Ainda hoje se lembra de brincar aos índios e cowboys pelas ruas da vila. Ele, filho único, e talvez por isso mais protegido, não podia afastar-se de casa e cabia-lhe por isso o papel de taberneiro. Ficar a tomar conta do saloon tem o que se lhe diga: tertúlias, confidências e ajustes marcaram o faz-de-conta de Álvaro Laborinho Lúcio, que nunca lhe perdeu o gosto.

Talvez por isso nunca tenha dito que queria ir para Direito, mas sim para a Justiça. E foi. Como independente, esteve em dois governos de Cavaco Silva como ministro da Justiça e é juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça.

Muito dedicado a associações ligadas aos direitos da criança, foi no Chiado, quando apresentava o livro "Adotar em Portugal, Um Guia Para Futuros Pais", de Ana Kotowicz, que marcámos esta conversa. Falava com graça, mas, mais do que isso, com conhecimento de causa. Álvaro Laborinho Lúcio tem quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas, elas adoptivas. E logo aí vieram mil e uma histórias, como a do homem que se orgulhava de ter adoptado 13 crianças e a quem ele, juíz, não resitiu a dizer que há uma diferença entre ter uma família e um colégio. "Ainda hoje gostaria de o encontrar para, de alguma maneira, lhe pedir desculpa pela franqueza com que o fiz". Mas, nisto dos miúdos, nunca é de mais lembrar que o que está em causa é o superior interesse da criança, e não a vontade do adulto de ser mãe, de ser pai. "Há o direito de ser adoptado e não o direito de adoptar".

Desta vez não falámos de adopção, mas falámos de crianças e de livros. As crianças vieram com a educação, um dos temas da entrevista: que modelo de ensino público queremos para os nossos filhos? 76 anos são experiência suficiente para saber que, ao querer empanturrar os miúdos com tantas competências, talvez a escola e os educadores estejam a esquecer-se do mais importante: deixar que os pequenos descubram e mostrem as suas capacidades.

O livro é o terceiro romance de Laborinho Lúcio, "Beco da Liberdade". Mas esta conversa bem podia ser uma avenida. Viajámos no espaço e no tempo, até à Nazaré de 1941, primeiro, depois as décadas seguintes, Nazaré, ainda, Coimbra, Nazaré, Lisboa, Nazaré, a Escola dos Pescadores, o grupo académico, o teatro, a censura e o dia em que Humberto Delgado viria a revelar-se o álibi perfeito.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

A última vez que nos encontrámos apresentava um livro sobre adopção em Portugal. Agora está a escrever um novo romance, o terceiro. Já tem título?

Sabe, tenho uma história de escrita de ficção ainda muito curta. Às vezes tenho uma ideia, e quando chego ao fim da história o título acaba por ser outro completamente diferente do que tinha imaginado. Mas chama-se "Beco da Liberdade". Seria muita presunção minha garantir que vai chamar-se assim, mas é com estes dois conceitos aparentemente antagónicos que o leitor vai deparar-se e estabelecer um pensamento, de acordo com a sua própria vivência. E a procura permanente do conhecimento, da verdade quando se escolhe as personagens de um determinado tipo para representar uma figura, com a convicção de que ela nunca se encontra e com a ideia de que isso é, afinal, um bem, porque nos obriga a continuar o processo de busca, que é muito estimulante, é muito interessante.

Democracia e liberdade, até que ponto andam de mãos dadas?

Quando falamos de liberdade e quando falamos de democracia temos de ter uma noção histórica do que significam enquanto conceitos, que trajectos seguiram ao longo do tempo para os compreendermos. Aí encontramos aquilo que consideraria a dimensão ética de ambos os conceitos, que creio ser o que define os limites. Uma liberdade sem ética não é a liberdade de que estamos a falar e que devemos relacionar com a democracia. E, já que começámos por falar no meu romance, o segundo que escrevi ["O Homem Que Escrevia Azulejos"] trabalha muito a relação entre liberdade e democracia, e há uma personagem que a certa altura diz que é a ética que vai marcar verdadeiramente o sentido da liberdade. E é muito engraçado quando estamos a falar destes temas e, ao mesmo tempo, da aproximação, através da própria ficção, ao pensamento de Agustina Bessa-Luís, quando fala do seu princípio da incerteza, ao colocar em confronto dois princípios tão contraditórios entre si: o desejo da liberdade do ser e o da imposição da ordem. Agustina diz exactamente isto: é pela via da ética que podemos estabelecer o encontro entre o desejo do ser e o princípio da imposição da ordem, que regula as relações entre as pessoas.

Não sou um pessimista. Sou hoje, talvez, um optimista mais reservado do que já fui. Mas não sou um pessimista

A ética. Não caiu em desuso?

Eu não sou um pessimista. Sou hoje, talvez, um optimista mais reservado do que já fui. Mas não sou um pessimista. E tenho, por outro lado, a ideia de que quando estamos a falar de ética temos uma ressonância do significado do que isso representa, mas é importante saber quem é que invoca a ética e qual o conceito de ética de cada um. Não gosto de dizer que vivemos com falta de ética e tenho sempre uma referência de Jorge Luís Borges, a quem um dia disseram que se vivia num tempo em que a ciência e a ética estavam a desaparecer. Ele respondeu que não havia problema, se estavam a desaparecer teriam de se inventar outra vez. No sentido de que são absolutamente essenciais. Julgo que é essa relação que temos de estabelecer permanentemente. A partir daí o caminho para lá chegar deve ser colectivo, partilhado e dialogado, para que a certa altura nós não façamos da ética um instrumento para a afirmação do poder de uns sobre outros.

