No ano passado havia 52652 médicos registados na Ordem dos Médicos em Portugal, mais mulheres do que homens, uma diferença de cerca de 5 mil. Actualmente há quase tantos médicos com mais de 65 anos (9267) como com menos de 31 anos (9833) e na proporção inversa do sexo, ou seja, se antes mais de 6 mil eram homens, hoje mais de 6 mil são mulheres. Mas a questão não está no género e sim no gap que existe entre a geração mais nova e a mais velha e nos problemas que isso traz ao sector a dois níveis: o da formação, que começa a ser deficiente – não há médicos suficientes para formar tantos jovens – e o da sobrecarga das urgências nos médicos mais velhos – sob pena de os serviços estrangularem e entrarem em colapso.

Miguel Guimarães, 56 anos, cédula profissional n.º31852, foi fundador da Associação Nacional de Jovens Médicos. Hoje é bastonário da Ordem dos Médicos e já cumpriu quase dois terços do seu mandato. Então como agora continua a defender mais e melhor formação, um dos principais problemas com que a saúde se debate: "A situação tem de mudar".

Especialista em Urologia, acredita que um dos motivos que leva os jovens médicos a sair do país ou a optar pela clínica privada é a falta de um projecto e a falta de acesso às mais modernas tecnologias, aquelas com que aprendem a trabalhar e que, afinal, acabam por não poder aplicar no doente porque o SNS não investe em equipamentos. Os salários, claro, também contam: "No ano passado o governo gastou 120 milhões na contratação de serviços médicos em regime de outsourcing. Esse dinheiro podia ter sido gasto a formar médicos para ficarem nos quadros".

O retrato da saúde portuguesa traçado pelo bastonário da Ordem dos Médicos, que critica o modelo de contratação pública, que compreende que mais de metade dos médicos que trabalham no SNS também trabalhem no privado e que garante que as ameaças dos médicos são gritos de alerta: "As coisas não estão bem".

Os números são importantes para fazer o retrato do sector da saúde em Portugal, mas sabemos que cada instituição divulga as suas estatísticas. Que números tem a Ordem dos Médicos?

Há factos objectivos, os números são um deles. E só há uma plataforma com números oficiais, a DGAEP – Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público. É lá que está publicada a remuneração média mensal dos médicos e só a partir desses valores podemos falar seriamente. O resto não são tabelas remuneratórias dos médicos, são valores salariais; uns ganham mais, outros ganham menos.

Mas há empresas privadas que trabalham com base nesses e noutros números e chegam a resultados diferentes, assim como existe o gabinete de estatística da União Europeia [Eurostat] ou a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

Isso da OCDE...

"Não há 4,4 médicos por mil habitantes em Portugal, apesar de haver uns departamentos oficiais do Estado que têm para lá uns funcionários, uns secretários, que enviam uns números para outros funcionários"

Não conta?

Em termos de remuneração dos médicos não conheço os dados, conheço os números da Federação Europeia dos Médicos Assalariados. E, como imagina, os números da OCDE são completamente irrelevantes. Quando a OCDE diz que há 4,4 médicos por mil habitantes em Portugal, isto vale zero. Não há 4,4 médicos por mil habitantes em Portugal, apesar de haver uns departamentos oficiais do Estado que têm para lá uns funcionários, uns secretários, que enviam uns números para outros funcionários da OCDE. Depois, claro, lá vêm as pessoas dizer que há médicos a mais, outras que temos médicos a menos, mas no ranking da OCDE lá está Portugal no terceiro ou quarto lugar em número de médicos por mil habitantes. Falar de cor é fácil.

Quantos médicos há em Portugal?

Não vale a pena inventar números, está tudo no site da ACSS [Administração Geral do Sistema de Saúde] - podem variar um pouco, porque há médicos que se vão reformando, que morrem ou que vão para fora do país e os dados não são actualizados imediatamente. Há quatro semanas trabalhavam em Portugal, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), 18388 médicos especialistas e 9996 internos. Haverá para o dia de hoje alguma diferença, mas será sempre mínima. Ou seja, para ser correcta, e porque o que está na Constituição é que o SNS é teoricamente para 10 milhões de portugueses, a OCDE teria de dizer que temos 1,8 médicos especialistas por mil habitantes. E aí estaríamos na cauda da OCDE. Também não sei se incluem ou não os médicos com mais de 70 anos, por exemplo, como não especificam quantos médicos trabalham no SNS e quantos trabalham no privado, quando o sistema público é, por lei, tendencialmente gratuito. Também seria importante dizerem quantos médicos formamos por ano. Ou seja, as contas da OCDE não são claras, o que me levou a escrever uma carta ao responsável por esta nomenclatura a explicar que, no caso de Portugal, talvez seja preciso fornecer mais alguns dados para podermos tirar conclusões.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Também há clínica privada. Quantos médicos há em Portugal no sector privado?

