1,5 milhas a norte da Ponte da Piedade, 17 milhas a este do Cabo de São Vicente e sete milhas a oeste de Portimão. Aqui fica a cidade algarvia de Lagos. Na aproximação de oeste, as batimétricas dos cinco metros encontram-se a cerca de 400 metros da costa, a norte da Ponta da Piedade. Se o barco vier do lado este deve usar o enfiamento da torre do quebra-mar oeste pela igreja de St. António, 282º. Entrando no canal dragado é importante saber que os molhes têm 70 metros de largura, fundos mínimos de três metros em baixa-mar de marés vivas. A velocidade máxima permitida no canal de acesso e marina é de três nós. Seguindo o canal até ao pontão de 30 metros, junto à receção da marina, é ali que se pede e espera que a ponte levadiça seja levantada.
Por ano, cerca de 2000 barcos seguem estas instruções para entrar e atracar em Lagos. Ali, numa marina afastada das portas do mar e abraçada pela cidade, os mastros sobem à altura dos prédios que a envolvem e servem de pouso às gaivotas, tal como as palmeiras. A água é uma planície e mal se ouve o barulho das embarcações a subir e a descer as pequenas ondas, o ruído dos barcos embalados pelo mar é substituído pelo barulho dos cabos a baterem nos mastros. É como se estivessem parados em terra.
“Pode estar a maior tempestade lá fora que aqui dentro não se passa nada. Temos os mesmos pontões há 25 anos e estão em ótimas condições”, diz-nos Ingrid Fortunato, diretora da marina.
Quem atravessa o canal, antes de atracar a embarcação, passa por uma verdadeira paisagem náutica: o estaleiro da Sopromar, engolido pela imagem das embarcações erguidas por ferros, por baixo das quais vemos os trabalhadores passar na azáfama do trabalho; depois a zona da Docapesca, onde as embarcações de pesca estão atracadas e de onde partem para o mar. Em paralelo, na marginal preenchida pelos turistas, são constantes as bancas a vender viagens até às grutas das redondezas. São barcos que nunca param como, aliás, nunca pararam em Lagos, terra com papel fundamental nas descobertas portuguesas no século XV.
O paradoxo é notório, depois de atravessarmos toda esta zona, a calma da marina abrigada do mar pela cidade.
Quando foi desenhada em 1991, Lagos era completamente diferente. Onde hoje se estende a zona do estaleiro, das embarcações de pesca e da marina existia uma área pantanosa que envolvia a ribeira de Bensafrim. “Quando era pequeno vinha para aqui com o meu avô para a pesca de cana, na maré vazia, quando sobravam só uns bancos de areia, vínhamos apanhar os iscos”, recorda Hugo Miguel Pereira, vice-presidente da Câmara Municipal de Lagos.
A cidade vivia agarrada aquela imagem e, por isso, a decisão de construir ali uma marina viria a ser tudo menos pacífica. “Na altura foi uma grande transformação e houve um grande ruído pela maneira como as pessoas se habituam a ver os seus concelhos e as suas cidades. Houve essa discussão, mas hoje acho que foi uma grande valia. Esta é claramente uma marina diferente das outras, é uma marina de cidade, atravessa-se a rua e vamos comer num restaurante no centro, atravessa-se a outra rua e estamos no mercado de peixe, atravessa-se a outra e estamos na praia”, explica o autarca.
Atravessar a marina a pé é, também, atravessar uma comunidade. Ouve-se espanhol, inglês e francês com a mesma naturalidade com que se ouve português. Há espaços com nomes estrangeiros, canecas de cerveja sobre as mesas, baldes de roupa a serem levados das embarcações para as máquinas da lavandaria self-service. Há pessoas em grupo, com grande familiaridade, como em qualquer outra terra portuguesa.
“Nós temos dois tipos de clientes muito diferentes, o cliente de verão, o típico que vem de férias passar umas semanas, e o cliente de inverno, que para nós é tudo o que não é verão. Depois temos uma comunidade residente que, ou moram a bordo, ou passam muito tempo a bordo, são sobretudo estrangeiros que vêm cá passar um mês ou dois, depois voltam aos países de origem e regressam a Lagos. E isso é realmente potenciado por estarmos no centro da cidade, eles aqui têm uma vida facilitada, tudo a pé”, explica-nos Ingrid.
