Em Braga, na Paróquia de São Jerónimo de Real, os Amigos do Convento — um projeto cívico de cariz cultural — continuam as iniciativas para reabilitar o Convento de São Francisco e não deixar esquecer as memórias dos que por ali passaram — e até dos que por ali ficaram, como é o caso de São Frutuoso, bispo do século VII cujas relíquias chegaram a ser roubadas de São Frutuoso de Montélios para irem até Santiago de Compostela. Como o bom filho a casa torna, o Santo acabou por regressar, mesmo que para isso fossem precisos mais de 800 anos.

Depois de, em março deste ano, se ter começado a gravar a cinzel as armas de D. Diogo de Sousa, arcebispo que mandou construir o Convento de São Francisco, na altura com o nome de Convento de São Frutuoso, chegou a hora de ser feita a apresentação oficial da obra.

No passado sábado, durante a apresentação e entrega da Pedra de Armas à Paróquia de São Jerónimo de Real, organizada juntamente com a Direção Regional de Cultura do Norte, no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, os Amigos do Convento lançaram mais um desafio: gostariam que o Mausoléu de São Frutuoso seja classificado como Património Mundial da Humanidade.

Critérios da UNESCO "para a avaliação do valor universal excecional"

Segundo a UNESCO, "o Comité considera que um bem tem um valor universal excecional se esse bem responder pelo menos a um dos critérios que se seguem":

(i) representar uma obra-prima do génio criador humano;

(ii) ser testemunho de um intercâmbio de influências considerável, durante um dado período ou numa determinada área cultural, sobre o desenvolvimento da arquitetura ou da tecnologia, das artes monumentais, do planeamento urbano ou a criação de paisagens;

(iii) constituir um testemunho único ou pelo menos excecional de uma tradição cultural ou de uma civilização viva ou desaparecida;

(iv) representar um exemplo eminente de um tipo de construção ou de conjunto arquitetónico ou tecnológico ou de paisagem que ilustre um ou mais períodos significativos da história humana;

(v) ser um exemplo eminente de implantação humana tradicional, da utilização tradicional do território ou do mar, que seja representativo de uma cultura (ou culturas), ou da interação humana com o meio ambiente, especialmente quando este último se tornou vulnerável sob o impacto de uma mutação irreversível;

(vi) estar direta ou materialmente associado a acontecimentos ou a tradições vivas, ideias, crenças ou obras artísticas e literárias de significado universal excepcional (o Comité considera que este critério deve de preferência ser utilizado conjuntamente com
outros);

(vii) representar fenómenos naturais notáveis ou áreas de beleza natural e de importância estética excepcionais;

(viii) ser exemplos eminentemente representativos dos grandes estádios da história da Terra, nomeadamente testemunhos da vida, de processos geológicos em curso no desenvolvimento de formas terrestres ou de elementos geomórficos ou fisiográficos de grande significado;

(ix) ser exemplos eminentemente representativos de processos ecológicos e biológicos em curso na evolução e desenvolvimento de ecossistemas e comunidades de plantas e de animais terrestres, aquáticos, costeiros e marinhos;

(x) conter os habitats naturais mais representativos e mais importantes para a conservação in situ da diversidade biológica, nomeadamente aqueles em que sobrevivem espécies ameaçadas que tenham um valor universal excecional do ponto de vista da ciência ou da conservação.

Além de todos estes pontos, "para ser considerado de valor universal excepcional, um bem deve também responder às condições de integridade e/ou de autenticidade e beneficiar de um sistema de protecção e gestão adequado para assegurar a sua salvaguarda".

"Mais do que uma mera apreciação subjetiva da nossa parte, o desafio que lançámos baseia-se na factual constatação de que o Mausoléu de São Frutuoso (exemplar único da arte romano-bizantina no país e considerado um dos mais fascinantes monumentos altimediavais da Península Ibérica) cumpre com mais do que um dos critérios definidos pela UNESCO para a atribuição da distinção", adianta ao SAPO24 Pedro Campos, fundador dos Amigos do Convento.