Portugal tem mais cerca de 13 mil médicos no sector privado.

Porquê separar SNS e clínica privada? Os utentes também vão a hospitais privados, há convénios com seguradoras, com o Estado. É bastonário da Ordem dos Médicos do SNS ou bastonário da Ordem dos Médicos simplesmente?

Sou bastonário da Ordem dos Médicos e represento todos os médicos. No entanto, a verdade é que, devido às condições de trabalho, a maior parte das queixas que chegam ao bastonário são do sector público, que nos últimos anos tem vindo a estar cada vez mais condicionado pelo investimento e não tem autonomia nem flexibilidade de gestão. Os médicos não estão todos no SNS e nem todos são especialistas, mas não têm todos o mesmo peso em termos de autonomia no exercício da sua profissão - têm autonomia como médicos, mas não podem assegurar sozinhos um bloco operatório e por aí adiante. Mas, deixe-me dizer-lhe, estou agora a preparar-me, pela primeira vez na história da Ordem dos Médicos, para fazer visitas às urgências de hospitais privados. Recebi uma série de denúncias e quero saber o que se passa in loco.

"Quando falamos de serviço público há uma grande deficiência ao nível de equipamentos, de dispositivos e de materiais, e é evidente que os médicos não estão satisfeitos"

Quais são exactamente as queixas dos médicos em relação ao Serviço Nacional de Saúde?

Não têm as condições adequadas para o exercício da sua profissão. E estas condições têm vindo a fazer sofrer os hospitais, os centros de saúde e há serviços que estão tecnicamente desactualizados, como alguns que visitei recentemente em Beja. Sabe, a medicina deve ser das áreas do conhecimento que evolui mais depressa; uma TAC [Tomografia Axial Computorizada] hoje não tem nada a ver com uma TAC de há dez anos, quer em termos de fiabilidade dos cortes (permite ver as áreas cobertas em muito mais detalhe), quer em termos da radiação que emite (há dez anos a radiação era tão elevada que aparecia em 10.º lugar em termos de sinais de alerta das organizações internacionais, sendo que em primeiro estavam as centrais nucleares). Ou seja, quando falamos de serviço público há uma grande deficiência ao nível de equipamentos, de dispositivos e de materiais, e é evidente que os médicos não estão satisfeitos. Isto vem-se arrastando há anos, não é uma coisa deste governo, não começou agora, é bom que se diga. O que acontece é que agora as coisas também não estão a ser resolvidas...

"Em Gaia há um angiógrafo para partilhar por três especialidades, duas das quais são referência na região norte. Se tiverem - e às vezes acontece – dois ou três doentes ao mesmo tempo, pode ser fatal"

Começou quando?

Começou no tempo do governo do Eng.º José Sócrates. O investimento praticamente parou há uns anos, o que existe é apenas um investimento pontual. Falo naquilo de que os médicos precisam para exercer a sua actividade, alguns equipamentos estão obsoletos. Compra-se uma ou outra máquina, mas o investimento é claramente insuficiente. Aliás, no ano passado o governo tinha até pensado reservar uma verba suplementar para substituir equipamento ultrapassado, mas depois nada disso andou para a frente. Portanto, ainda temos hospitais com muitas dificuldades e com falta efectiva de equipamentos como ecógrafos, angiógrafos e outros. Em Vila Nova de Gaia [Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho] há um angiógrafo para partilhar por três especialidades, duas das quais são referência na região norte, que é o caso de cardiologia (enfartes do miocárdio, etc.) e neurorradiologia. Se tiverem - e às vezes acontece – dois ou três doentes ao mesmo tempo, pode ser fatal. É complicado, deviam ter, no mínimo, dois angiógrafos. As ecografias a mesma coisa. Em Beja a cirurgia geral precisava de ter acesso a laparoscopia avançada (três dimensões), sobretudo quando se trata de operações mais complexas, e não é possível. Pensamos nisto pelo doente, mas também pelos médicos.

"É difícil fixar jovens médicos nas zonas mais carenciadas. (...) O principal factor que leva os médicos a optar por Portugal ou a ir para o estrangeiro é um projecto de trabalho, é terem acesso à tecnologia que aprenderam como internos para poderem aplicar nos doentes."

Pelos médicos em que sentido?