Os clientes são maioritariamente estrangeiros (60%), sobretudo no inverno, altura em que Lagos é invadida por ingleses, holandeses, franceses, alemães, escandinavos e americanos, ao contrário do verão, em que dominam os portugueses e espanhóis. Na grande maioria, os clientes são pré-reformados e reformados. “Temos bastantes clientes que se conseguiram reformar relativamente cedo, que a partir dos 50 anos já estão nessa situação. Ainda o ano passado tivemos um casal que chorava. Estavam aqui há 15 anos, e, em vez de esperarem até não aguentarem mais, tomaram a decisão consciente de que era altura de voltar para Inglaterra. Eles vieram numa regata, na ARC Portugal, que acaba em Lagos, que começou quando a marina foi inaugurada e que foi mesmo criada para promover a marina de Lagos. Sai do sul de Inglaterra, para em Baiona e depois pára numa série de sítios em Portugal até aqui chegar. Vieram há 15 anos e nunca mais quiseram tirar o barco. Tinham 75 anos e choraram imenso na hora de ir”, conta-nos a diretora da marina.
A história não é única - “temos um turista irlandês que era para ‘passar’ e que ficou quase 20 anos” -, repete-se e repete-se. Há quem pare para reparar o barco na Sopromar e acabe por se enamorar pela cidade, há quem pare porque está de passagem numa regata e acabe por ficar mais um mês, dois meses, três meses. Há quem venha visitar amigos e fique a viver no barco ao lado. As histórias têm diferentes prefácios, mas, diz-nos Ingrid, têm quase sempre o mesmo fim: “dizem que não conseguem sair. Um dia uns clientes disseram-me esta expressão “Porto Velcro”. Eu não percebi, depois é que explicaram que é assim que chamam à marina de Lagos. ‘Chegamos e já não conseguimos sair’, dizem eles a brincar”.
Esta marina não é (só) para ricos
Quem fica preso no “velcro” de Lagos durante vários anos são pessoas de perfil muito diferente, muitas das quais largaram tudo para passar uma longa temporada a viver num barco.
A ideia pode soar exorbitante, sobretudo pelo peso financeiro que a ideia de comprar um barco e atracá-lo numa marina parece comportar, mas tanto Ingrid como Hugo Henriques, administrador da Sopromar, dizem que isso não passa de um preconceito e que ter um barco não é diferente de ter uma casa.
“O mar sempre foi olhado como trabalho e nunca se olhou para o mar como uma parte de nós. Em França, por exemplo, há um rácio enorme de propriedade de barcos, faz parte da vida deles. Os suecos têm imensos barcos, são dos países com um maior rácio de barcos por habitantes e é muito normal fazerem anos sabáticos para navegarem à vontade... e não é porque são todos milionários. Têm uma capacidade financeira superior à nossa, sim senhor, mas não é essa a razão. Em Inglaterra há uma cultura náutica enorme, em Espanha até um bocado mais do que cá. Temos o exemplo dos nossos clientes, os tais que não são só os veraneantes, pessoas que a única coisa que têm é o barco”, explica a diretora da marina.
“É a opção de vida de muitos deles: 'vou chegar aos 50 ou 60 anos, vou reformar-me e vou viver o resto dos meus dias num barco'. Quando chegam a essa idade, acontece muitas vezes as pessoas já terem uma casa muito grande para as suas necessidades, os filhos já saíram de casa, aquilo que têm acaba por ser um exagero e aproveitam essa oportunidade: vendem a casa, o carro e compram um barco. A maior parte dessas famílias já tinha um barco pequeno para passear ao fim de semana e agora decidem começar a passear pelo Mediterrâneo enquanto tiverem saúde para o fazer. É a vida que escolheram, mas não têm outra casa. Acaba por ser uma opção durante aquele período para o qual trabalharam uma vida. Não é um sinal exterior de riqueza nem nada que se pareça”, sublinha Hugo.
É difícil fazer os cálculos, os preços de uma embarcação variam muito conforme a classe, tal e qual os preços da estadia na marina, mas a verdade é que hoje a marina de Lagos tem uma lista de espera que se estende até 2021.