A justiça nasceu do teatro, foi o teatro que criou a ideia moderna de justiça, e tudo isto me levou a ter uma relação muito íntima com o teatro

Falou na verdade das personagens. Descobri que foi actor na sua juventude... Os livros são uma forma de recuperar o gosto pelo teatro, tal como a justiça?

Não sei responder a isso em relação aos livros, no sentido em que a experiência que vou tendo com a escrita de ficção é em grande parte também o produto das várias experimentações que vamos tendo ao longo da vida, das pessoas com quem contactamos, das angústias que atravessamos, das alegrias que vivemos. Tudo isso cria um manancial de conhecimento, constitui aquilo que eu diria um background cultural a cujas prateleiras vamos buscar muitas vezes memórias que servem para fazermos construção de personagens. Não posso dizer que fui actor. Nos meus tempos de juventude, sobretudo enquanto estudava, até ao fim da universidade, estive num grupo académico da minha terra, na Nazaré, que tinha também outro tipo de actividades e que tinha uma secção de teatro. Aí fiz alguns papéis, sim, e ao longo da vida sempre estudei teatro, mas porque tenho uma paixão por teatro, sempre gostei de investigar teatro. A minha relação com o teatro é uma relação muito funda. Por outro lado, entendi que entre o teatro e a justiça há outra profunda relação, e quem não compreende a história do teatro não compreende completamente a matriz da justiça. A justiça nasceu do teatro, foi o teatro que criou a ideia moderna de justiça, e tudo isto me levou a ter uma relação muito íntima com o teatro.

Não sei como era como actor, mas sei que fez mais do que estudar teatro...

Devo dizer-lhe que seria um mau actor. Enfim, não seria aquilo a que se chama um canastrão, mas não seria um bom actor. O que sempre gostei de ter sido, e tive alguma experiência a esse nível, foi encenador, coisa que hoje é considerada bastante ultrapassada do ponto de vista de um certo classicismo que se instalou. O encenador, no fundo, vem muito dos anos 50, entre nós anos 60, do século passado, e chegou a ser a figura principal, havia mesmo quem defendesse que a arte no teatro estava na mise-en-scène, ou seja, mais no encenador e menos no actor. Hoje a encenação caminha por trajectos muito diferentes, é muito mais colectiva, muito mais comunitária, muito mais de partilha. Mas foi a ideia de o encenador pegar numa proposta, seja qual for, e fazer dela um espectáculo de teatro que me seduziu.

Que peças encenou?

Algumas. Mas lembro-me de uma proposta de encenação que fiz para uma peça de Jaime Salazar Sampaio que foi muito estimulante, porque cheguei ao texto, tirei todas as notas sem conhecer o que o autor queria com ele, e construi uma encenação a partir daí. Depois verifiquei que era muito diferente da visão do autor – e, aqui para nós, fiquei com uma certa vaidade e a ideia de que a minha encenação era melhor (isto é uma boutade, evidentemente). E isto sim, tem a ver com o que escrevo, não posso negar. No meu primeiro romance ["O Chamador"] uma das personagens principais é um encenador. Há uma matriz clara que vem daí, um encenador que, no fundo, vai à realidade procurar personagens efectivas e que ele ficciona. Mais uma vez ele vai inspirar-se na realidade e depois constrói o espectáculo um pouco na inversão daquilo que Pirandello disse: enquanto tínhamos personagens à procura do autor, ali tínhamos um autor à procura das personagens e da construção da sua própria personagem, criando o romance que é O Chamador. Portanto, todo ele é comprometido com uma ideia de teatro, não é um livro sobre teatro, não é um livro de teatro, mas é um livro que tem muito de teatro dentro de si, coisa que já não acontece no segundo romance.

Actualmente vai ao teatro?

Vou muito menos do que queria, mas quando posso. Infelizmente, cada vez menos. Mas aí é um não poder que preciso de regular, porque tenho uma vida agitadíssima, ando sempre a correr de um lado para o outro, as pessoas são muito gentis e convidam-me para participar aqui e ali e não gosto de dizer que não, estou sempre em actividade. Mas tenho e fazer alguma regulação, porque isso faz-me perder espaço.

Costumo dizer que temos um excelente modelo de escola, o que atrapalha são os alunos [ironiza]

A educação é um tema que lhe interessa. As artes estão pouco presentes na escola, os rankings estão na moda, as notas ora incidem na Matemática, ora na Língua Portuguesa, ora na Educação Física. Este ano a novidade é a escola inclusiva. Que ensino público queremos para as nossas crianças?

Eu sou um profano, como costumo dizer. Aliás, muitas vezes digo que estou a falar num templo para sacerdotes sobre um culto que conheço mal, mas é como cidadão que falo, portanto de fora para dentro. E faço um parêntesis para pegar na sua formulação: incidem na Matemática, na Língua Portuguesa, na Educação Física... Penso que o ponto sobre o qual todos têm de incidir é nas crianças. E em matéria de crianças e de direitos da criança já não serei tão profano quanto isso. Aquilo que gosto de olhar é a educação e a escola a partir da criança. Costumo dizer – evidentemente que de uma forma quase caricatural - que temos um excelente modelo de escola, o que atrapalha são os alunos. Ora, se fizermos ao contrário, se em vez de concebermos a escola de cima para baixo, isto é, partindo de uma abstracção para a realidade, e olharmos a realidade e a partir dela construirmos um modelo, vamos encontrar respostas extraordinariamente fáceis. O problema é inverter a situação. Aqui julgo que temos dois ou três princípios a montante da própria construção do modelo - mas que vão condicionar o modelo - relativamente aos quais temos de estabelecer o que queremos, e penso que nesta medida podemos perfeitamente aceitar que é possível estabelecer um pacto mesmo entre partidos políticos. Não acredito que os partidos políticos encontrem um único modelo de funcionamento da escola, até porque estamos a falar de uma matéria que tem uma matriz ideológica - não vamos querer que todos venham dizer a uma só voz a mesma coisa -, mas há esta dimensão, a montante, onde julgo que é fundamental entrar em acordo. E o primeiro grande princípio sobre o qual temos de ter um acordo é este: se temos uma escola pública de ensino obrigatório até ao 12.º ano, temos de ter como primeiro objectivo da escola a inclusão universal de todos e de cada um dos alunos. E nenhum modelo que tenha na sua matriz a gestação via exclusão é um bom modelo, temos de fazer escolhas aqui. Temos todos dentro da escola, mas é preciso que todos pertençam à escola e é necessário que todos sintam que aquele espaço é seu e que têm ali um caminho de inclusão.