Porque assim é difícil fixar jovens médicos nas zonas mais carenciadas. Estes jovens optam pela medicina privada ou por sair do país para poder exercer as suas especialidades. Isto não é uma brincadeira, é uma coisa séria; não estou a falar de duas ou três dezenas de médicos, estou a falar de várias centenas de milhar. É normal, se aqui não têm as condições de trabalho essenciais para o exercício da profissão. O principal factor que leva os médicos a optar por Portugal ou a ir para o estrangeiro é um projecto de trabalho, é terem acesso à tecnologia que aprenderam como internos para poderem aplicar nos doentes. Se depois têm um doente com cancro e não podem fazer uma laparoscopia avançada por falta do material adequado, é frustrante. Mas isto é só um exemplo. A questão dos equipamentos, de ter os materiais clínicos adequados, é um princípio fundamental e que tem sido altamente prejudicado. Esta é uma parte.

"No ano passado o Estado terá gasto 120 milhões de euros na contratação de serviços médicos a empresas em regime de outsourcing"

Qual é a outra?

A segunda parte é a falta de recursos humanos, que é assustadora. Vou dar-lhe um exemplo: no ano passado o Estado terá gasto 120 milhões de euros na contratação de serviços médicos a empresas em regime de outsourcing. Ou seja, contratámos recursos médicos fora porque o Serviço Nacional de Saúde não tem médicos suficientes para assegurar os serviços de que precisa, depreende-se. Mas um médico que esteja a trabalhar no hospital de Beja [Hospital José Joaquim Fernandes], pode ir fazer uma urgência ao hospital de Évora [Hospital do Espírito Santo]. Ou seja, o modelo de contratação está distorcido. Se o governo tem 120 milhões de euros para gastar num ano em prestação de serviços médicos, poderia antes aplicar esse dinheiro em médicos que poderiam estar a trabalhar em equipas do SNS, a dar formação, a aumentar a capacidade de Portugal para ter mais médicos especialistas. Isto é muito importante, porque vai aumentar a qualidade daquilo que é feito. Além disso - dados oficiais da DGAEP -, revelam que a remuneração média de um médico inclui 21,5% em horas suplementares, também chamadas horas extraordinárias.

Qual o significado das horas extraordinárias, que leitura faz?

Pode significar que em situações verdadeiramente extraordinárias os médicos têm de fazer mais um serviço num hospital. Os funcionários públicos estão limitados a fazer 150 horas extraordinárias por ano. Que eu saiba, no SNS os médicos fazem muito mais do que 150 horas extraordinárias por ano e têm de as fazer.

Porquê?

Porque não há médicos. Faltam médicos para assegurar os serviços de urgência do SNS da forma como eles estão organizados, para assegurar os serviços dos hospitais, e também os cuidados primários de saúde; os centros de saúde não têm médicos de família, há entre 830 mil e 850 mil utentes sem médico de família e os médicos não querem fazer parte deste sistema, não querem fazer horas extraordinárias, não querem fazer urgências. Não querem. Convido-a para vir ver uma urgência, para ver um médico a ter de pegar em macas, a fazer coisas que não lhe competem porque não há recursos humanos suficientes...

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

De facto, nunca vi isso.

Pois, mas quando eu fazia urgências no Hospital de São João – enquanto bastonário não tenho a mesma hipótese - isso era o dia-a-dia. E nem estou a falar dos doentes que vão às urgências hospitalares quando deviam ir aos cuidados de saúde primários, obviamente também por culpa de quem tem responsabilidades políticas directas nesta matéria. Porque, vamos ser objectivos, não há educação neste sentido: as pessoas quando têm uma dor aguda não sabem se é uma coisa urgente ou se podem esperar, não conseguem distinguir os sintomas e vão ao hospital, mesmo que isso signifique ficarem horas à espera. Sabem que vão fazer uma série de exames e ser vistas por especialistas e isto descansa-as, mas é mau para o sistema. Posto isto, os médicos têm de facto uma grande pressão: são poucos, estão a fazer demasiadas horas extraordinárias e não as querem fazer. É frequente terem mais do que uma função, estarem a fazer consultas e a dar apoio à urgência.

Percebo o que diz, mas por que motivo as histórias dos médicos e dos pacientes são tão diferentes?

Não existe a história do paciente, o que não há é milagres.

Uma consulta no SNS marcada com meses de antecedência para as 10h pode facilmente resvalar para as 17h. Porquê?

Quer vir ver uma consulta comigo?

Sem pré-aviso? Quero.

Sim, sem pré-aviso. Vai ver o número de doentes que são marcados para a mesma hora, chegam a estar marcadas 20 ou 30 pessoas para um período em que deviam ser atendidos 12 a 16 doentes. Sabe porquê?

Um médico explicou-me que muitos pacientes faltam e assim reduz-se o risco...

