Os cartazes da candidatura presidencial de André Ventura, líder do partido Chega, estão no centro de uma nova polémica política e judicial. As mensagens afixadas em várias cidades do país, com frases como "Os ciganos têm de cumprir a lei" e "Isto não é o Bangladesh", levaram várias associações e entidades públicas a reagir.

O caso chegou à Comissão Nacional de Eleições (CNE), que decidiu pedir a intervenção do Ministério Público para apurar se há violação da lei eleitoral ou incitação à discriminação. O pedido surge depois de oito associações representativas da comunidade cigana anunciarem a apresentação de uma queixa formal contra o candidato, considerando os cartazes ofensivos e discriminatórios.

André Ventura recusou retirar os materiais de campanha, alegando tratar-se de um exercício legítimo de liberdade de expressão. "Eu lamento que haja em Portugal um conjunto de associações de pessoas que, sinceramente, estão sempre a dar trabalho à justiça em coisas que não deviam ser da esfera da justiça. Nós vivemos num país livre, devemos saber viver em democracia", afirmou.

O 24notícias falou, na passada terça-feira, com Miguel Prata Roque, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, para perceber se os cartazes são ou não legais e que implicações podem existir para André Ventura e para o partido Chega.

De recordar que, no dia seguinte, Prata Roque esteve na SIC Notícias, enquanto jurista do PS, e protagonizou um confronto com Rodrigo Taxa, deputado do Chega. No debate, o constitucionalista considerou que os cartazes são ilegais e acusou Ventura de ser um "Salazar da Temu" e o Chega de ser um partido "fascista".

"Em primeiro lugar, a Constituição, desde 1976, proíbe a existência de partidos que professem ideologia fascista, no artigo 46, número 4. Na revisão constitucional de 1997, acrescentou-se referência a partidos que professem também o racismo.
Isso significa que a Constituição faz duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, não coloca esta proibição no artigo 37 º sobre liberdade de expressão, o que significa que é possível alguém ser e expressar a sua opinião racista, fascista ou até mesmo xenófoba, mas aquilo que não pode fazer é auto-organizar-se, ou seja, juntar-se com outras pessoas e obter reconhecimento do Estado para prosseguir essas mesmas finalidades", começou por explicar Miguel Prata Roque ao 24notícias.

"Nós, logo em 1978, tivemos a lei 64/78, que define o que são organizações fascistas. E quando o define, no artigo 2, explica que são organizações sempre que se verifique qualquer concertação ou conjugação de vontades ou esforços, com ou sem auxílio de meios materiais, com existência jurídica independentemente da forma, ou apenas de facto, de caráter permanente ou apenas eventual", nota.

Para o constitucionalista, tudo isto demonstra que "André Ventura é um medricas", já que "não teve a coragem de colocar o símbolo do Partido Chega nos seus cartazes".

"Autoescudou-se na candidatura presidencial para dizer aquilo que não tem coragem de dizer enquanto líder do partido Chega. Sabe muito bem que se apresentasse um cartaz com o logotipo e com o símbolo do Chega, o partido seria alvo de um processo do Ministério Público em Tribunal Constitucional para ser extinto. E, portanto, decidiu aproveitar este subterfúgio de ser candidato presidencial para se esconder atrás dessa candidatura presidencial e estar a elogiar o doutor António de Oliveira Salazar. E, portanto, quando o faz, está obviamente a cometer uma grave violação, não só da Constituição", considera.

"Devo lembrar que o artigo 127º, número 3, da Constituição diz que um presidente da República, quando assume a função de presidente, faz o seguinte compromisso: 'juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fique investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa'. Ora, quando cheira a fascista, quando parece fascista, quando se fala como um fascista, é-se um fascista. E, portanto, manifestamente, André Ventura é um fascista. Assim como quando cheira a racismo, parece racismo e se fala como um racista, é-se racista. E, portanto, esta candidatura presidencial enquadra-se na proibição da Lei 64/78", acrescenta Miguel Prata Roque.

Segundo o professor de Direito Constitucional, André Ventura "não formalizou ainda a candidatura, mas tem dinheiro, obviamente vindo dos seus financiadores privados e do Partido Chega, para colocar cartazes".

Mesmo assim, "a lei proíbe que haja organizações de qualquer tipo, mesmo que sejam apenas de facto, que se dediquem a estas atividades. E, depois, o artigo 3.º da Lei 64/78 ainda é mais claro, dizendo que são organizações que perfilham a ideologia fascista aquelas que pelos seus manifestos e comunicados, pelas declarações dos seus dirigentes, mostrem adotar, defender ou pretender difundir os valores e os princípios e os métodos característicos dos regimes fascistas que a história regista".

"Portanto, André Ventura, como candidato presidencial, fez duas coisas. Exaltou a personalidade mais representativa do regime fascista português, António de Oliveira Salazar, e coordena um movimento e uma organização fascista, que é a sua candidatura presidencial", diz ainda.

Por outro lado, as frases usadas nos cartazes estão enquadradas em "categorias suspeitas do ponto de vista do princípio da igualdade".

"O artigo 13º da Constituição proíbe qualquer tipo de discriminação em função do território de origem, da nacionalidade ou da etnia. Ora, André Ventura fez um jackpot relativamente a estas declarações. Por um lado, exaltou uma personalidade representativa do fascismo português. Por outro lado, obviamente, fez um discurso racista, que é proíbe pela Constituição expressamente desde a revisão constitucional de 97. Proibida enquanto organização, repito. Ele pode ser racista, pode ser xenófobo, tem todo o direito de o dizer. Mas, enquanto cidadão, ele não pode organizar um partido político à volta disso. E se acha que fugiu a essa proibição através do movimento de apoio à sua candidatura presidencial, então devia voltar aos bancos da faculdade e fazer a disciplina de direito constitucional", atira.

