A rotina de um mágico não é muito diferente de qualquer outra profissão, mas as segundas-feiras são menos difíceis. O desafio é surpreender o público, sempre atento e desconfiado.
O sucesso internacional permitiu-lhe viajar e descobrir casas em diferentes palcos, mas foi em Portugal onde teve mais espectadores. Este ano, 50 mil pessoas viram o Impossível, o último espetáculo em cena.
Suspenso no ar, amarrado com correntes e em chamas, o mágico engana a força, faz desaparecer a ansiedade e solta-se, sem ninguém dar conta. A adrenalina do espetáculo mantém-no vivo como artista.
Como o faz, não sabemos. E é por isso que é o mágico português mais premiado.
No Dia Mundial do Mágico, Luís de Matos senta-se à conversa com o SAPO24 e convida-nos a entrar no seu mundo de ilusões, sem surpresas escondidas na manga.
Estou a falar com um comunicador nato, um produtor também, mas a sua formação começou na Escola Agrária de Coimbra. Como é que a magia e a agricultura se encontram na sua vida, duas áreas completamente diferentes?
A passagem não foi de repente. Eu vou estudar para Coimbra aos 15 anos e, na altura, já tinha a magia como hobby. Percebi que podia permitir que ela ocupasse um espaço maior na minha vida, desde que continuasse a garantir que tinha bons resultados na escola, e essa foi a moeda de troca com os meus pais. Eles foram permitindo que eu tivesse estes devaneios, e olhe, neste caso, ocupa até hoje.
Depois, acabo o ensino complementar e ingresso o ensino superior na Escola Superior de Coimbra e, ao mesmo tempo, vou fazendo séries para a RTP e, portanto, vou-me multiplicando, procurando usar as 24 horas do dia de uma forma mais eficaz do que dedicar uma parte a descansar e outra a dormir condignamente… E, de repente, começam-se a formar aqui dois eixos. Acabo o curso e sou a convidado ficar. Já estava arrumado na vida, já recebia o meu ordenado do Ministério da Educação pela Caixa Geral de Depósitos, era oficialmente funcionário público e tinha a minha profissão. Provavelmente iria continuar a minha carreira académica já a um ritmo mais lento, mas, nessa altura, o que aconteceu foi que as duas vias que me ocupavam os dias - quer a via artística, quer a via académica - estavam a ganhar um ar sólido e cada uma delas queria mais espaço. E eu percebi que ia ter que escolher uma ou outra, para ser honesto comigo próprio.
O que eu queria era poder mudar de opinião a qualquer momento, o que parecia tudo muito utópico. Até que converti este desejo numa espécie de uma fórmula que me permitia ter a hipótese de passados cinco, 10, 15 ou 20 anos, se fosse vivo, que ainda sou, poder trocar de profissão, sem que fosse muito penoso. E pensei: se eu escolher a vida académica, será que daqui a 20 anos posso escolher ser artista? E a resposta é não, isso não funciona. Então vou fazer ao contrário, se eu escolher a vida artística daqui a 20 anos, posso regressar à vida académica? E descobri que sim. Ah, então isto é uma epifania, isto é incrível. Então está escolhido. Eu sei que a qualquer momento, caso a coisa corra mal, já ninguém queira vir aos meus espetáculos ou os meus programas ou caso eu não me sinta bem, posso retomar a carreira académica. Vou ser artista, volto já.
"O maior alívio é ter como profissão uma coisa que te dá prazer".
Isto teve uma consequência incrível na minha vida, que foi a capacidade de dizer que não. Quando eu era confrontado com determinados convites ou ofertas, não tinha a voracidade de dizer que sim a tudo, para crescer e chegar mais longe. E dizia-o com uma certa leviandade, porque sabia que se era para fazer uma coisa que não gostava, então regressava, o que acabou por até hoje trazer alguma tranquilidade àquilo que eu faço.
Mas Coimbra continua a ser uma das muitas casas que foi encontrando pelo mundo, certo?
Sim, eu vivo aqui. Hoje saí de Coimbra às 8h25, às 9h menos cinco sou o primeiro a chegar ao estúdio 33, às 9h chega toda a gente, às 18h saímos e às 18h30 estou em casa. Portanto, isto é um dia normal.
Enquanto filho único, vir viver para Coimbra sozinho no meu caso foi incrível e foi aquilo que melhor me fez. Com 15 anos vai-se para uma cidade com liberdade total para fazer tudo, fazer o que se quer. É meio caminho andado para não se querer fazer nada de mal, porque não se tem ninguém para contrariar. Estava entregue a mim próprio e de facto não saía, e estudava. E isso teve em mim uma forma silenciosa de impregnar muito cedo uma certa responsabilidade muito aliada a essa liberdade de pensamento e ação.
"Ainda agora, no último espetáculo, ultrapassámos os 50 mil espectadores, o que é uma coisa nunca antes vista".
E hoje, passados 40 anos, ainda lá vivo. E tenho muito orgulho em dizer que sou de Coimbra por escolha. Até nasci em Moçambique, e se amanhã me passar qualquer coisa pela cabeça e tiver de viver em qualquer lugar do mundo, por qualquer motivo, fá-lo-ei. Ou seja, não tenho nenhum contrato assinado com Coimbra, mas é uma paixão pela cidade que renovo diariamente.