Como é que isso se faz na prática?

Isto leva-nos a perspectivas que são razoavelmente diferentes – ia dizer radicalmente diferentes, mas não quero, para já, atemorizar os que estão disponíveis para  aderir a este projecto. Trata-se de ser consequente e lógico com este discurso, não se trata de ser radical. Eu, por exemplo, não posso mais andar a falar de um princípio que todos acham que é um princípio de aplaudir, mas sobre o qual é necessário reflectir criticamente. Não posso mais dizer que tenho uma escola igual para todos porque não tenho todos iguais para a escola. Quer dizer, quando tenho uma escola igual para todos, continuo a ser abstracto e a ser abstracto em nome dos valores. E como tenho uma escola igual para todos e aplico essa escola a todos, a desigualdade que está na base vai acentuar-se ainda mais. O que tenho de ter é uma escola que se habitue a trabalhar a diversidade. A homogeneidade é mera metodologia. O que temos é de aprender a trabalhar a heterogeneidade, que faz parte da natureza da escola. E isto leva-nos longe, nomeadamente a um assunto muitíssimo difícil, que é o da avaliação.

Não posso mais dizer que tenho uma escola igual para todos porque não tenho todos iguais para a escola. O que tenho de ter é uma escola que se habitue a trabalhar a diversidade

Precisamos de um novo modelo de avaliação?

Aqui é preciso chegar outra vez a um consenso, que é este: a avaliação exclui-se relativamente aos modelos que temos utilizado ultimamente, que são modelos matemáticos que não jogam com algoritmos diferenciais em que se espera que cada aluno, no mesmo dia, à mesma hora responda da mesma maneira a perguntas iguais para todos. Tudo isto tem de desaparecer. Agora, o que não podemos é deixar que a substituição do actual modelo de avaliação por um modelo de avaliação contínua, individual, permita dizer que o primeiro é um modelo de exigência e o segundo é um modelo laxista, facilitista. Porque não é. A exigência tem de ser a mesma, e este é outro consenso. Da mesma maneira que não podemos deixar criar a ideia de que a escola deve ser permanentemente um espaço de felicidade. Não é. Às vezes não é. A escola pode ser também um espaço penoso, de frustração, de responsabilização, de trabalho, de disciplina. Temos é de perceber que ou isto é assim a partir das crianças, ou é assim a partir da escola. Se for assim a partir das crianças, a escola tem de se preocupar com a disciplina que propõe. Se for assim a partir da escola, a escola só tem de se preocupar com a disciplina que impõe. É por isso que a escola pública tem muito menos problemas de indisciplina do que se pensa, o que tem é problemas de disciplina.

Não podemos deixar criar a ideia de que a escola deve ser permanentemente um espaço de felicidade. A escola pode ser também um espaço penoso, de frustração, de responsabilização, de trabalho, de disciplina

Sei que não está a fazer um jogo de palavras...

Não, não é um jogo de palavras. Se o problema é de disciplina, o sujeito é a escola. Se o problema é de indisciplina, o sujeito é o aluno. Para concluir, diria que precisamos de nos dar conta de uma nova realidade nas escolas: os alunos, e não o aluno. Porque criámos a figura do aluno, uma figura abstracta. O que existe são alunos. Criou-se um documento particularmente interessante à saída da escolaridade obrigatória, que é o perfil dos alunos, mas todos os que aderem dizem perfil do aluno. Temos de acabar com esta cultura pré-instalada, um estereótipo.

Isso não deixa de ter graça, porque os alunos são tratados como um todo e não como seres únicos...

De uma maneira geral, e isso é compreensível, para os pais existe a escola e o seu filho. E para aqueles que têm poder e condições para dar caminhos paralelos de educação e de escolarização, para os que têm em casa cultura e filhos com maior predisposição para apreender o que lhes é dado na escola, o sucesso dos filhos é fundamental. E deve ser assim para todos os pais. O problema é que as pessoas devem perceber que ninguém deve estruturar o seu sucesso em comparação com o insucesso dos outros. Os pais que têm um filho que quer seguir Medicina e tem de sair do ensino obrigatório com média de 18/19, têm todo o direito de ter uma escola pública que lhes garanta isso. O que não podem é exigir que, para isso, a escola pública exclua muitos dos que criam dificuldades e problemas no interior da escola. Daí eu estar a dizer que a escola tem de garantir duas tranches de sucesso: o sucesso como nós o conhecemos e o não insucesso. Porque para muitos alunos a garantia do não insucesso é o máximo sucesso possível. Por exemplo, o ensino profissional, que me parece particularmente importante e tem de ser valorizado como tal, tem muitos mecanismos para responder a isto. O que não podemos é centrar a escola no desejo que os professores têm, ou terão, de manter um modelo mais fechado, este que temos tido até há relativamente pouco tempo e que é desejado pelos encarregados de educação dos filhos que não têm nunca problemas com a escola e pelos professores já um pouco mais cansados e menos exigentes consigo próprios.

