Esta é uma ideia essencial que resulta do documentário, sob a chancela de Panorama BBC e que será divulgado no dia 6 de março, em Portugal, pela TV Cine, data em que o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, declarou Mariupol com o título honorário de “cidade heróica da Ucrânia”.

O filme, um ano após a agressão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro do ano passado, assenta em testemunhos de sobreviventes e vídeos captados pelos seus habitantes através dos seus telemóveis, que, entregues a si próprios e na impossibilidade de cobertura jornalística e ajuda de organizações neutrais, permitiram reconstituir uma batalha fundamental da história desta guerra, que terá custado, segundo estimativas das autoridades ucranianas, a vida de 25 mil pessoas.

Em entrevista à Lusa, Hilary Andersson – com vasta experiência em zonas de conflito, nomeadamente em África, Médio Oriente e Afeganistão, e que lhe mereceu numerosos prémios internacionais – disse que o documentário, que regista imagens do cerco russo em tempo real e impressivos testemunhos de sobreviventes, é equiparável a outros símbolos de horror, como Dresden, na II Guerra Mundial, Sarajevo, no conflito balcânico, ou mais recentemente Alepo, na Síria.

“Mariupol pertence a esse léxico de cidades. É uma coisa triste de se dizer, mas é realmente associável. O que aconteceu tem uma escala sem paralelo na Europa ocidental desde a II Guerra Mundial”, afirmou, destacando que o objetivo foi relatar um acontecimento de “dentro para fora”, com base em quem o viveu: “Foi isso que acabámos por fazer em várias histórias que foram contadas num nível íntimo, dizendo ao mundo neste filme como foi viver a dizimação de Mariupol e como foi sobreviver a essa experiência”.

A produtora do documentário, dirigido pelo repórter da BBC Robin Barnwell, contou que a maioria das imagens dos 90 minutos do filme foi captada pelos próprios habitantes, quando já não havia presença de jornalistas nem organizações neutrais numa cidade flagelada constantemente pelos mísseis russos, “e foi isso que se tentou expor”, numa abordagem “muito rara em termos da extensão do sofrimento, da extremidade da obliteração da cidade e do que isso significava para o que as pessoas passavam”, o que admite não ser tão fácil noutros conflitos, como em África, dada a proximidade da opinião pública ocidental num conflito em plena Europa.

Um dos momentos do documentário, no seu início, é de uma Mariupol com qualidade de vida, atraente e com elevados laços com a Rússia, mas subitamente atacada na crise do Donbass (leste da Ucrânia), em 2014, embora resistindo graças ao batalhão Azov, que constituiu também o último bastião de resistência na siderúrgica de Azovstal no ano passado, com pesadas baixas, até serem mortos ou capturados.

“Foi muito interessante ouvir as pessoas que contribuíram para o nosso filme. Quase todos disseram que cresceram vendo os russos como uma espécie de família, como irmãos e irmãs”, comentou, adicionando que, depois de 2014, e sobretudo após o cerco no ano passado, estas descrições foram transformadas em perguntas: “‘Por que nos odeiam eles tanto? O que lhes fizemos?’ Ouvi isso muitas vezes. ‘Por que estão eles a matar os civis?’ ‘Porquê, porquê, porquê?'”.

Este cenário durou mais de dois meses, amplamente registado no documentário, que toma como base o sofrimento dos civis: “As pessoas perderam as suas famílias, perderam tudo. As suas casas, os seus empregos, os seus amigos, a sua cidade, a sua vida”, descreveu Hilary Andersson, que duvida que aqueles habitantes, mesmo em segurança, na Ucrânia ou fora do país, recuperem totalmente, porque “este é um evento de vida crucial para todos”.

A produtora recorda a história de Hanna, que esteve protegida em Azovstal, e agora se encontra em Berlim com um filho pequeno. O marido, no momento da entrevista, era prisioneiro de guerra: “Todos os dias ela pensa nele, preocupa-se com ele. O seu filho não tem um pai presente. Não sabe se vai vê-lo novamente, se foi torturado”.

Cada história é a de cada um, e no documentário são vastas, de “vários traumas diários para ultrapassar”, como Olga, presa nos escombros após um ataque durante uma noite e meio dia até ser resgatada.