Além disso, é também uma espécie de porto seguro. Eu passo, se calhar, seis a sete meses por ano fora de Coimbra e fora de Portugal, o que é muito. São mais as vezes em que eu tenho saudades de casa do que as vezes em que digo “estou farto de estar aqui”. E se calhar é também por isso que a nossa relação funciona tão bem.
De onde é que surge todo esse profissionalismo? Desde a capacidade de dizer não, a uma ética de trabalho que persiste desde jovem, em Coimbra?
Seguramente a maneira de ser, a educação, as interações ao longo da vida, mas eu acho que, sobretudo, é outra coisa. Se a um médico morrer um paciente na sala de operações, se um advogado perder uma causa ou se um engenheiro fizer um erro de cálculo numa construção, mas ele for muito bom, a cotação desse profissional continua a ser também ela muito boa. Ou seja, o erro afeta naquele momento, mas não estraga a fotografia. No caso do mundo do espetáculo, eu costumo compará-lo aos gladiadores da Roma Antiga. Os gladiadores lutavam e se perdessem, morriam. Se ganhassem, tinham a possibilidade de, no dia seguinte, voltar ao Coliseu. Até ao dia em que morriam. Eu, sinceramente, acho que a forma como o público nos vê é sempre baseada na última coisa que viu do artista.
"Até porque um dia vai ser o último espetáculo e queremos que o último seja muito bom".
Há uma luta permanente por uma certa sobrevivência artística que implica estar constantemente a tentar ser melhor hoje do que se foi ontem e, idealmente, amanhã voltar a pensar o mesmo. E isso obriga-nos a uma ginástica e a uma frescura que tem uma consequência positiva.
E a adrenalina, nesse esforço, compensa sempre?
Compensa, é um sinal de respeito. Eu fico preocupado se não ficar nervoso, porque, para mim, o nervosismo é sinal de responsabilidade. A altura em que o nosso melhor lado se manifesta é, precisamente, em situações de maior risco, porque temos de agir mais rápido. Não podia haver melhor combustível para a minha atividade do que essa permanente incerteza que faz com que sejamos levados a tentar dar o nosso melhor.
Mas, e quando corre mal?
Lido com a maior naturalidade. Primeiro temos de perceber que as pessoas sabem que quem está a fazer aqueles feitos incríveis é um ser humano, e é isso que torna espetacular. A única coisa que justifica o aplauso é o facto de ser mentira. Se conseguisse prever o futuro, já tinha aberto um consultório. Se conseguisse voar, não andava de carro. Se conseguisse estar em dois lados ao mesmo tempo, marcava reuniões para os mesmos dias, às mesmas horas. O facto de não se conseguir, porque é humanamente impossível, torna espetacular. Improvisos acontecem sempre.
"A altura em que o nosso melhor lado se manifesta é em situações de maior risco".
Quando crio uma ilusão, cada vez que a apresento perante um público, vai ser sempre diferente. Falha sempre. Um amigo meu argentino que já faleceu, dizia “El publico sempre perdonará un error, lo que nunca perdona es el ahorrimiento”. E portanto, é isso mesmo, o público perdoa um erro, o que não perdoa é apanhar seca.
E como é que se criam espetáculos de duas horas sem o público apanhar seca?
Eu não sei como é que se criam, sei como é que se tenta criá-los. O público é o juiz final. Aprendemos com os erros. O Impossível ao vivo que fiz este ano não o poderia ter feito há cinco anos. Porque há cinco anos eu não sabia o suficiente para o fazer como fiz agora.
E é difícil lidar com a ideia de que o público nunca está satisfeito?
Não. Traz-nos um entusiasmo absoluto, porque é sinónimo que está atento. Agora há uma série de espetáculos que acabam sempre com dois prolongados aplausos de pé. No dia em que isso não acontece, vai-se tentar perceber porquê. Essa aprendizagem é um combustível fantástico para o desenvolvimento, a evolução, a superação, para todas essas coisas.
"Tivemos nomeados para o espetáculo mais incrível do ano em França, os Billets d'or, mas não ganhámos".
A idade interfere na capacidade de recriar novos truques?
Até agora não houve nada que eu deixasse de fazer por ser mais velho hoje do que era ontem. Mas sei que, inevitavelmente, isso vai acontecer, espero. Mas, até hoje, não senti na idade um handicap, senti uma virtude. Cada ano que passa, por muito burros que sejamos, aprendemos mais um bocadinho. E ter mais conhecimento faz-nos ser mais duas coisas: mais humildes e mais ambiciosos.
O maior alívio é ter como profissão uma coisa que dá prazer. À segunda-feira de manhã tenho vontade de ir para o trabalho: boa, mais uma semana! E isso tem consequências na minha felicidade.
"A dúvida permanente é: será que vamos estar à altura este ano?"
Quando foi ao Folies Bergère, no final do ano passado, notou que o público parisiense foi muito diferente do público português?