Não, os doentes raramente faltam. Não é por isso, é porque nós temos uma responsabilidade e se aparece um doente oncológico, se calhar só tenho vaga para daí a seis ou sete meses, e não posso fazer isso, tenho de o ver mais cedo. E é assim que vamos acumulando doentes. Depois também há a pressão do hospital para marcar doentes e aqueles que são marcados sem passar pelo médico. Mais doentes. Além disso, só posso marcar doentes de 15 em 15 minutos. Imaginando que começo as consultas às 9 horas, se já tiver três ou quatro doentes marcados à mesma hora, não é difícil perceber que rapidamente hei-de ter um atraso grande.

"Os tempos de consulta são de facto curtos e é por isso que estamos a criar novas regras. Os novos tempos médico/doente serão regulados em função da especialidade "

E faz sentido marcar 20 pacientes para a mesma hora ou que todos os doentes, independentemente da doença/queixa/especialidade tenham o mesmo tempo previsto de consulta?

Não, além de que os tempos de consulta são de facto curtos e é por isso que estamos a criar novas regras. Os novos tempos médico/doente serão regulados em função da especialidade ­- não posso para já dizer mais sobre o assunto porque essa foi a jóia da coroa da minha candidatura à Ordem dos Médicos: anunciar estas medidas a todos os jornalistas ao mesmo tempo. Mas isso é importante, porque tenho doentes que às vezes me demoram uma hora e raramente tenho doentes que demoram menos de 15 minutos.

"Trata-se claramente de um erro do sistema que permite que sejam marcados vários doentes no mesmo dia e à mesma hora. Porquê? Obviamente porque interessa. (...) Os médicos são pressionados até ao limite para ver o máximo de doentes possível"

Em matéria de tempos de espera a clínica privada é mais assertiva, não?

É evidente que a medicina privada neste momento é muito mais cautelosa do que a medicina pública. Isto é, não há doentes marcados à mesma hora. Mas isto também tem a ver com os sistemas informáticos, tenho chamado a atenção sobre este assunto insistentemente e já falei com o presidente da SPMS [Serviços Partilhados do Ministério da Saúde], Henrique Martins, médico. Trata-se claramente de um erro do sistema, que permite que sejam marcados vários doentes no mesmo dia e à mesma hora. Porquê? Obviamente porque interessa. Quantos mais doentes forem vistos por dia, mais doentes o hospital vai ter nas suas contas finais. Portanto, os médicos são pressionados até ao limite para ver o máximo de doentes possível. Além disso, há os doentes que o médico sabe que tem de ver, que são os casos mais graves, como os oncológicos, que não podem esperar.

Quais são, neste momento, os hospitais em pior situação?

É difícil dizer, porque se falamos de Vila Real, por exemplo, estamos a falar de um enorme défice de capital humano, em que as listas de espera para urologia são enormes, por exemplo. Leiria, Aveiro e Beja têm problemas sérios, Vila Nova de Gaia tem uma estrutura física deplorável. O Hospital de Faro está a precisar de ser renovado e fortalecido a todos os níveis, Beja tem falta de médicos em quase todas as especialidades, a Madeira vai ter, finalmente, um novo hospital construído em parceria com o governo regional. Isto para dar alguns exemplos.

"Neste momento o SNS precisaria de mais 5 mil médicos no país, entre medicina geral e familiar e medicina hospitalar"

De quantos médicos precisaria o SNS para dar uma resposta adequada aos utentes?

Se fizer as contas às horas pagas às empresas de outsourcing, e que podiam traduzir-se na contratação directa de médicos por menos dinheiro, se considerarmos o preço/hora que esses médicos ganham e se olharmos para as horas extraordinárias – segundo dados da DAEGP os médicos estão em terceiro lugar no ranking da administração pública -, o SNS precisaria de mais 5 mil médicos no país, entre medicina geral e familiar e medicina hospitalar.

"Não há duvida de que os médicos que trabalham no SNS têm remunerações mais baixas, mas têm a vantagem de estar a trabalhar num sítio onde se sentem mais confortáveis no trabalho que fazem"

Qual a grande diferença entre a medicina pública e a medicina privada?