"Não é, portanto, uma simples questão de vontade dos Amigos do Convento, mas antes de factualidade, de realidade. E, assim sendo, também de uma singular oportunidade de trazermos para a luz um património cujas irrepetíveis feições materiais e imateriais, ilustrando um determinante período da nossa história coletiva e testemunhando o decisivo papel na sua construção, não configuram menos do que Património da Humanidade", completa.

E o discurso proferido há dias, a que o SAPO24 teve acesso,  realçou isso mesmo. "Há cinco séculos, D. Diogo de Sousa criou a Paróquia de São Jerónimo de Real (ato esse precursor da Freguesia de Real) e mandou erguer o Convento de São Francisco, na altura com São Frutuoso como orago. Passado todo este tempo, ele, que do lado de lá nos acena e no nosso espírito persiste, terá agora nela, Paróquia, e nele, Convento, através dos nossos graciosos préstimos, uma bonita Pedra de Armas, esculpida a cinzel como antigamente. Tudo isto por entendermos que os benefícios recebidos, como sentenciou o filósofo Séneca, devem ser entregues à memória eterna e desta nunca devem cair, mas sim nela devem estar sempre vivos", foi referido.

"E porque o que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura, como escreveu Miguel Torga, aproveitamos esta solene ocasião para lançar um público desafio: que se mobilizem vontades e esforços com vista à classificação do Mausoléu de São Frutuoso (Monumento Nacional desde 1944), que D. Diogo de Sousa também cuidou de cuidar, como Património Mundial da Humanidade", anunciaram os Amigos do Convento.

Todavia, o grupo sabe que este é "um processo muito complexo e de extrema morosidade", que pode demorar "mais de uma década, certamente".

"Mas dúvidas não temos que uma eventual classificação de Património Mundial da UNESCO permitiria aos bracarenses estreitar laços com o lugar onde um dia o Santo escolheu ser sepultado e, claro está, promover uma maior consciencialização e conhecimento acerca da importância de São Frutuoso". Além disso, tal classificação poderia também trazer "certa projeção e valorização do território e dos impactos turísticos".

"Dada a importância de que se reveste do ponto de vista histórico, cultural e patrimonial (e, obviamente, espiritual), o legado de São Frutuoso pode e deve ser enaltecido a todos os níveis e não há outra forma de o fazer senão fazendo-o – e fazê-lo é fazer-lhe justiça. Para já, no âmbito da nossa missão, lançamos a ideia nunca perdendo de vista que caminhar é já destino e que qualquer caminhada que ela seja começa sempre com um primeiro passo. Que o queiram todos! – como D. Diogo de Sousa, certamente, se aqui connosco estivesse, quereria", remataram os Amigos do Convento.

Na cerimónia foi também assinado um documento que formalizou a doação das armas do arcebispo pelos Amigos do Convento à Paróquia de Real.

"A Pedra de Armas que os Amigos do Convento hoje oferecem à Paróquia de Real constitui um tributo e um gesto de gratidão a Dom Diogo de Sousa, cujo legado, tanto tempo já passado, não nos deixa de deslumbrar. Da autoria do artesão Mário Martins, destina-se a ser colocada no Convento de São Francisco de Real, obra que o Prelado há cinco séculos mandou erguer com São Frutuoso, então, como orago. Benzida foi a Pedra de Armas no dia 15 de julho deste ano, em Esposende (na terra onde a cinzel foi esculpida), por Dom José Cordeiro", lê-se no início desse documento também disponibilizado ao SAPO24.

Quanto à pedra, neste momento em exposição no museu de arqueologia, esta vai ser descerrada no Convento de São Francisco no dia 14 de dezembro, altura em que se encerram as celebrações dos 500 anos da Paróquia de São Jerónimo de Real e da freguesia de Real.

Já no que diz respeito às obras de reabilitação no Convento de São Francisco, prevê-se que sejam concluídas entre dezembro deste ano e janeiro de 2024. De recordar que, no início da 2020, a Câmara Municipal de Braga viu aprovada a candidatura submetida para a conservação, valorização e promoção desse espaço. Com um investimento total de cerca de 2,5 milhões de euros, a intervenção arrancou em fevereiro de 2022.