"Nós somos responsáveis por aquilo que lá fizemos, e continuamos. Não é pedir desculpa e passou, ficamos amigos, não. O que fizemos lá, nos massacres, teve custos. Há que pagar os custos. Ainda é possível pagar hoje, paga-se. Trata-se de bens que foram espoliados e não foram devolvidos, quando se provou que eram espoliados. Então vamos ver como é que se consegue fazer a reparação disso".

Foram estas as declarações sobre o período colonial, feitas por Marcelo Rebelo de Sousa, a 23 de abril, que levaram o Chega a requerer a abertura de um processo contra o Presidente da República pelos crimes de traição à pátria, coação contra órgãos constitucionais e usurpação.

O que é isto da traição à pátria?

Nos termos do artigo 308.º do Código Penal, comete o crime de traição à pátria, "aquele que, por meio de usurpação ou abuso de funções de soberania: a) tentar separar a mãe-pátria ou entregar a um país estrangeiro ou submeter à soberania estrangeira todo o território português ou parte dele, ou b) ofender ou puser em perigo a independência do país".

O artigo 328.º do Código Penal estabelece que "injuriar ou difamar o Presidente da República" constitui crime de ofensa à honra do Presidente da República e "é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa", e quando "a injúria ou a difamação forem feitas por meio de palavras proferidas publicamente", a pena agravada para "de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias".

No mesmo artigo, prevê-se que "o procedimento criminal cessa se o Presidente da República expressamente declarar que dele desiste".

Feito o pedido pelo Chega, o que aconteceu?

Foi constituída uma comissão parlamentar especial para analisar o projeto do Chega e, nessa sequência, foi redigido um relatório, que viu a luz do dia esta quarta-feira.

Na tomada de posse da comissão parlamentar especial, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, considerou que a natureza desta comissão era relevante pela “gravidade dos factos que estão em causa e que é suscetível de colocar em causa o regular funcionamento dos órgãos de soberania”, o que justifica que todo o processo decorresse “com celeridade, dentro da legalidade”.

O que concluiu o relatório?

O relatório da comissão parlamentar especial concluiu não existirem “quaisquer indícios da prática dos crimes de traição à pátria” ou coação contra órgão constitucional por parte do Presidente da República, ao contrário do que o projeto do Chega defendia.

“Uma vez que o Presidente da República não utilizou as suas funções, com ou sem flagrante abuso das mesmas, para usurpar outros poderes soberanos ou favorecer, de algum modo, qualquer Estado estrangeiro, nem praticou qualquer ato público ou privado com potencialidade de prejudicar a soberania do Estado português, e analisados os tipos penais invocados pelo Grupo Parlamentar Chega, concluímos não existirem quaisquer indícios da prática dos crimes de traição à pátria, coação contra órgão Constitucional ou similares”, pode ler-se na conclusão do relatório a que a agência Lusa teve acesso.

"Não houve tentativa de separação do Estado, de o entregar a um país estrangeiro ou tão pouco de tentar submeter Portugal a soberania estrangeira, em parte ou totalmente, nem foi ofendida ou posta em perigo a independência nacional", refere o relatório redigido pela deputada do PS Isabel Moreira.

Quanto à "Coação contra Órgãos Constitucionais", a relatora conclui: "excluímos este crime de resultado por um critério de evidência. Não encontramos qualquer atuação por parte do Presidente da República que tenha impedido ou constrangido o livre exercício das funções de qualquer órgão de Soberania".

Sobre a "Usurpação de autoridade pública portuguesa", Isabel Moreira escreve que "este artigo também não se encontra preenchido, uma vez que não há registo de qualquer ato de autoridade privativo que tenha sido praticado pelo Presidente da República a favor de qualquer Estado estrangeiro".

Os restantes partidos concordaram com o Chega?

O Chega ficou hoje isolado e foi criticado por todos os partidos pela acusação ao Presidente da República de traição à pátria “sem paralelo” pelas declarações que fez sobre reparações às ex-colónias.

  • Pelo PSD, Regina Bastos defendeu que “a liberdade de opinião é o oxigénio da democracia”, lamentando que haja “temas interditos e censura legitimada para alguns que não conseguem aceitar essa liberdade”. Para o partido, Portugal tem com as ex-colónias uma relação "sem sobressaltos" e "com exemplares relações institucionais", considerando que só com respeito e reconciliação com o passado comum se pode "cooperar e crescer", sendo a cooperação uma "pedra de toque das relações bilaterais".
  • Já pelo PS, Pedro Delgado Alves criticou “mais uma busca desesperada de atenção” e na qual o Chega “procurou clivagem num tema que é difícil e que merecia mais respeito”, acusando o partido de “falta de noção e falta de respeito pela inteligência" do parlamento e do país. Considerando que este agendamento não tem um “pingo de urgência”, o deputado do PS referiu que “Portugal pode ainda não ter feito um debate sobre descolonização como outros países”, mas isso nunca impediu a relação de lealdade e respeito.
  • Paulo Núncio, do CDS-PP, discordou da posição do chefe de Estado, mas não a confunde com um “processo-crime gravíssimo”. “Não perderei um segundo mais com uma iniciativa que é politicamente insana, juridicamente ignorante e institucionalmente infantil”, disse, numa curta intervenção na qual não usou todo o tempo disponível.
  • A intervenção de Joana Mortágua, do BE, gerou um dos momentos mais tensos, quando subiu ao púlpito perante sons da bancada do Chega e perguntou: "é tudo medo?". “O tema das reparações históricas ganhou espaço no debate público. A Europa está a lidar com o seu passado. (...) A escolha que temos de fazer é entre acompanharmos este debate europeu ou ficarmos amarrados à propaganda antiga", defendeu. A bloquista afirmou que se fosse levada a sério esta queixa “o Presidente arriscaria 10 anos de prisão” perguntando se essa “é a pena para quem tem uma opinião diferente” do Chega.
  • Pelo Livre, Rui Tavares disse que os termos usados pelo Chega “indicam um total desrespeito e ignorância sobre a história de Portugal”. Para o deputado, o que Ventura fez do púlpito a dizer que deviam ser as ex-colónias a pagar barragens ou pontes é um discurso que corresponde ao de Putin sobre a Ucrânia.
  • Pelo PCP, António Filipe criticou um debate que só serve para o Chega “ter mais umas horas de tempo de antena nas televisões". “A par da valorização de acontecimentos e processos que se inserem na marcha de progresso da civilização humana, não se pode contemporizar com o branqueamento do colonialismo, da escravatura e do fascismo”, disse.
  • Pela IL, Rui Rocha considerou que há “reparações históricas, reações histéricas e também reações hipócritas”. Nas reações histéricas, está, defendeu, a intenção do Chega de que o “Presidente da República seja condenado a uma pena de pisão entre 10 a 20 anos”, considerando que Ventura “é jurista e tem obrigação de saber da absoluta falta de fundamento do que pretende fazer”.
  • Pelo PAN, Inês Sousa Real acusou o Chega de “usar o parlamento de forma abusiva” e disse que os “50 deputados no parlamento não querem resolver os problemas, só querem escândalos, lutas na lama”.

*Com Lusa