Na medicina privada faz-se uma actividade mais limitada, tem-se menos doentes. E, em princípio, os médicos com mais de 70 anos já não exercem. Sabemos existem os tais cerca de 13 mil especialistas a trabalhar apenas no sector privado, um número que não é desprezível e que está a aproximar-se cada vez mais do SNS. Mais: dos 18388 especialistas que trabalham no SNS, uma parte significativa - eu diria que mais de 50% - também trabalha na medicina privada - e pode fazê-lo, não tem exclusividade. Mas há duas coisas absolutamente sensíveis que o serviço privado não oferece. No SNS os serviços estão organizados e quem lá trabalha, 35 ou 40 horas, dependendo do contrato do médico (a normalização são as 40 horas), participa na formação dos mais novos e, ao ensinar os novos médicos, está permanentemente a actualizar os seus próprios conhecimentos. Isto é bom e faz com que se crie também uma dinâmica de equipa e que se formem médicos especialistas de qualidade, uma situação que não é replicada na medicina privada. Embora na medicina privada as remunerações sejam, admito - cada um ganhará o que ganha, não há números oficiais – melhores. Não há duvida de que os médicos que trabalham no SNS têm remunerações mais baixas, mas têm a vantagem de estar a trabalhar num sítio onde se sentem mais confortáveis no trabalho que fazem.

Quer dizer que a prática pública é mais desafiadora em termos médicos?

Há uns anos, nas especialidades cirúrgicas, por exemplo, os casos mais complicados iam todos para a medicina pública. Porque o apoio que existia em termos de especialidades estava todo no Hospital de Santa Maria, no Hospital de São João ou nos Hospitais Universitários de Coimbra, para falar nos três maiores. Até os enfermeiros já tinham alguma diferenciação. Nos hospitais públicos as equipas têm um entrosamento que não existe noutros lados e que nos casos mais complicados é absolutamente determinante para o êxito da terapia do doente. Hoje os privados basicamente só não fazem transplantes e, eventualmente, uma ou outra cirurgia mais complexa. A medicina privada evoluiu bastante e já se faz muita coisa. Ainda assim quando um doente tem uma complicação muito grave é transferido para um hospital público. Costumo dizer que se uma pessoa tiver um acidente grave de carro o ideal é ir parar à urgência de um grande hospital público, onde existem várias especialidades. Tem ali uma oferta em termos de medicina que ainda nenhum hospital privado consegue ter, nem mesmo os grandes hospitais privados de Lisboa.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Fala com alguma nostalgia?

A medicina pública tem esta vantagem, que é grande. Não é por acaso que sou um grande defensor do Serviço Nacional de Saúde, mas há coisas que estão a degradar-se e não fazemos tudo como queremos fazer. Tínhamos um serviço público que quando comparado com os serviços públicos internacionais estava bem classificado, em 12.º. Aliás, o serviço público é mais conhecido a nível internacional porque diz muito às pessoas. Quando os profissionais de saúde pedem a demissão em bloco ou fazem uma manifestação é para chamar a atenção, é para dizer: "Precisamos de mais médicos aqui" ou "precisamos de mais enfermeiros" ou "são necessários mais operacionais e técnicos para dar resposta às listas de espera". E a verdade é que os doentes gostam do SNS: 80% dos doentes recusam cirurgias fora do seu hospital de origem através de notas de transferência ou vales cirurgia para o privado. Preferem ficar com o seu médico, a sua enfermeira, perto de casa. Apenas 20% aceitam ir para o privado. A larga maioria dos doentes prefere esperar mais tempo, mas ficar no sítio que conhece e que o acompanha. Esta relação de proximidade e esta fórmula mostram que o caminho que temos de fazer não é gastar o dinheiro dos portugueses mandando os doentes para o sector privado, mas sim reforçar o serviço público. Os hospitais estão suborçamentados, a dívida acumulada terá de ser paga por alguém, mas enquanto isso, é uma chatice. Imagine que durante um ano não pagávamos impostos, éramos logo altamente penalizados...

Quanto mais não seja em juros...

Pois. E é esta imagem de cumprimento que temos de dar aos portugueses, mas o governo não tem feito isso. Sem prejuízo, o dinheiro acaba por ser gasto pelo Estado, ainda que não esteja orçamentado pelo governo. O orçamento do Estado em matéria de Saúde é relativamente baixo, ainda que o Estado vá acabar por gastar aquele dinheiro mais cedo ou mais tarde. Fica a dever e paga com um orçamento adicional. Se queremos ter uma boa capacidade de resposta e reduzir as desigualdades sociais, que deve ser a nossa maior preocupação no serviço público, temos de fazer alguma coisa para melhorar o sistema. Para continuarmos a ter um serviço público de excelência, temos de apostar na formação dos médicos, que é o que nos distingue da maior parte dos países europeus: temos as melhores pessoas em termos profissionais, médicos que podem trabalhar em qualquer parte do mundo. Se um médico em formação não tem acesso a determinado tipo de intervenções cirúrgicas, se não tem equipamento de última geração, a sua formação será deficiente. Se a Ordem dos Médicos - e o Ministério da Saúde, diga-se - está a fazer um esforço imenso para que o máximo de médicos possa entrar na especialidade mantendo a qualidade e isso não tem resposta, é mau. Estamos no limite da capacidade de formação e isto é uma preocupação central.