Vivemos perturbados e preocupados com a necessidade de gerar competências e não nos damos conta de que encharcamos as crianças de tal maneira com competências que nunca chegamos a saber quais são as suas capacidades

Quando me falou de olhar o ensino a partir das crianças fiquei com a ideia de que ia falar-me de competências e de vocações...

Sim, há para mim um aspecto fundamental que é este: vivemos perturbados e preocupados com a necessidade de gerar competências, competências, competências. E não nos damos conta de que encharcamos as crianças de tal maneira com competências que nunca chegamos a saber quais são as suas capacidades. Ora a escola tem um período inicial, que pode ser de anos, deve ser de anos, em que fundamentalmente o importante deve ser soltar as capacidades máximas de cada criança. E agora que eu conheço a capacidade máxima de cada criança, então sim, introduzo as competências. Como é que vou saber as suas capacidades? Distinguindo competência do conhecimento. Conhecimento, até há pouco tempo,estava ligado a uma certa universalidade do saber. Hoje, o conhecimento está muito ligado à sociedade de inovação, à criação de valor, portanto, muito comprometido com uma sociedade tecnológica. Mas o conhecimento mais global, mais universal, é fundamental para desenvolver as capacidades, e quando confundimos conhecimento com competência ou o entalamos dentro desta ideia de sociedade de inovação, entulhamos as crianças com coisas que não lhes dizem nada e deixamos de ser capazes de compreender as suas capacidades. Desenvolver as capacidades de uma criança é um dever que qualquer pessoa ligada à escola e à educação. A seguir vamos trabalhar o conhecimento, que já permite desenvolver pensamento crítico, escolher.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

O que recorda da sua infância na Nazaré, que memórias tem daquilo que o fez seguir o seu destino?

Posso ter uma memória narrativa e posso ter uma memória interpretada. A narrativa penso que tem menos interesse, é uma antologia de infância... Lembro-me de que todas as crianças brincavam na rua, lembro-me de uma realidade que hoje desapareceu: já não se vêem miúdos com os joelhos esfolados nem ranhosos, desapareceram. Lembro-me de que eu era filho único e muito mimado e lá em casa não me deixavam sair com a frequência que eu queria e, por exemplo, brincávamos aos índios e cowboys e quase todos queriam ser cowboys, como é evidente, porque, lá está, o problema dos índios e cowboys, que representavam o cinema violento do nosso tempo – e nunca foi essa violência que nos fez mal, o que nos fez mal foi que ficámos a não gostar dos índios, e só muito mais tarde percebemos, por aquisições culturais, que afinal nos tinham enganado. Mas dividíamo-nos em grupos, cowboys para um lado, índios para o outro, e desatava tudo a correr pela vila, uns atrás dos outros. Como os meus pais não me deixavam ir para longe, eu era sempre o taberneiro. Daqui não extraí grande coisa, a não ser que que gosto muito da ideia da velha taberna, do espaço a que nós hoje chamamos a tasquinha, um local de encontro, de reflexão, às vezes à volta de quase nada, e poder extrair daí quase até uma representação cénica do mundo e da vida.

Dividíamo-nos em grupos, cowboys para um lado, índios para o outro, e desatava tudo a correr pela vila, uns atrás dos outros. Como os meus pais não me deixavam ir para longe, eu era sempre o taberneiro

E quais são as memórias que o marcaram sem que na altura tivesse dado por isso?

O que me marcou foi o ambiente social da Nazaré. Estamos a falar de finais dos anos 40 e dos anos 50. Nasci em 1941 e a distinção entre o pé calçado e o pé-descalço marcou-me muito nitidamente. A própria distinção geográfica da vila, o norte e o sul, o sul, onde moravam os pobres, o norte, onde viviam as pessoas com melhores possibilidades económicas, a miséria que havia na Nazaré e, pior do que isso, o que havia de terrível na vida do mar, no naufrágio, no enfrentar o mar em alturas em que era absolutamente desaconselhável embarcar, mas em que era essencial porque era dali que vinha o alimento da maior parte daquelas pessoas. Isso marcou-me muito e marcou-me simultaneamente outra coisa, e é provavelmente daí que vem o meu o gosto pela encenação, pela criação, que era a maneira festiva como a Nazaré vivia o Carnaval, mesmo nas alturas mais negras. O Carnaval na Nazaré não tinha nada a ver com o de hoje, era todo ele popular e, acontecesse o que acontecesse, parava tudo e havia uma alegria, uma capacidade criativa indescritível. Há, aliás, um filme de Manuel Guimarães que se chama precisamente "Nazaré" e que marca muito isso, neo-realismo puro e duro.

A realidade mais pobre de que fala, como tomou contacto com ela?

Assisti uma vez a uma conversa lá em casa sobre onde haveria de estudar. Eu tinha saído da primeira classe, da escola da D.ª Raquel, que era a professora, e havia duas alternativas: ou ia para o sítio da Nazaré, onde dava aulas a D.ª Virgínia e para onde iam os meninos das famílias um pouco mais abastadas, ou ia para a Escola dos Pescadores, para onde iam os filhos dos pescadores. E lembro-me de o meu pai ter dito: "O menino vai para a Escola dos Pescadores, porque é a escola daqui". E fui. No primeiro dia voltei para casa a falar à moda dos pescadores e a minha mãe ficou aflita, mas depois percebeu rapidamente que aquilo era recuperável e foi muito bom porque ainda hoje sei falar como se fala na Nazaré. Mas fiz a minha instrução primária na Escola dos Pescadores e só depois passei para outra escola, mas ainda hoje tenho amigos de infância à séria que são todos eles pessoas ligadas ao mar.

