A diferente avaliação dos indícios nestes dois processos pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução criminal foi o cerne da polémica.
No caso influencer e no processo da Madeira as investigações levaram à demissão do primeiro-ministro e do presidente do Governo Regional da Madeira, respetivamente.
Apesar das consequências políticas, o entendimento dos juízes de instrução criminal que interrogaram arguidos e avaliaram os indícios apresentados pelo MP e Polícia Judiciária foi no sentido de não validar muita da prova apresentada pelos investigadores.
No dia em que se inicia o XIII Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público seguem-se alguns pontos essenciais em torno destes casos em que foi questionado o trabalho do MP:
Operação Influencer
No dia 07 de novembro, realizou-se uma operação do Ministério Público (com o apoio da Autoridade Tributária e da PSP), no âmbito da investigação aos negócios do lítio e hidrogénio verde, que incluiu pelo menos 42 buscas.
Foram detidas cinco pessoas: Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro, Diogo Lacerda Machado, advogado e consultor, amigo de António Costa, o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, administradores da sociedade Start Campus.
O ministro das Infraestruturas, João Galamba, e o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, foram constituídos arguidos, assim como o advogado, antigo secretário de Estado da Justiça e ex-porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
O primeiro-ministro, António Costa, é alvo de uma investigação autónoma do Ministério Público num inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, após suspeitos terem invocado o seu nome como tendo intervindo para desbloquear procedimentos nos negócios investigados.
No mesmo dia o chefe de Governo apresenta a sua demissão ao Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dissolver a Assembleia da República e convocar eleições legislativas antecipadas para 10 de março.
Cerca de uma semana depois o juiz de instrução Nuno Dias Costa decide que os cinco detidos ficam sujeitos a medidas de coação não privativas da liberdade.
A Diogo Lacerda Machado e a Vítor Escária foi aplicada uma caução de 150 mil euros e a proibição de viajar para o estrangeiro, enquanto os restantes três saíram apenas com a medida de coação de Termo de Identidade e Residência (TIR). A sociedade Start Campus ficou sujeita a uma caução de 600 mil euros.
O MP tinha defendido prisão preventiva para os dois primeiros, cauções de 200 mil e 100 mil euros para Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, respetivamente, bem como proibição de contactos com os restantes arguidos, a suspensão do mandato, a proibição de contactos e a proibição de entrar nas instalações da autarquia para Nuno Mascarenhas e uma caução de 19 milhões de euros para a empresa arguida.
Nuno Dias Costa considerou “claramente desproporcionais” as medidas de coação que foram pedidas pelo Ministério Público e o MP anunciou uma semana depois ter interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Caso da Madeira
No dia 24 de janeiro são detidos o presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e os empresários Avelino Farinha, líder do grupo de construção AFA, e Custódio Correia, principal acionista do grupo ligado à construção civil Socicorreia, no âmbito de uma operação da Polícia Judiciária (PJ), que incluiu 130 buscas domiciliárias e não domiciliárias na Madeira, nos Açores e em várias zonas do continente.
O presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque (PSD), é constituído arguido.
A operação estava relacionada com três inquéritos dirigidos pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), para investigar crimes de corrupção ativa e passiva, participação económica em negócio, prevaricação, recebimento ou oferta indevida de vantagem, abuso de poderes e tráfico de influência.
Miguel Albuquerque e Pedro Calado (ambos do PSD) renunciam aos cargos e cai o governo da Madeira.
Depois de 21 dias na prisão, o juiz de instrução Jorge Bernardes Melo decide a libertação "de imediato" dos arguidos, sob termo de identidade e residência, por considerar não existirem indícios da prática “de um qualquer crime”. O MP, que tinha pedido a prisão preventiva para os três, diz que vai recorrer.
Críticas internas e reações
Operação Influencer
As primeiras críticas surgem do interior do MP através de um artigo no jornal Público, a 19 de novembro, da procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes, intitulado “Ministério Público: como chegámos aqui?”