Porque é que os médicos não querem ir para o Algarve, por exemplo, os concursos ficam vazios?

Uma interna, a Débora Melo, deu há dias a resposta mais clara, de forma completamente aberta. Para os médicos é importante haver um projecto de trabalho, é importante o respeito pelo médico, é importante a remuneração. Estes médicos têm lugar em qualquer parte da Europa, são assediados por Inglaterra, Bélgica, Suíça, Alemanha, Europa ocidental em geral, países com uma oferta cultural igual ou superior à nossa, com remunerações em alguns casos bastante superiores aos salários pagos em Portugal e com projectos, com uma carreira, um futuro na área em que são especialistas, além de mais férias, mais formação contínua. É preciso ver que, quando acabam as especializações, muitos destes médicos ainda não são casados, uma parte significativa ainda não tem filhos, são pessoas habituadas a comunicar através das redes sociais, falam inglês como se fosse a primeira língua, cresceram com as viagens low-cost, têm uma visão do mundo completamente diferente daquela que a minha geração tinha na idade deles. Tanto trabalham aqui, como em Londres ou noutra parte do mundo, a visão desta rapaziada nova é uma visão mais competitiva. Isto não é criticável, mas exige outra resposta dos nossos responsáveis políticos.

"Este modelo e contratação não beneficia ninguém: não beneficia o Estado, não beneficia os médicos, não beneficia os hospitais"

E que resposta seria essa?

Não sabendo se vai ou não abrir concurso e os prazos de resposta – as contratações são da responsabilidade do governo, se fosse a Ordem faria de outra maneira – os médicos sentem-se inseguros e acabam por tomar a opção que acham que é melhor para eles. Este modelo e contratação não beneficia ninguém: não beneficia o Estado, não beneficia os médicos, não beneficia os hospitais – ou, mais amplamente, as unidades de saúde. Alguns médicos têm saído para o privado e para o estrangeiro, onde vão ganhar melhor, mas a motivação é individual e pode variar consoante as circunstâncias. Ainda outro dia recebi aqui na Ordem [dos Médicos] dois médicos que vieram agradecer o meu trabalho; iam ambos para fora, um por ter já família nesse país, outro por ter recebido uma oferta para ganhar cinco ou seis vezes mais do que lhe pagavam aqui. Isto não é criticável. A Europa abriu as fronteiras à livre circulação de pessoas, há reconhecimento de diplomas e, ao assumirmos isto, sabemos que já não estamos apenas a concorrer entre sector público e sector privado em Portugal, mas a concorrer com os países que estão ao nosso lado e com quem temos relações privilegiadas.

Da mesma forma que "cedemos" médicos, também recebemos. De onde vêm os médicos que chegam de fora?

Recebemos médicos de África, mas aí é diferente. Mas recebemos muitos médicos da Polónia, por exemplo. Lá ganham entre 400 e 500 euros, não sei os valores ao certo, mas são salários muito baixos, e vir para Portugal representa uma significativa melhoria das condições de vida. Os grandes ciclos de migração em termos médicos são do Leste para o resto da Europa, incluindo Portugal.

E o que pode dizer quanto à competência desses médicos?

Não ponho em causa a competência desses médicos até haver justificações para isso. A partir do momento em que existe um reconhecimento dos pares pelos cursos de Medicina, desde logo, e pela formação pré-graduada e pelas especialidades, temos de aceitar e acreditar naquilo que eles fazem. Quando digo, entre aspas, que temos os melhores médicos do mundo, embora sejamos, seguramente, dos melhores do mundo, afirmo-o porque temos muitos Mourinhos, muitos Ronaldos na área da saúde, o que não têm é o mesmo reconhecimento público, a mesma projecção. Veja a Dra. Fátima Carneiro, eleita a patologista mais influente do mundo. Poucos a conhecem, mesmo na classe médica. Agora, revista Forbes de Setembro publicou uma lista com as principais startups a nível mundial, e há uma liderada por uma médica portuguesa, a Daniela Seixas, chama-se Tonic App. Era uma excelente neuroradiologista, trabalhava em Gaia e decidiu dedicar-se às aplicações informáticas.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O que é que o ministro Adalberto Campos Fernandes ainda não percebeu, se há alguma coisa que não tenha percebido, em relação à Saúde?

O ministro ou o primeiro-ministro?

Bem, o ministro em representação do governo, enquanto mentor e executor de uma política para esta área específica.