O que é que isso lhe deu?

Quando escolhi a minha profissão, e digo-o sem qualquer pretensiosismo, porque é apenas isto, nunca disse que queria ir para Direito, disse sempre que queria ir para a Justiça. Não sei se foi bom se foi mau, um dia saber-se-á, mas é uma área que privilegio muito. Esta ideia de justiça, sem querer dar um grande ênfase a isto, sem querer estar com isto a criar uma hipervalorização de mim próprio, foi-me natural. E depois, com um grupo de estudantes que se foi separando, uns foram para Lisboa, outros para Coimbra, outros para outras zonas do país, mas que nos encontrávamos em todas as férias, criámos esse grupo académico de uma imensa coesão, e ainda hoje nos encontramos quase como se fosse nesse tempo, e festejamos sempre que nos encontramos. Isso deu-me a possibilidade, inclusivamente no tempo difícil, de criar algumas rupturas então impensáveis. Por exemplo, nessa altura, na Nazaré – estamos a falar dos anos 60 - representámos praticamente todas as peças de Luiz Francisco Rebello, que estavam proibidas pela censura. Ficávamos sempre em grandes dificuldades.

Nunca foram apanhados?

Há uma história curiosíssima e que não é conhecida. Vou contá-la sem dizer o nome do presidente da câmara, apenas porque não sei se ele quer que a história se saiba. Havia naquele tempo um presidente de câmara muito chegado a nós e que acompanhava de perto muito daquilo que íamos fazendo. Era um homem com um certo sentido humano, e os espectáculos de teatro que fazíamos tinham receitas, que redundavam para a construção das primeiras casas de um bairro da Nazaré. Um certo ano vamos representar uma peça, "O Dia Seguinte", de Luiz Francisco Rebello, e havia depois umas variedades, como então se dizia, um texto que ia conduzindo os vários momentos, que também tinha sido cortado pela censura. Aliás, o que tinha acontecido de forma muito engraçada, porque a inspectora do texto não sabia o que havia de fazer àquela gente toda – a história passava-se dento de um palácio - e decidiu casar os empregados e as senhoras da casa. Então, no Secretariado Nacional disseram que aquele era um texto de origem bolchevique e cortaram-no por causa disso. E quem fazia a inspecção do espectáculo proibiu-o. Mas o presidente da câmara veio ter connosco e disse-nos: "Não se preocupem, façam o espectáculo". "Como? Vamos ter a Guarda Republicana à porta", dissemos nós. "Não se preocupem. Vocês fazem o espectáculo, eu serei o porteiro. Está tudo bem", repetiu o presidente. E assim foi, fizemos o espectáculo e nem sombra de Guarda Republicana.

Como é que o presidente da câmara conseguiu isso?

Viemos a saber mais tarde que o presidente da câmara, sabendo que Humberto Delgado tinha uma casa ali muito perto, numa aldeia colada à Nazaré, disse que ia haver uma reunião clandestina em casa de Humberto Delgado e que era preciso que todas as forças policiais da Nazaré fossem tomar conta da ocorrência. E então o espectáculo decorreu com toda a Guarda Republicana a impedir que a subversão pudesse nascer na casa de Humberto Delgado. Este era o clima. São histórias que nos marcam, inclusivamente marcam muito até aquilo que nós construímos em termos de adesão a um pensamento sobre a realidade e sobre as coisas. Um dia procurarei saber o que aconteceu a este presidente, que correu os riscos que esta atitude comportava na altura.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Há uma frase que costuma dizer em diversas ocasiões: "O receio de fazer perguntas fortes resulta em fracas respostas". Hoje todos parecem saber tudo, só não há é soluções para nada.

Comecei por dizer isso referindo-me à justiça. Isto agora já nos leva para um plano muito mais político, no sentido lato, se quiser. Se reparar, hoje, e isto é comum a todos os partidos, portanto não há sequer aqui uma tomada de posição de uns relativamente a outros, ouvimos falar muito de medidas. Toda a gente tem medidas para tudo, toda a gente anuncia medidas. Ora, as medidas são instrumentos de execução de políticas. Se não sabemos quais são as políticas que determinam as medidas, as medidas são as tais respostas fracas para perguntas fracas, porque as políticas é que são as respostas fortes para perguntas fortes e são essas perguntas fortes que temos de fazer. As perguntas fortes levam-nos a ter de perguntar em áreas para as quais temos algumas seguranças instaladas, mas que, por força de estarem instaladas há demasiado tempo, acabaram por envelhecer de tal modo que as medidas adoptadas não têm sucesso porque esbarram com as entropias do envelhecimento e do entrosamento das políticas sobre determinadas matérias.

Um exemplo de uma pergunta forte...

Sistematicamente falamos da divisão de poderes e sistematicamente falamos da independência dos tribunais. Não tenho nenhuma dúvida de que é importante a divisão de poderes, não tenho nenhuma dúvida de que a independência dos tribunais é um valor absolutamente inegociável. Mas pergunto: quais poderes? É que quando falávamos da divisão de poderes o poder estava todo concentrado no Estado: poder legislativo, poder executivo, poder judicial. O Estado tinha o monopólio do poder, organizava-se em três poderes que eram independentes entre si e que sendo independentes entre si faziam prevalecer essa separação. Mas onde está o poder aqui? Está completamente dissiminado. Há uma série de poderes de natureza pública que estão noutras entidades, desde logo nos mercados, uma abstracção que gera consequências concretas de dimensões exuberantíssimas. Então não é verdade que muitas vezes temos de ter o Estado no conjunto dos seus poderes tradicionais em interdependência e em cooperação e co-responsabilização para poder dialogar politicamente com esses poderes que estão fora? Não sou contra isso. Penso que há aqui uma poliarquia, os poderes estão mais dissiminados, o que é bom em termos de cidadania, mas já não podemos continuar a falar de separação de poderes. Temos de levantar esta questão para procurar uma resposta forte, sendo eu capaz de reconhecer que esta é uma pergunta forte. Mais do que isso: hoje dizemos sistematicamente que a justiça é lenta e que isso tem efeitos profundamente nefastos, nomeadamente em termos do desenvolvimento económico: o investimento estrangeiro não acontece, o investimento nacional é posto em causa porque a justiça não flui... Vamos dar de barato que é assim. Se é assim, isso significa que a justiça é um sector estratégio da actividade do Estado. E se é um sector estratégico da actividade do Estado, onde está a componente política da justiça?