Embora sem se referir a Operação Influencer, a magistrada questiona como foi possível chegar até “à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro”, levantando dúvidas sobre os métodos de trabalho e investigação do MP, designadamente do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Esta posição pública motivou a abertura de um processo disciplinar à procuradora Maria José Fernandes.
O presidente do (SMMP) reage no mesmo dia, considerando que o artigo apresenta "deficiência de argumentação" e "erros crassos" sobre a questão da autonomia desta magistratura.
Em declarações à Lusa, Adão Carvalho refere que a procuradora-geral adjunta apresenta "uma visão singular e manifestamente não concordante pela quase totalidade dos magistrados do MP", revelando alguns "vícios".
O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, considerou "excessivo e prematuro" nesta fase "pendurar já o Ministério Público no pelourinho ou endeusá-lo", porque se desconhece como vai terminar a investigação.
O ex-membro nacional do Eurojust António Cluny considerou que certos casos judiciais deviam levar a "uma profunda reflexão do Ministério Público sobre o seu desempenho", mas também de "autocrítica" do poder político sobre as leis produzidas.
O procurador-geral adjunto e até recentemente membro nacional da Eurojust entendeu, em declarações à Lusa, que "estes casos devem levar a uma profunda reflexão do Ministério Púbico (MP) sobre o seu desempenho".
A 11 de dezembro, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, denuncia ataques ao Ministério Público e garante que a magistratura vai continuar “inquebrantável e incólume” às críticas que surgiram após a Operação Influencer, que levou à queda do Governo.
Entretanto, o juiz de instrução do caso Influencer, Nuno Dias Costa, em resposta ao recurso do MP contra as medidas de coação aplicadas aos arguidos, criticou o MP por invocar novos factos que não apresentou no primeiro interrogatório judicial. Considerou ainda vaga e contraditória a tese do MP de que os arguidos Diogo Lacerda Machado e Vitor Escária tentaram pressionar o primeiro-ministro para aprovação de um decreto-lei favorável à sociedade Start Campus.
Caso da Madeira
Os arguidos Pedro Calado, Avelino Farinha e Custódio Correia estiveram 21 dias detidos para interrogatório para depois serem libertados com a medida de coação menos gravosa (termo de identidade e residência).
O Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas lembrou que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem visto a detenção para “além dos prazos legais” de arguidos para primeiro interrogatório judicial como uma violação dos direitos humanos.
A situação relativa ao interrogatório no âmbito do caso foi criticada por várias entidades, como a Ordem dos Advogados e a Associação Sindical de Juízes Portugueses, sugerindo algumas mudanças na legislação.
O juiz presidente da comarca de Lisboa, Artur Cordeiro, alertou igualmente que os arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial não podem permanecer privados de liberdade durante semanas, como também aconteceu em vários outros casos judiciais, e defendeu a criação de mecanismos legais que previnam situações como esta.
O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses notou que o processo da Madeira tinha “aspetos que o tornam raro", como o facto de haver "uma diferença tão grande entre uma avaliação feita pelo MP em conjugação com as polícias" sobre a matéria indiciária e a "decisão judicial” que considerou inexistentes indícios da prática “de um qualquer crime”.
O presidente do SMMP, Adão Carvalho, disse acreditar que quer MP, quer a Polícia Judiciária (PJ) “fizeram o seu trabalho” e que se apresentaram detidos a interrogatório judicial foi porque entenderam existir indícios que o justificavam.
A procuradora-geral da República, Lucília Gago, assegurou fazer um “acompanhamento próximo” do processo sobre as suspeitas de corrupção na Madeira e remeteu esclarecimentos para quando o “entender oportuno” e se não prejudicar a investigação do caso.
A PGR salientou também que as procuradoras do MP alertaram o Conselho Superior da Magistratura (CSM) para a demora do interrogatório, acrescentando não poder “deixar de lamentar o longo período de tempo decorrido desde as detenções até à prolação” do despacho das medidas de coação, três semanas depois.