Pois, mas o primeiro-ministro veio recentemente assumir a responsabilidade dos casos que ocorreram recentemente e o seu compromisso com os portugueses em termos de Saúde.

Então, o que é o que primeiro-ministro ainda não percebeu?

É simples, provavelmente ainda não percebeu que os casos que estão a acontecer na saúde em Portugal são um grito de alerta dos médicos, nomeadamente daqueles que têm funções directivas – e que são nomeados directa ou indirectamente através do Ministério -, uma forma de dizer que assim não dá mais e que é preciso encontrar uma solução. Aconteceu em Gaia, poderia ter acontecido noutro sítio qualquer, aliás, ninguém sabia onde iria acontecer a seguir, porque as pessoas estão a chegar a uma fase em que sentem que o governo não está a responder, e isso é péssimo. As pessoas queixam-se aos seus superiores hierárquicos, escrevem às administrações, ao ministro, ao governo, e ninguém lhes liga nenhuma a não ser a Ordem dos Médicos. Os médicos não podem ser prejudicados naquilo que estão a fazer e o que está em causa é a segurança clínica. Mas quem tem capacidade de decisão não é a Ordem, é o governo no seu todo e isso faz com que as pessoas se sintam defraudadas. Portanto, penso que o primeiro-ministro tem toda a razão quando diz que não tem de falar com o bastonário da Ordem dos Médicos, tem de falar com as pessoas, concordo, é à população que ele deve explicações, por isso lhe lancei o desafio de vir visitar um hospital connosco.

Sem encenações?

Sem encenações. Normalmente quando vou visitar um hospital só aviso no dia anterior, a não ser em casos excepcionais, como foi esta visita ao Alentejo, que exigiu muita logística. Faço isto para visitar um hospital da forma mais limpa possível, para perceber o que se está a passar da forma mais aproximada da realidade e ter algum espírito crítico e poder, de facto, ajudar o hospital e as pessoas que alia trabalham e os doentes que por ali passam. Claro que um primeiro-ministro não consegue visitar um hospital anonimamente, sem pré-aviso, até por questões de segurança. Mas uma coisa é chegar a um serviço de urgência e estar tudo entupido de camas nos corredores, outra coisa é falar com os profissionais que trabalham nos diversos departamentos e saber o que os aflige, isso é possível. Penso que é importante que os profissionais digam de viva voz o que sentem e os preocupa.

Esse não é, também, o papel das administrações?

Estes problemas não chegam, realmente, às administrações, o que é mau. Os administradores hospitalares estão numa situação difícil neste momento. Hoje ser responsável por um hospital pode até significar, de acordo com a lei, uma responsabilidade em termos indemnizatórios se as coisas não correrem bem. Não conheço nenhum caso, mas porque o próprio governo fecha os olhos, uma vez que sabe à partida que o orçamento que dá ao conselho de administração não chega para o ano inteiro, para todas as despesas já programadas e calculadas em termos de recursos humanos, medicamentos e os custos habituais. Todos os hospitais sabem que mais os menos a meio do ano – dependendo da sua dimensão - deixam de ter dinheiro para pagar os medicamentos e ficam a dever aos fornecedores (é por isso que as empresas mais pequenas não põem lá stocks de material, que muitas vezes falta). Associado a isso, as administrações hospitalares não têm qualquer tipo de autonomia e flexibilidade na gestão.

Por que motivo aceitam os cargos?

É sempre o que pergunto aos meus colegas. É uma missão difícil, mas há sempre a esperança de fazer um bonito, quem aceita o desafio acredita que vai conseguir fazer melhor. Seja como for, as administrações hospitalares estão numa situação complexa: não têm o orçamento adequado para as necessidades do hospital e, por outro lado, se tiverem de contratar dois os três enfermeiros, dois ou três assistentes operacionais ou técnicos não o podem fazer directamente, têm de pedir à ARS [Administração Regional de Saúde], que pede ao Ministério da Saúde, que pede ao Ministério das Finanças. É este o circuito estabelecido. Sei que o ministro da Saúde quer mudar isto, rever esta relação para dar mais alguma autonomia às administrações.

Quando chegou ao governo, o PS inscreveu no orçamento do Estado a criação de uma entidade para supervisionar os gastos dos hospitais. Como dizia o professor Adriano Moreira, e já fiz esta pergunta várias vezes, quem controla os polícias?