Outra pergunta forte?

Porque um sector estratégico tem uma responsabilidade política. Como coopera com os outros órgãos de forma a assumir essa responsabilidade? Perguntar-me-á se isso põe em causa a independência dos tribunais. Não. Mas obriga-nos a reelaborar sobre ela. O resultado é que como rejeitamos à partida estas questões, porque entendemos que elas põem em causa o essencial, não as fazemos, e ficamos nas medidas em vez de ficarmos nas políticas, e vamos continuar a adoptar medidas para uma realidade que já não existe. Mas este é apenas um exemplo, pode acontecer na educação ou em variadíssimas outras áreas, porque vivemos sobre os paradigmas que fomos instalando enquanto a realidade à nossa volta muda radicalmente e continuamos a exercer a actividade política e do Estado como se nada tivesse acontecido.

Podemos ter um Estado mínimo forte e um Estado máximo fraco.

É a favor de um Estado mínimo ou a favor de um Estado máximo?

Sou a favor de um Estado forte. Podemos ter um Estado mínimo forte e um Estado máximo fraco. Sou a favor de um Estado forte, porque entendo que sem um Estado forte não há democracia saudável e também isso tem de ser discutido e reconceptualizado. Não estou a dizer nada de novo, não estou a inventar nada, não tenho uma ciência que me diz o caminho a seguir. Mas tenho a preocupação enquanto cidadão com o modo como as coisas estão e estou cansado de ver medidas e mais medidas e mais medidas e mais medidas e de estar sistematicamente a fazer as mesmas críticas, sistematicamente a dizer as mesmas coisas relativamente ao mau funcionamento da justiça, por um lado, e da democracia, por outro.

(...) defendi a recondução de Joana Marques Vidal e continuo a acreditar que teria sido a melhor solução

Sobre Joana Marques Vidal: antes de mais, é verdade que a Procuradora-Geral da República que a direita defendia (a recondução) dava mais garantias de combate à corrupção do que a solução proposta por uma maioria de esquerda, uma nova PGR, e que agora vamos ter a bandidagem à solta? Isto faz sentido?

Eu gostava que não fizesse, mas tenho algum receio que faça, embora estas coisas, quando se transformam em epifenómenos, tenham um pico e depois tendam a desaparecer. Tudo vai depender do modo como as coisas correrem daqui por diante. Sobre esta matéria tenho uma posição clara;  defendi a recondução de Joana Marques Vidal e continuo a acreditar que teria sido a melhor solução. Mas não foi o que aconteceu, ponto final. A solução adoptada seguiu todas as vias normais, é uma solução adoptada com toda a legitimidade, quer pela parte do governo, quer pelo presidente da República, e julgo que o que nos deve preocupar agora é criar condições para que a nova Procuradora-Geral da República possa desenvolver o seu mandato tendo em conta aquilo que são as exigências que fazemos a uma magistratura do Ministério Público numa sociedade democrática. Por este motivo gostaria de me conter e de não dizer muito mais sobre isto. E não vou dizer por isto: quando olhamos para o mandato de Joana Marques Vidal é fundamental que tenhamos a consciência de que, inequivocamente, ele foi um mandato que representou mudança. Mudança na percepção pública, mudança na realidade da intervenção do Ministério Público em determinadas áreas, desenvolveu a credibilidade no sistema de justiça através da acção desenvolvida por ela - sendo certo que, como em todos os casos, provavelmente há situações em que se entende que ela podia ter agido de outra maneira, podia ter feito de forma diferente, não discuto isso. Não gosto de endeusar pessoas e não discuto a perfeição das acções. O que sei é que há uma mudança na intervenção da justiça e uma figura que a personifica relativamente à opinião pública. Nesta medida, na minha perspectiva a recondução dela não era, ao contrário do que disse alguém que muito prezo, criar uma heroína judiciária - sou contra a figura dos heróis em política e mais ainda contra salvadores. O que está aqui em causa é o sinal que se dava mantendo-a e o sinal que eventualmente é dado não a reconduzindo. E é nesta diferença, entre uma e outra realidade, que me situei, dizendo que considerava que o primeiro sinal fortalecia a democracia do Estado de Direito, na medida em que fortalecia a confiança dos cidadãos na democracia. Não aconteceu assim, e podemos discutir sobretudo o modo como se fundamentou a não recondução de Joana Marques Vidal. Há pelo menos um aspecto que me parece importante: quer o presidente da República, quer o primeiro-ministro dizem que a nomeação da nova Procuradora-Geral da República representa a continuidade e fazem à anterior Procuradora-Geral elogios pelo menos iguais aos meus. Então, fico com a noção de que não vai haver problema nenhum, a nova Procuradora-Geral é igual a esta e temos o governo e o presidente da República a reconhecerem o trabalho de Joana Marques Vidal. É só uma questão de acabarem com esta luta e agora o que é preciso é transparência e calma para que Lucília Gago possa agir.