“Nós temos 460 lugares e recebemos barcos até 30 metros. Temos uma lista de espera para embarcações maiores, porque são os lugares que temos em menor número. É muito difícil. Nos últimos dias temos recebido reservas para 2021. Os donos dos barcos maiores têm dificuldades no geral e precisam de começar a preparar as coisas com antecedência”, explica Ingrid.
O grande atrativo que é uma marina inserida na cidade acabou por se tornar numa barreira à expansão da mesma. Mas o difícil, não se faz impossível, conta-nos Ingrid: “Temos um projeto de expansão para a Doca de Pesca, que é onde está a Sopromar e todas as embarcações que trabalham na pesca. Queremos ocupar uma das metades. Percebe-se que, em termos de espaço, aquilo está subaproveitado, está desordenado e fazendo uma arrumação, uma ordenação bem feita, funciona para todas as atividades e ainda dá para ganharmos mais lugares. Estas coisas são sempre complicadas e isto está nas mãos da Docapesca, que é a entidade que nos tutela, quem nos dá concessão e que herdou as coisas do Instituto Portuário”.
A Câmara é a primeira a reconhecer o problema, pela voz do vice-presidente, “é um grande senão. Da maneira que [a marina] está feita, nestes metros quadrados, está limitada. Não se pode ampliar muito mais do que já está”. Ainda assim, o autarca reconhece o potencial da zona tutelada pela Docapesca. “Estamos a trabalhar em conjunto com os parceiros privados, com a Docapesca e com o ministério do Mar para tentar ampliar algumas zonas, beneficiando tudo e todos, [garantindo] todas as condições dos pescadores, da marítimo-turística, da própria marina. E também em conjunto com a Sopromar podemos ter aqui uma melhoria deste ordenamento da zona marítima”, afirma, realçando ainda o desejo de criar ali um centro náutico para melhorar as condições da vela desportiva.
Este plano de reordenação poderá ficar a cargo da autarquia, através do programa de descentralização do Estado, mas Hugo Henriques rejeita um processo apressado numa altura “em que ainda está muita coisa por esclarecer”. Uma das medidas em cima da mesa é precisamente a passagem de algumas zonas sob jurisdição do ministério do Mar, que se fazem através da Docapesca, para a Câmara Municipal de Lagos.
“Devido a toda esta complexidade e todo este conjunto de dúvidas que existem, optámos por em 2019 não aceitar o pacote [de descentralização]. Estamos a trabalhar para que em 2020 isso já possa ser uma realidade e que [o reordenamento da marina da Docapesca] possa passar a ser competência do município. Consideramos que quem está mais próximo das soluções e dos problemas são os municípios, daí que tudo o que possa estar na gestão da Câmara, para nós, está mais bem gerido do que do lado do Estado central. Mas ainda assim, o que nós temos procurado fazer é tentar manter uma boa relação com a Docapesca para que se consiga resolver os problemas um bocadinho a meias. Tentamos encurtar distâncias mesmo sem pacote legislativo. Neste momento ainda está muita coisa para discutir, não se pode dizer que este ou aquele metro quadrado passe para nós”, explica Hugo.
“Ainda é preciso pôr Portugal no mapa”
No estudo “A Economia do Mar em Portugal”, feito em parceria pela EY Portugal e a Augusto Mateus & Associados, que integra na equipa Augusto Mateus, ex-ministro da Economia, publicado em abril deste ano, o turismo náutico é referido como encontrando-se “numa fase emergente no nosso país, estando, no entanto, identificado como área de elevado potencial para o turismo nacional. Ao nível europeu, este segmento turístico já se encontra bem estabelecido, representando uma importante componente do turismo costeiro e marítimo que, de acordo com estimativas divulgadas pela Comissão Europeia, gerou, em 2014, cerca de 20 mil milhões de euros de volume de negócios, empregando mais de 200 mil pessoas.”
No entanto, pode ler-se no estudo, que em Portugal foram “identificados diversos desafios no que concerne a factores como a qualidade das infraestruturas ou a falta de circularidade nas atividades que lhe estão associadas. Adicionalmente, a falta de reconhecimento mútuo entre Estados-membros das diferentes licenças de skipper ou os diferentes requisitos de segurança são importantes factores que condicionam a atuação do Mercado Único. Junta-se a estes aspetos, enquanto problema transversal a todo o turismo costeiro e marítimo, a enorme falta de recolha (e subsequente capacidade de tratamento) de informação estatística que permita o conhecimento da sua realidade e a eficaz tomada de decisões informadas. As perspectivas de futuro para o turismo costeiro e marítimo em Portugal e na Europa dependem fortemente da abordagem de resposta a adotar para os desafios identificados, com destaque para a insustentabilidade a longo prazo dos modelos de negócio de massas/low cost, particularmente na Europa.”.