“Ela pensou que ia perder a perna. Vive nos arredores de Amesterdão, estou em contacto regularmente. É uma mulher maravilhosa. Tem dois filhos adultos, que são capazes de mantê-la sã”, embora tenha perdido cinco membros da sua família no espaço de alguns dias em Mariupol, incluindo o seu marido e os seus pais e a sua irmã e o cunhado. “Ela ainda nem está pronta para a terapia. Está tudo muito ‘cru'”.

“As repercussões são enormes, até no seu núcleo absoluto. Tiraram as bases das suas vidas e essas pessoas, como Olga, estão apenas a tentar descobrir como passar o dia seguinte sem entrar naquele espaço escuro profundo do imenso e indescritível trauma real”, prosseguiu a produtora, apontando apenas alguns exemplos de muitos exibidos no documentário, de habitantes comuns que subitamente tiveram de se limitar a sobreviver e a conviver com a morte espalhada pelas ruas, ignorando se seriam as próximas vítimas da destruição total, fome e abandono.

Muitos dos documentados no filme conseguiram escapar da morte, graças a um corredor humanitário com o contributo da ONU, mas outros ficaram na cidade, alguns por incapacidade, outros por convicção, “que sempre apoiaram os russos e ainda apoiarão”, apesar do que aconteceu.

“Eles têm uma visão diferente, estão a reconstruir uma cidade que tomaram e que veem que é legitimamente deles, para que essa versão dos eventos seja encoberta”, explicou Hilary Andersson, recordando que a limpeza dos corpos durou da primavera até ao verão, tal como tentar fazer as escolas funcionarem novamente, e haver comida.

A outra parte da história, continuou, é de “pilhas de corpos” que viu em fotos, as quais nem sequer podem ser publicadas. “São tão horríveis. As ruas cheiravam a cadáveres durante partes do verão. Havia locais de sepultamento em massa nos arredores da cidade”, descreveu.

Pessoas mais velhas nasceram ainda na União Soviética e permanecem em Mariupol: “Uma população relativamente menos saudável que ficou para trás e que agora está a passar por todas as dificuldades de viver numa cidade que foi praticamente reduzida a escombros. A verdade da situação é que é horrível”.

Após o ataque è maternidade de Mariupol, em março do ano passado de que resultaram vítimas mortais, a propaganda russa sugeriu que se tratou de uma encenação com atrizes, além de usar argumento da utilização de instalações civis como escudos humanos para os militares ucranianos.

Hilary Andersson relatou que a sua equipa discutiu este tema com muitas pessoas, entre equipas médicas e pacientes no dia daquele ataque, concretamente sobre uma mulher chamada Irina, “uma das imagens mais icónicas da guerra, em que ela é retirada do hospital numa maca, bastante grávida com a mão na barriga”.

Segundo a investigação da BBC, Irina não era nenhuma atriz, mas uma empregada numa loja de roupa e o seu marido está agora no País de Gales. Deveriam ser ambos pais de um rapaz, mas a mulher e bebé morreram no ataque.

Nas conversas com a mãe, segundo os médicos entrevistados, ela chegou a pedir para não ser salva, e essas palavras indiciam algo “horrível demais, numa ferida devastadora e tudo era apenas pesadelo”.

Quando Moscovo insinua que se tratou de uma encenação, para a produtora da BBC, é tão “abusivo como ultrajante”, tal como celebrações russas, inclusive concertos recentes em locais que configuram prováveis cenários de crimes de guerra, como o ataque ao teatro da cidade, onde se encontravam milhares de desalojados à espera de um “corredor verde” de evacuação, embora devidamente identificado, até na visualização aérea de que se tratava de um edifício humanitário de acolhimento de civis, incluindo crianças.

Hilary Andersson mantém contactos com as suas fontes do filme e “cada uma delas que viu o filme respondeu dizendo que choraram quando assistiram”, achando que era “muito difícil de assistir e muito realista”, embora fosse “o que realmente foi”.

Apesar da dificuldade em visualizar este testemunho duríssimo, disse a produtora, estão gratos porque “querem que o mundo saiba” o que se passou em Mariupol.