Em entrevista à Lusa, o anestesista e intensivista de 38 anos falou sobre as experiências, dificuldades e a gestão do medo nas várias missões que fez, em países como a Síria, Afeganistão, Iraque e a República Democrática do Congo.
“A ajuda humanitária precisa de pessoas profissionais. O voluntariado é muito importante por proximidade, nos equilíbrios sociais duma cidade, em que uma pessoa ajuda quem está ao lado. Este tipo de ajuda [humanitária] tem de ser dada por profissionais senão não fazem as coisas bem feitas. Por isso é preciso muito dinheiro, compromisso e experiência. As pessoas têm a ideia de que vão para África com as mãos no ar, salvar o mundo numa semana ou duas e isto não existe”, afirmou.
Admitiu estar a ser “incisivo” na crítica ao voluntariado para explicar o seu ponto de vista sobre o apoio que defende ser necessário dar em zonas de grande conflito, designadamente a organizações não governamentais, como os Médicos Sem Fronteiras, instituição com a qual fez quase todas as missões em que participou.
“[As pessoas] não dão dinheiro porque não sabem o que [as organizações] fazem com ele. Não podemos viver neste clima de suspeição, são organizações muito sérias que fazem auditorias com as maiores empresas do mundo. Há de sempre haver casos, erros estratégicos, investimentos feitos que correram mal, roubos que ocorreram no local ou situações fora do controlo, mas são organizações sérias e que em circunstância alguma funcionam sem a dádiva de quantias monetárias, quer individuais, quer de empresas ou governos”, explicou.
Para Gustavo, “mandar roupa ou comida é [apenas] uma agulhinha naquilo que é preciso ser feito”.
O médico estreou-se em missões humanitárias em 2009, na República Democrática do Congo, depois seguiu para o Paquistão, um país “muito heterogéneo”, onde enfrentou o “contexto mais duro e intenso em termos sociológicos e clínicos, fruto da ignorância”.
Exemplificou com a história de uma mulher grávida que morreu, juntamente com o filho, porque o homem que a acompanhava não deu autorização para uma fazer uma cesariana.
Nestas missões, os médicos estrangeiros têm um conjunto de regras às quais se têm que adaptar, sendo que as médicas estrangeiras, por exemplo, “não podem falar alto, fumar, correr, têm de estar de cara tapada e não podem olhar um homem nos olhos”.
“Enquanto estrangeiros, ainda que estejamos ali para salvar a vida daquela população, estamos a ser observados, avaliados e aceites ou não a todo o minuto. Isto faz com que o ar fique mais pesado para se respirar. Sabemos que rapidamente poderemos por todo o projeto em risco, o que significa muitas vidas. É nessa medida que digo que [o Paquistão] foi o mais difícil”, contou.
Na Síria, Gustavo chegou a falar indiretamente, através de um tradutor, com doentes que pertenciam à Al-Qaeda e confessou ser “estranho estar a salvar a vida a alguém que tem uma má índole” ou que, em circunstâncias diferentes, lhe quisesse fazer mal.
“Como médico sou uma máquina, não tenho sentimentos, não faço julgamentos, atuo. Como pessoa tenho reflexões. Estas pessoas vão ficar a pensar que houve ocidentais que lhes salvaram a vida e tenho a certeza de que isto tem um impacto no resto da vida deles. Acho que este é segredo da ajuda humanitária como solução para os problemas, esta interação com as pessoas, porque no fundo somos todos iguais. O facto de estarmos tão distantes um dos outros é que nos faz criar alguma crispação”, considerou.
O médico revelou que gere o medo com o “estar lá e perceber que não é o bicho de sete cabeças que pode parecer” e que, ainda assim, os medos que tem “são superados pelas motivações”, porque a vontade de ajudar “consegue eliminar os medos”.
“Pode parecer utópico, mas trabalho a minha cabeça no sentido da minha vida não valer mais que a dos outros. Se eu tenho a capacidade de salvar vidas não posso achar que só porque corro algum risco vou deixar de o fazer, quando a minha presença lá tem um impacto direto em tantas vidas e indireto em muitas mais”, sublinhou.
Até quando vai continuar a participar em missões não sabe, mas assegurou que “a vontade de desistir não existe” e que é “impossível deixar de querer ter um papel ativo, seja de que forma for”, mantendo a esperança de não perder o “idealismo e a vontade" em contribuir para "um mundo melhor”.
“O meu propósito é fazer parte da paz”, concluiu.
O médico apresenta no sábado, no Porto, os seus livros "O mundo precisa de saber" e "1001 cartas de Mosul", na Faculdade de Medicina, obras que surgiram após as suas experiências em missões humanitárias.
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