Para Ingrid, que está à frente da marina de Lagos há 20 anos, o problema do desinvestimento no setor do turismo náutico deve-se a uma falta de especialização. “Durante anos existiu a Junta Autónoma dos Portos, havia o Instituto Portuário do Sul, depois o Instituto de Portugal e dos Transportes Marítimos. Houve uma série de identidades oficiais que nos tutelavam, e embora a maior parte das vezes fosse mais a mudança de nome e de estrutura, nós acabámos por sentir sempre que não havia uma especialização porque estava tudo mais ligado aos portos comerciais”, explica, afirmando que no que toca ao turismo costeiro fala-se mais de surf do que qualquer outra coisa. “Ainda em janeiro a Câmara organizou um seminário sobre turismo náutico, vieram representantes do governo e do Turismo Portugal, e do que é que falaram? Do surf”, exemplifica.
O problema agravou-se nos últimos anos desde que a tutela dos Portos de Recreio passou para a Docapesca, altura em que Ingrid afirma que deixou de “haver uma sensibilização para o que o turismo náutico pode dar ao país - que já está a dar ao país - e o que pode dar mais”. “Voltamos um bocadinho ao tal preconceito de que se calhar isto é só para os ricalhaços e então eles que se amanhem porque o país não se tem de preocupar muito com isso. O grande problema é não teres números, informação identificável que há anos que nos anda a faltar”, remata.
O problema estende-se mesmo até à Associação Portuguesa de Portos de Recreio, que tem grande parte das marinas públicas e privadas como associados. “Mesmo ali as coisas não passam das reuniões. Não há ninguém a divulgar números quando isso era bom para toda a gente”, refere a diretora da marinha.
Num estudo publicado em julho de 2017 pela PwC, “Náutica de Recreio em Portugal - Uma Perspetiva de Procura”, é possível perceber que entre 2011 e 2015, a evolução do número de check-in novos de embarcações em Portugal teve um comportamento sinusoidal, ou seja num ano subia e no outro descia. No entanto, no espaço de cinco anos o aumento de check-in foi muito pequeno, com um aumento na ordem dos 500 passando de 16,8 (milhares), em 2011, para 17,3 em 2016.
Para o administrador da Sopromar, a solução passa por “reaprender e ligarmo-nos ao mar como já estivemos”. “Temos tudo para ser bem-sucedidos nisso, somos um povo que sabe receber, um povo que é muito cordial, que tem muita facilidade nas línguas, é um passo para sermos bem-sucedidos na náutica. Não podemos estar só a olhar para aquilo que fizemos há 500 anos”, sublinha.
É nessa senda que Ingrid Fortunato diz que “ainda é preciso pôr Portugal no mapa”. Numa altura em que o país soma distinções internacionais no setor do turismo, a frase parece soar estranha, mas não para quem vive do turismo náutico. “Falta pôr Portugal no mapa em termos de marinas”, repete.
Ainda em outubro de 2018, na conferência mundial de marinas, que decorreu em Atenas, numa apresentação sobre o estado das marinas à volta do mundo, Ingrid conta que a Estónia foi tido como o país que está a fazer tudo bem - “foi aprender e depois foi pegar no melhor do que viu e juntou tudo” - e Espanha como o pior exemplo. “Mas Portugal estava lá perto”, sublinha, dizendo que o país foi caracterizado como estando ainda “agarrado ao século XX”.
Para alguém que conhece a realidade portuguesa, especialmente estando à frente de uma marina, a imagem traçada é realista. “Mas eles dizem-nos isto até com alguma pena porque eles percebem o potencial que há. No caso de Lagos é sem dúvida a nossa localização, em relação à cidade e em relação ao mar. Geograficamente, estamos num sítio imbatível, toda a gente tem de passar por aqui, os que saem do Mediterrâneo, os que entram no Mediterrâneo… Somos é o porto de muita coisa”.
Como se diz em bom português, Lagos não quer ficar só a ver navios. Quer recebê-los.
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