Quando quer fazer de conta que está a fazer alguma coisa e não quer fazer nada o que é que faz? Cria uma comissão. Isso faz parte dos manuais da política. Cria uma comissão, a comissão vai estudar, vai analisar. Normalmente não dá em nada, o que não quer dizer que não haja uma ou outra excepção. Sinceramente, a gestão dos hospitais, não sendo a minha área nobre - sou médico, percebo de governação clínica, que é aquilo a que mais se devia dar importância em termos de gestão dos hospitais e que não está a ser suficientemente valorizado – não me parece ser o problema maior. Haverá melhores e piores gestores, como há melhores e piores médicos e melhores e piores profissionais em todas as áreas. Ainda assim, não me parece que o desperdício ao nível da gestão dos hospitais seja hoje o mesmo que era há anos. Penso que reduzimos bastante o desperdício. Ainda haverá algum, com certeza, a própria Organização Mundial da Saúde o reconhece, e não é um mal de um país chamado Portugal, é generalizado, nalguns países mais do que noutros. É sempre possível reduzir mais o desperdício e essa é uma das mensagens que passo aos médicos mais novos, que devem ser cidadãos de corpo inteiro e participar naquilo que é o combate ao desperdício e o combate à corrupção, duas coisas importantes. E em Portugal o combate precisava de ser maior. Há cargos que não deviam ser aceites - e falo de uma forma geral –, todos aqueles em que existe um potencial conflito de interesses. Podemos ser a pessoa mais séria do mundo, mas se há uma dúvida, então o melhor é não aceitar.

"Temos pessoas cada vez mais velhas, a esperança de vida é mais alta, o que significa mais doenças. Portugal tem um problema grave que o Estado e os portugueses não têm tratado bem: a promoção da saúde e a prevenção da doença"

Falámos das diferenças entre público e privado. Outra é que um dá prejuízo o outro gera lucro. Porquê?

Não sei se o SNS dá prejuízo, o que sei dizer é que teoricamente está disponível para oferecer cuidados de saúde a 10 milhões de portugueses. Mas é fácil perceber porque é mais difícil o SNS manter as contas de tal forma que lhe permitam gerar lucro: o SNS existe para cuidar da saúde dos portugueses, para os manter saudáveis para poderem trabalhar, ser mais produtivos – nesta perspectiva não calcula o número de dias que deixam de faltar aos empregos porque têm saúde. Ao longo do tempo o SNS evoluiu, quer em termos do que é a nova medicina, quer em termos do que é a capacidade de resposta. O problema é que o Estado orçamenta mal. Neste momento o ministro das Finanças orçamentou 5,2% do PIB – e é o que vai ser, já percebi que é um ministro de ideias fixas. Isto quer dizer que para o SNS são 4,8% do PIB, o valor mais baixo de sempre em percentagem do PIB, mas mais dinheiro porque o PIB aumentou. Todos sabemos, e o governo também sabe, que 5,2% do PIB não dá para as despesas que temos com a saúde. Depois, o SNS faz cirurgias, transplantes que não dão lucro, trata doentes com SIDA, com Hepatite C. O preço de algumas medicações diminuiu muito, mas são caras – e eram, como alguém disse, escandalosamente caras -, só que pessoas ainda novas podem ficar curadas, ter uma vida social normal, ser felizes. Estes doentes não são tratados no privado. O privado trata o que pode tratar e o que os plafonds deixarem, quando acaba as pessoas passam para o público. E têm essa garantia e esse direito. Outra coisa: sabemos que temos pessoas cada vez mais velhas, a esperança de vida é mais alta, o que significa mais doenças. Portugal tem um problema grave que o Estado e os portugueses não têm tratado bem: a promoção da saúde e a prevenção da doença. Somos o quarto país da Europa com mais doenças crónicas a partir dos 65 anos, a nossa qualidade de vida não é aquilo que devia ser. Isto representa mais despesa com saúde. Se conseguíssemos reduzir a percentagem dos doentes diabéticos, por exemplo – somos o país da Europa com mais doentes diabéticos em termos percentuais – ou o número de AVC, ou, noutra área, fazer prevenção na saúde mental, reduzíamos os custos com a saúde.

Ainda assim, o privado paga salários mais altos e faz um investimento elevado em equipamentos.

Investem centenas de milhões e esse dinheiro tem de ser recuperado, enquanto o Estado financia-se através dos impostos. Mas nem todos os privados estão a dar lucro, a PPP de Braga tem dado sempre prejuízo. É preciso ver hospital a hospital. Como já disse sou um grande defensor do SNS e penso que a concorrência em saúde irá ser sempre prejudicial para as pessoas mais pobres. Imagine que um governo decide optar por um sistema baseado em seguros de saúde, serão os mais pobres a ter piores cuidados de saúde, e não queremos isso. A saúde e o acesso aos cuidados de saúde faz parte da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Estado tem obrigação de criar igualdade de circunstâncias no acesso.