Realçando que a lei eleitoral da candidatura das eleições para presidente da República diz que só há campanha eleitoral nos 14 dias antecedentes à eleição, Miguel Prata Roque afirma que André Ventura "podia escudar-se nisso e dizer que ainda não está em campanha eleitoral". Contudo, "a lei de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, a Lei 72/93, também exige que haja prestação de contas relativamente a atividades de campanha fora do período de propaganda eleitoral de 14 dias".

Desta forma, Ventura "tem de ter um mandatário financeiro que explique qual é a origem do financiamento dos cartazes que andam a espalhar pelo país. Porque todos nós sabemos que esses cartazes são pagos pelo Partido Chega. Ora, o Partido Chega, se foi financiador desses cartazes, está a ser, também, cúmplice dessa mesma organização de teor fascista e racista", considera.

Quais as possíveis implicações para André Ventura e para o Chega?

Miguel Prata Roque mostra-se "espantado" por ainda não ter "havido uma declaração do Procurador-Geral da República a anunciar que o Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, abriu um processo, ao abrigo desta Lei 64/78, para declaração da ilegalidade e inconstitucionalidade do movimento de apoio à candidatura presidencial de André Ventura".

"As pessoas têm de responsabilizar-se por aquilo que fazem. Não é estar a mandar umas bocas para o ar e depois não assumir responsabilidades por isso. Há, neste momento, um movimento de apoio à candidatura, mesmo que ainda não tenha sido apresentada ao Tribunal Constitucional", realça.

Assim, o professor de Direito Constitucional considera que "o Ministério Público tem de abrir um processo junto do Tribunal Constitucional. É preciso fazer essa verificação sobre se o movimento de candidatura presidencial de André Ventura é ou não fascista. Depois disso, o Ministério Público terá de fazer a averiguação e de recolher prova — e terá de decidir se propõe ao Tribunal Constitucional a extinção ou não desse movimento de candidatura".

Numa fase posterior, "o Tribunal Constitucional terá de intervir relativamente a isso e decidir se extingue ou se não extingue esse mesmo movimento de apoio. Não é o facto de haver uma eleição unipessoal que isenta o movimento de apoio, porque a lei de financiamento das campanhas eleitorais exige a existência de uma estrutura organizada de apoio à candidatura, designadamente um mandatário nacional que representa o candidato junto do Tribunal Constitucional e das demais autoridades e um mandatário financeiro, que é responsável pela prestação de contas".

Nesse sentido, o Tribunal Constitucional e a entidade de prestação das contas devem "verificar quem está, de facto, a financiar estes mesmos cartazes, uma vez que têm o grafismo do Chega e que foi o próprio partido Chega, numa reunião da sua comissão política, que decidiu escolher como candidato presidencial André Ventura".

Quem pode agir para que os cartazes sejam retirados?

Miguel Prata Roque recorda que, durante a campanha eleitoral, "quem tem competências relativamente à propaganda política é a Comissão Nacional de Eleições".

"Neste momento, ainda não estamos no período dos 15 dias prévios à eleição, portanto é aplicável analogicamente a lei da propaganda comercial. E, portanto, cabe também às câmaras municipais determinar se autorizam ou não autorizam a publicação desse mesmo tipo de propaganda. Claro que há liberdade de propaganda dos partidos políticos, mas neste caso não estamos a falar de um partido político, apesar de, aparentemente, toda a gente perceber, ter sido um partido que fez os cartazes e que pagou os cartazes", reforça.

"A jurisprudência do Tribunal Constitucional diz que a Comissão Nacional de Eleições tem competência sobre estas matérias, quer durante o período formal de campanha de 15 dias, quer a partir do momento em que haja pré-campanha, que geralmente se inicia com a publicação em Diário da República do despacho de marcação de eleições", o que aconteceu esta quinta-feira, com a marcação oficial das presidenciais para 18 de janeiro.

Por outro lado, tal como já aconteceu neste caso, "os cidadãos podem dirigir-se ao Ministério Público, através dos direitos de petição, e exigir que o Procurador-Geral da República inicie um processo para extinção deste mesmo movimento".

Movimentos extintos? Não é novidade

Segundo Miguel Prata Roque, "o Tribunal Constitucional já duas vezes analisou questões parecidas" com este caso que envolve o líder do Chega.

A primeira surgiu no início da década de 90, com o Acórdão MAN - Movimento da Ação Nacional. "Tratava-se de um movimento que professava a ideologia neo-skin, que defendiam obviamente a ideologia fascista, o regime de Estado Novo, o regime nazi, e que foram desmantelados por investigações do Ministério Público".

"O Ministério Público abriu um processo para a extinção dessa mesma organização e o Tribunal Constitucional depois decidiu sobre isso", recorda.

Depois, "mais ou menos na mesma altura, mas depois o Acórdão do Tribunal Constitucional foi só do início dos anos 2000, o Tribunal Constitucional também apreciou a extinção do movimento FUP 25 de Abril, as Forças de Unidade Popular".

"Nesse caso, não proibiu a ideologia fascista, mas proibiu uma organização paramilitar e militarizada, que também é proibida pelo artigo 46, ponto 4", remata.