Não, só é diferente porque não me conhece e, portanto, quando vai, não sabe bem o que esperar. Mas, curiosamente, cá em Portugal vamos à Ticket Line, compramos bilhetes, assistimos ao espetáculo e depois dizemos aos amigos se gostámos ou não gostámos. Em Paris é diferente. Compram na Ticket Line lá do sítio, vão ao espetáculo, e quando chegam a casa vão ao portal da bilheteira dizer se aquilo é bom ou não. A consequência foi que nós acabamos, só num dos sites, com 109 críticas, todas de cinco estrelas. E isto foi... ficámos overwhelmed [assoberbados] e agrafados à parede, com vontade de voltar e procurar fazer melhor. Ainda por cima, tivemos nomeados para o espetáculo mais incrível do ano em França, os Billets d'or, mas não ganhámos.
Depois, no regresso, temos um privilégio e um desafio. O privilégio de as pessoas saberem o que nós fazemos. Algumas já gostam há muito tempo e acabam por trazer outras. O desafio é que temos a perfeita noção que, no ano passado, nos viram a fazer o melhor que alguma vez tínhamos feito na vida. E, portanto, a dúvida permanente é: será que vamos estar à altura este ano? Até porque um dia vai ser o último espetáculo e queremos que o último seja muito bom.
São todos esses reconhecimentos que o incentivam a fazer melhor?
É o público, sem dúvida. E é o prazer pessoal que dá.
Sobre o Estúdio 33, em Ancião. Que projeto é este?
O Estúdio 33 é uma consequência da Luís de Matos Produções. Normalmente as pessoas no mundo artístico repartem-se em artista, agente e manager. No meu caso nunca tive nem um agente, nem um manager toda a minha carreira, porque desde o princípio fui recrutando amigos para me ajudarem. Há uma altura em que esses amigos crescem e eu percebo que vão ter de sustentar famílias. E, então, o que fiz foi criar uma estrutura que lhes pudesse dar essa segurança, pelo menos aparente. E eu pudesse continuar a contar com eles. Foi aí que nasceu a Luís de Matos Produções, em 1955. No fundo, é a mesma equipa do início, mas a empresa passou a pagar ordenados, cumprimos o horário e continuamos a divertir-nos. Não somos muitos, somos nove. Só se nota que somos muitos no final do mês.
Depois, tinha este desejo de criar um espaço à nossa medida, onde nós pudéssemos todos trabalhar no mesmo sítio e ser mais eficientes, e então nasce a ideia do Estúdio 33, que desenhei em 2002. Está dividido entre escritórios, uma oficina, onde nós construímos coisas para os próximos espetáculos, testamos, deitamos outras para o lixo, que no final não são tão espetaculares como pensávamos. E depois uma outra sala que é multiuso, onde já gravamos performances de televisão desde 2006. O último programa da RTP3 foi feito em direto a partir desse estúdio.
"Há uma luta permanente por uma certa sobrevivência artística que implica estar constantemente a tentar ser melhor hoje do que fomos ontem e, idealmente, amanhã voltar a pensar o mesmo".
Dentro do Estúdio 33 existem ainda algumas coisas curiosas: uma biblioteca com cinco mil e tal livros de magia, desde o século XVI até à contemporaneidade, que nós usamos para estudar. E tem um jardim, a que nós chamamos Face Garden, que é um mini jardim botânico, onde ainda persiste a minha formação nessa área. As árvores são oferecidas por amigos e, portanto, são catalogadas com três nomes: o nome vulgar, o nome científico e o nome da pessoa que representam.
A produção de espetáculos para televisão é muito diferente da produção de espetáculos ao vivo? Como é que funciona esse processo?
Desde logo, quando nós fazemos um projeto para televisão, há um cliente final. O cliente final é a estação de televisão. E, portanto, tudo aquilo que fazemos é também muito articulado, não só pelo facto de termos esse cliente final, que aprovou ou encomendou uma ideia, mas também por ser aquilo que nós achamos que pode ser o nosso melhor produto. É um meio muito específico onde as pessoas, seja gravado ou em direto, vêem naquele quadradinho que têm em casa. E, portanto, há uma linguagem, uma lógica, um protocolo e há uma forma de fazer magia em televisão.
"O público perdoa um erro, o que não perdoa é apanhar seca".
Ao mesmo tempo que essa especificidade existe na televisão, também existe em relação aos espetáculos ao vivo. Desde logo não trabalhamos para um cliente, trabalhamos potencialmente para milhares de clientes. Ainda agora, no último espetáculo, ultrapassámos os 50 mil espectadores, o que é uma coisa nunca antes vista. 52 271 espectadores no último Impossível ao vivo, isto é absolutamente inacreditável.
E onde foram?
Foi no Impossível . Fizemos uma semana na Figueira da Foz, quatro semanas em Lisboa, uma semana no Porto com oito Coliseus, em que tivemos praticamente sempre esgotados. Portanto, quando chegámos ao final percebemos que passaram por esse espetáculo, ao vivo, 52 271 pessoas e dissemos "isto não está a acontecer, isto é muito bom". Resultado, a malta vai tentar fazer melhor para o ano.
*Entrevista editada por Ana Maria Pimentel
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