Existe alguma forma de fiscalizar o trabalho que está a ser feito?

A justiça tem hoje um problema complicado para o qual também é necessário fazer perguntas - aqui não precisam ser muito fortes. Viemos de um tempo em que a justiça era respeitada porque todos confiavam nela por uma questão de fé. Ora a fé, sem estar com isto a fazer qualquer extrapolação para a fé de dimensão religiosa, em política assenta na ignorância, porque através do conhecimento o que se quer é racionalidade. Acontece que a justiça é respeitada porque se acreditava nela. Com o processo democrático, com a discussão pública das questões da justiça, a justiça começou a ser discutida pelo cidadão comum, cujo conhecimento é maior, mas está muito longe de ser o mínimo para poder ter uma racionalidade crítica. O que temos hoje é uma falta de fé em alguns aspectos e uma falta de conhecimento bastante para poder reconstruir a relação de confiança. Isto gera uma intervenção de certos sectores da comunicação social, que é legítima, e que levou àquilo a que se chama a justiça espectáculo ou a justiça dramática, em que, no fundo, se hipervalorizam os casos de justiça junto de uma opinião pública que está em casa sentada no sofá a fazer o lugar do juiz ou do Ministério Público.

(...) uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena

E esse é um papel legítimo ou não?

A justiça tem de aprender a viver com isto, em vez de fazer o discurso do "nós não temos de dar satisfações a ninguém". A justiça tem de perceber que as pessoas estão interessadas, estão empenhadas e têm uma percepção. O que é fundamental é ter a noção de que a percepção da realidade é uma coisa e a realidade é outra. A certa altura tudo passa a acontecer como se nós tivéssemos de responder às tomadas de posição que vêm da percepção junto da opinião pública. Nesta medida é essencial que compreendamos várias regras; por exemplo, uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena. Por outro lado, e sei que isto é difícil de aceitar, mas seria intelectualmente desonesto se não o dissesse, a justiça, como a saúde, são actividades de risco, e nem sempre tudo corre bem. Há uma dimensão de erro que faz parte do próprio contrato social. Eu, como cidadão, quando transfiro para os tribunais, para o Estado, o poder de condenar ou de absolver, transfiro também a minha aceitação da margem de erro que pode acontecer. Isso não impede que os cidadãos critiquem a justiça e o modo como ela funciona, ou até denunciem as circunstâncias em que ocorrem eventuais erros. O que não se pode necessariamente fazer é extrapolar daí para colocar questões morais ou éticas sobre o funcionamento da justiça e dividir tudo entre bons e maus. Temos de nos habituar a crescer, a ser mais adultos nesta relação e compreender o espírito, não tendo de estar de acordo e tendo o direito de criticar. Veja o exemplo do tribunal de júri norte-americano, normalmente apresentado como exemplo de erros judiciários: condenações à morte de pessoas que mais tarde se verifica não terem praticado qualquer crime, etc. Nenhum americano põe em causa o tribunal de júri. O tribunal de júri faz parte da sua cultura, é uma instituição e é dos americanos, que não abdicam dela e não a colocam em causa. E, todavia, podíamos desenvolver críticas ao seu funcionamento.

Sabemos que as decisões que se tornam públicas são as mais escabrosas, as mais controversas, embora não deixem de ser reflexo dos juízes que temos. Mas já assisti a vários processos-crime económicos e foi confrangedor ver o Ministério Público. Pergunto-me se a preparação da acusação no Tribunal de Menores ou noutros será semelhante.

Precisamos de compreender que a realidade exterior modificou-se muito. Os tribunais têm de perceber como incorporar essa mudança nas suas atitudes, inclusivamente na construção das suas decisões. Não posso falar de casos concretos, mas nada me impede de dizer que como cidadão muitas vezes também fico um pouco perplexo com determinado tipo de fundamento de decisões. Agora, há um aspecto que julgo importante, e aqui os magistrados teriam de colaborar e, provavelmente, até a formação de magistrados teria de caminhar por aí. Há uma tendência para tornar a administração da justiça, a intervenção do magistrado, num compacto de técnica. Evidentemente que a técnica é decisiva e é fundamental que o magistrado seja competente tecnicamente, mas a competência do magistrado vai muito mais longe. Muitas vezes os magistrados, impecáveis do ponto de vista da aplicação da lei, esquecem-se de que aquela sentença é pública e que o público vai lê-la. E para o público seria importante que muita da realidade que não é levada ali lá estivesse, até com uma linguagem menos hermética, para perceber a história no seu todo, caso contrário não compreende a decisão. Talvez valha a pena repensar isto. Julgo que os casos se têm vindo a repetir e que esta é uma  questão essencial e que faz parte da comunicação da justiça. Temos um pouco a ideia de que a comunicação da justiça é saber quem é a pessoa que pega no microfone e vai dizer o que se passou. É importante que isso seja feito, mas a comunicação, sabe melhor do que eu, resulta dos termos usados e da forma como são levados ao conhecimento do cidadão. Nesta matéria penso que temos um grande caminho a percorrer e não nos devemos ficar apenas por dizer que as pessoas não percebem nada disto e não vale a pena dar importância ao que elas dizem. Isto é não compreender a realidade e ficar cada vez mais afastado dos cidadãos.

E sobre a especialização?

