos de 40 anos, para jovens escritores com qualidade. E este prémio realmente possibilita que alguém que está a começar de repente tenha um impacto”, justifica, dizendo ficar contente por “descobrir novos autores”.

Comparando a atribuição do galardão a uma espécie de choque elétrico, “benigno mas extraordinário”, Gonçalo M. Tavares fala na mensagem que a atribuição do prémio traz: “‘continua a escrever, isso é necessário, isso não é inútil’. Essa é a grande vantagem de um prémio como o Prémio Saramago”.