São bíblicas e estão presentes nas várias narrativas da história da humanidade as referências à redenção através do perdão. Dar a outra face, dir-se-á por outras palavras. Não foi bem isso que aconteceu na candidatura dos Democratas, mas antes uma reunião de irmãos desavindos, inimigos, rivais que se unem para lutar contra o mal que julgam maior. Assim, depois de derrotada por Joe Biden na corrida à nomeação do partido (as primárias), Kamala Harris acabou por ser a escolha de Joe Biden para ocupar o número dois da candidatura.
Ainda assim, mesmo antes de se conhecer o resultado das eleições presidenciais de novembro, Kamala Harris já fez história ao tornar-se na primeira mulher afro-americana e primeira pessoa de ascendência indiana nomeada para vice-presidente dos Estados Unidos.
A multirracialidade da candidata de 55 anos, nascida em 1964 de mãe indiana e pai jamaicano, ambos emigrantes, foi, aliás, sempre um ponto saliente na sua carreira, tornando-a pioneira em quase todas as posições de liderança que assumiu. Ainda assim, o rasto que deixou traz-lhe hoje algumas incoerências e várias críticas, pela dissonância entre o que agora defende e a forma como agiu quando pôde.
Logo no ano a seguir ao curso na Faculdade de Direito de Hastings, da Universidade da Califórnia, tornou-se assistente do procurador distrital do condado de Alameda, Califórnia, onde era vista, segundo uma reportagem do LA Times de 1994, como “uma procuradora capaz e em ascensão”. E em 1998, já na procuradoria de São Francisco, liderou casos de homicídio, roubo e violência sexual.
Depois de eleita procuradora-geral distrital do condado de São Francisco em 2003, Harris cultivou uma postura agressiva na perseguição de crimes violentos, com armas e de natureza sexual, tendo também criado a Unidade de Crimes de Ódio. A mão pesada continuou como procuradora-geral da Califórnia, cargo que exerceu entre 2011 e 2017 e em que perseguiu crimes de tráfico de seres humanos, tráfico de droga e crimes tecnológicos, entre outros, mas que lhe rendeu muitas críticas.
É que Kamala Harris sempre foi considerada uma moderada e, numa altura em que se agudizam os pedidos de reforma na polícia e os protestos desencadeados pela morte do afro-americano George Floyd, o seu histórico de tolerância para com agentes envolvidos na morte de civis tem sido controverso. Além disso, segundo o New York Times, o plano de reforma do sistema de justiça criminal que avançou durante a sua campanha presidencial, em 2019, continha várias políticas progressistas a que ela própria se opôs anteriormente.
Esse é um dos aspetos visíveis da evolução de Kamala Harris, que nos últimos anos se alinhou mais à esquerda do partido Democrata, tendo sido, no entanto, a sua postura enquanto procuradora que a colocou na ribalta como senadora pela Califórnia, cargo para o qual foi eleita em 2016. Como caloira do Senado no primeiro ano da presidência de Donald Trump, Harris destacou-se pelo estilo agressivo com que interrogou testemunhas nas audiências dos vários comités aos quais pertencia, nomeadamente Brett Kavanaugh, entretanto confirmado para o Tribunal Supremo, e o ex-procurador geral de Trump, Jeff Sessions.
Mais tarde, no seu desempenho nos debates presidenciais dentro do Partido Democrata destacou-se pelo confronto com Joe Biden — o agora aliado — que criticou pelo trabalho com senadores segregacionistas, lembrando que ela fez parte da segunda turma na Califórnia que integrou negros e brancos na escola pública.
Esta referência à sua identidade racial também gerou reações negativas, pela fação que a acusa de ter contribuído para o aumento da condenação e encarceramento de negros na Califórnia. Mas Harris sempre usou como bandeira a inspiração nos movimentos de direitos civis e naqueles que abriram caminho antes dela, com destaque para Shirley Chisholm, a primeira afro-americana a candidatar-se à nomeação presidencial pelos democratas, em 1972.
As sondagens colocam a candidatura democrata na frente — e os jornais dizem que Harris saiu-se melhor que Pence no debate dos vices. Mas se houve lição em 2016 foi que só mesmo depois de contados os votos se sabe quem ganhou. Tendo em conta que Biden, de 77 anos, deve cumprir apenas um mandato se for eleito, Harris poderá estar numa posição privilegiada para ganhar a nomeação à presidência daqui a quatro anos.
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