A especialização é hoje absolutamente fundamental. Houve um tempo em que eu próprio colocava algumas dúvidas, mas hoje tenho a certeza de que é fundamental, embora entenda que deve ser matizada. A especialização deve existir, mas, de tempos a tempos, com intervalos grandes, é preciso mudar, porque a especialização, mais uma vez, fecha o juiz sobre a técnica. Há, claro, matérias que são essenciais e temos de começar a pensar - isto não é uma crítica ao passado, até porque eu próprio não o fiz enquanto ministro da Justiça - se não fará sentido que em sede de acusação haja assessorias económicas no julgamento. Não podemos partir da ideia de que o magistrado é conhecedor de tudo na dimensão total que estas matérias, cada vez mais sofisticadas, têm. E aqui penso que um especialista faz falta, até enquanto reforço de meios para investigar e desenvolver o processo. Mas percebo que nem tudo pode ser feito de um dia para o outro, conheço bem a diferença que vai entre a facilidade de dizer e a dificuldade de fazer e tenho a obrigação de dar algum benefício da dúvida à dificuldade de fazer porque vivi a prática.

Enquanto ministro da Justiça há alguma coisa de que se arrependa de ter feito ou de não ter feito?

Assim de repente não tinha pensado nisso e não passo a vida a fazer exorcismos. Mas, por exemplo, lembro-me de ter apresentado no parlamento um projecto-lei que, se não estou em erro, foi aprovado por unanimidade – ou, pelo menos, não teve nenhum voto contra –, que era uma grande esperança de que déssemos um grande salto qualitativo na área da justiça económica, que foi a lei de falências e recuperação de empresas; deixava de ser um processo de juiz para passar a ser um processo das próprias empresas e dos agentes envolvidos. Anunciei o projecto com grandes parangonas, uma grande modificação, e no fim não surtiu efeito nenhum. Não é um arrependimento, mas foi um flop.

Pena, pena, verdadeiramente, foi não ter feito uma revisão constitucional, porque aí sim, eu faria as perguntas fortes para obter as respostas fortes

Nessa matéria tenho ideia que os flops foram sucessivos. Passemos ao próximo...

Há um aspecto que tenho muita pena de não ter prosseguido. Não posso dizer que seja um arrependimento, porque a certa altura foram medidos os pratos na balança e eu próprio cheguei à conclusão que, não havendo nenhum apelo para seguir naquela direcção, não fazia sentido aquele caminho. Mas tenho muita pena de não ter introduzido o modelo de organização judiciária assente exclusivamente nos círculos judiciários, que foi sendo feito mais tarde. Hoje as coisas são melhores do que já foram, mas julgo que essa perspectiva naquela altura tinha sido adequada, há muita gente que ainda agora me diz: "Aquele caminho é que era!". Isto não interessa nada, mas no fundo dá-me algum conforto. Tenho pena de não ter tido capacidade política suficiente para envolver os vários agentes e fazer com que convergissem para isso, mas tenho de reconhecer que não fui politicamente capaz de criar esse consenso. Pena, pena, verdadeiramente, foi não ter feito uma revisão constitucional, porque aí sim, eu faria as perguntas fortes para obter as respostas fortes, e desde essa altura que venho dizendo qual o sentido que entendo dever caracterizar uma revisão constitucional. Tenho cada vez mais a noção de que se a revisão constitucional não se fizer dificilmente conseguiremos dar um salto qualitativo fundo na Justiça. Aí já não tenho responsabilidade nenhuma, porque não me cabe a mim fazer a revisão constitucional.

A Justiça tem dentro de si imensos poderes, todos eles autónomos, e cada um deles a querer defender essa autonomia e a afirmação desse poder

Porque é que os partidos não se organizam para fazer a revisão constitucional?

A Justiça tem dentro de si imensos poderes, todos eles autónomos, e cada um deles a querer defender essa autonomia e a afirmação desse poder. É muito difícil passar de um modelo de autonomias rígidas para um modelo de cooperação e de co-responsabilização. E a minha ideia é esta: precisamos de ter um modelo de cooperação e de co-responsabilização que, no fundo, projecte para o exterior a prestação de contas e, ao mesmo tempo, uma transparência do modo como o sistema funciona, em que cada um em vez de criticar o outro se co-responsabiliza pela decisão final, e não este, em que cada um critica o outro e se mantém no seu cargo de afirmação de si próprio. Dou-lhe um exemplo: todos os anos na abertura do ano judicial temos aquela sessão pública que consideramos importante, é uma solenidade importante: fala o presidente da República, fala o primeiro-ministro, fala o ministro da Justiça, fala o bastonário da Ordem dos Advogados, fala o Procurador-Geral da República, fala o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que incorpora um pouco lateralmente o presidente do Supremo Tribunal Administrativo. Cada um deles diz de si, bem, relativamente mal dos outros, todos normalmente menos bem do poder político, e o poder político apresenta todos os anos medidas regeneradoras da Justiça. Acaba a sessão, vão todos embora e nunca mais se encontram até ao ano seguinte, em que dizem a mesma coisa ou coisas parecidas.

Tem uma proposta alternativa?

Proponho que todos eles constituam um conselho superior de justiça, que funcione no dia-a-dia da administração judiciária, não no sentido dos tribunais, mas no sentido da administração do sistema da justiça. Por outro lado, que se perceba de uma vez por todas que quando falamos de justiça falamos de duas realidades diferentes: o poder judicial, o poder soberano e o poder do Estado, e os serviços de justiça e os serviços prestados ao cidadão. Nessa medida, têm de ser desenvolvidas e aplicadas regras de acordo com a organização da estrutura orgânica de gestão, que não se compatibiliza com as autonomias todas que existem actualmente. É possível fazer isto e existem propostas feitas, chegou até a haver uma proposta de revisão constitucional neste sentido, mas não se conseguiu um acordo de todos, mesmo do ponto de vista das instâncias políticas, embora à boca pequena se vá dizendo que o caminho deve ser esse. Ninguém quer assumir a responsabilidade.