Disse ainda que a operação desencadeada pela PJ “foi ponderada pelas três magistradas que dirigem as investigações e pelo diretor do DCIAP” [Departamento Central de Investigação e Ação Penal], mantendo o entendimento de que há indícios de crimes.
“Essa ponderação permitiu concluir que, além do mais, os elementos probatórios até então recolhidos apontavam indiciariamente, de forma consistente e sustentada, para o cometimento de um conjunto de ilícitos”, defendeu a PGR, acrescentando: “Importa sublinhar igualmente que, em momentos anteriores, cinco diferentes juízes de instrução proferiram no processo decisões sustentadas na convicção de existirem já então indícios”.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM), por seu turno, recusou haver fundamentos para abrir um processo de averiguações à conduta do juiz de instrução no caso da Madeira, nomeadamente o tempo decorrido entre as detenções e as medidas de coação.
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou “impróprias as manobras” para “descredibilizar” o juiz de instrução do processo de alegada corrupção na Madeira, alertando que os casos judiciais não são “’guerras’ entre sujeitos processuais nem se decidem nas páginas dos jornais ou nos programas de televisão e rádio”.
Algumas críticas de políticos
Operação Influencer
Entre os primeiros a pronunciar-se sobre o caso, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, defendeu que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) devia esclarecer rapidamente, antes das eleições, a situação penal do primeiro-ministro, frisando que o caso abriu uma crise política.
Por seu turno, o ex-líder do PSD Rui Rio defendeu numa entrevista ao Jornal de Notícias que a Procuradora-Geral da República “deveria abandonar o cargo”, na sequência da Operação Influencer, salientando que Lucília Gago “não foi clara” nas informações que prestou ao país.
Caso da Madeira
O secretário-geral do PS manifestou-se preocupado com as longas detenções de arguidos para interrogatório e com as consequências de dois governos (da República e da Madeira) terem caído, sem que os juízes tenham validado suspeitas de corrupção. Pedro Nuno Santos disse ser importante “perceber o que não corre bem para que situações dessas não voltem a acontecer, porque se impõe proteger os direitos, liberdades e garantias de todos”.
O presidente do PSD, Luís Montenegro, escusando-se a abordar o caso concreto da Madeira assumiu que o tempo de detenção neste processo foi excessivo, ultrapassando os princípios da lei.
“Eu não quero falar do caso em concreto, mas não há dúvida nenhuma de que qualquer português fica admirado de um processo ter esta sequência e, depois, um tempo detenção que é excessivo, que não tem respaldo naquilo que são os princípios da lei”, declarou.
Reagindo à decisão judicial de libertar os arguidos, o secretário-geral do PCP declarou que o Ministério Público era o primeiro interessado em esclarecer "nebulosas" em torno de casos judiciais como o da Madeira, defendendo a sua rápida clarificação.
Face à mesma decisão, o ex-presidente da Assembleia da República Eduardo Ferro Rodrigues defendeu uma intervenção do Presidente da República na crise da justiça, criticando a atuação do Ministério Público em casos judiciais que causaram crises políticas.
Uma justiça sem pressões e a funcionar para todos foi defendida pelo líder da Iniciativa Liberal (IL), que sublinhou que os portugueses devem acreditar na Justiça, que tem o seu tempo, que deve ser respeitado e cumprido.
Depois de Lucília Gago ter remetido esclarecimentos sobre o processo na Madeira para altura oportuna num comunicado, a líder do PAN considerou que a procuradora-geral da República não tinha “condições” para se manter no cargo.
“A PGR não se pode esconder atrás de comunicados quando, por duas vezes já, pôs em causa Governos quer a nível nacional, quer a nível regional”, explicou Inês Sousa Real, salientando a necessidade e importância da procuradora comunicar “de forma mais próxima e mais direta” com a população.
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