De acordo com o recurso do Ministério Público (MP), a que a Lusa teve acesso, a procuradora Andrea Marques, responsável pela acusação do processo dos colégios GPS, pede que o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) revogue a “decisão judicial de absolvição dos arguidos”, acusados de peculato, falsificação de documento qualificada e burla qualificada, devendo ser “substituída por outra que condene os arguidos” e “em consequência, ser-lhes aplicada a respetiva pena de prisão”, de acordo com a moldura legal aplicável.
Pede ainda que os arguidos sejam condenados a pagar ao Estado os montantes dos quais, segundo o MP, se apropriaram indevidamente, e pede a revogação da decisão tomada ainda na fase de instrução, pelo juiz Ivo Rosa, relativa ao valor da prova pericial apresentada pela acusação e na qual o MP sustenta os crimes imputados aos arguidos.
António Calvete, Manuel Madama, António Madama, Fernando Catarino, Agostinho Ribeiro, administradores dos colégios GPS, foram acusados pelo MP de se apropriarem indevidamente de cerca de 34 milhões de euros provenientes de transferências do Estado no âmbito de contratos de associação, uma modalidade de financiamento estatal ao ensino privado para garantir o acesso à escolaridade obrigatória em zonas onde não existe oferta pública.
Sobre a importância da prova pericial, que não foi considerada como tal durante o julgamento, e que descreve os fluxos financeiros que o MP defende serem crime, o recurso para o TRL acusa o tribunal de julgamento de desconsiderar as declarações dos peritos – que não foram ouvidos enquanto tal, mas apenas como testemunhas – e de decidir com base em “juízos de valor” para “desmerecer o labor pericial”.
O MP acusa o coletivo da primeira instância de desconsiderar conclusões técnico-científicas e de se basear em “máximas de suposta anti-ideologia” – o MP foi acusado pela defesa de defender uma agenda sindical e avessa à iniciativa e ensino privado – para justificar a decisão com o direito à “livre iniciativa privada”, o que para o MP demonstra “falta de objetividade, pouco rigor, incluindo jurídico, na apreciação da prova e do direito”.
“Na verdade, o Tribunal partiu de um pré-juízo na forma como encarou, produziu e conduziu a produção de prova no decurso do julgamento”, acusa o MP no recurso, acusando o coletivo de juízes de reduzir o âmbito do julgamento a uma “suposta prestação efetiva do ensino” e “à lógica (que entendeu como) ‘normal’ de funcionamento de sociedades privadas”.
Um pré-juízo que, continua o MP, “perpassou todo o julgamento” e “perpassa, igualmente todo o texto do acórdão”, e o qual “radica em errado entendimento da natureza jurídica dos contratos de associação”, condicionando a decisão.
“[O Tribunal] guiou toda a produção de prova para demonstrar que o ensino foi prestado, concluindo que, cumprida a “sua parte”, os arguidos podiam dispor das verbas recebidas como bem entendessem. Salvo o devido respeito, o Tribunal não compreendeu o objeto do processo”, lê-se no recurso do MP, que viu indeferido o pedido para ouvir algumas testemunhas em julgamento e interpôs recurso sobre essa recusa, ainda pendente no TRL.
O julgamento, que teve a sua conclusão em fevereiro deste ano, com a leitura do acórdão que absolveu todos os arguidos, ficou marcado por duas reviravoltas, protagonizadas pelo MP.
A primeira aconteceu na sua primeira sessão, em setembro do ano passado, quando a procuradora Catarina Duarte, que iniciou pelo MP a condução do julgamento, deixou cair da acusação o crime de peculato, o mais grave imputado aos arguidos, que assenta no pressuposto de que podem ser considerados funcionários públicos ao gerirem dinheiro entregue pelo Estado.
A segunda reviravolta aconteceu numa das sessões finais, quando a procuradora Andrea Marques, responsável pela acusação, substituiu Catarina Duarte no julgamento e requereu a recuperação do crime de peculato para a acusação.
Catarina Duarte tinha invocado um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que fixou jurisprudência, e no qual não se permitia a classificação de funcionário a colaboradores e dirigentes de instituições particulares de solidariedade social, o que a procuradora considerou ser comparável e aplicável ao processo GPS.
Andrea Marques contestou esse entendimento e voltou a fazê-lo no recurso da decisão para o TRL, recusando que possa ser usado como jurisprudência neste processo e, com recurso a uma comparação dos arguidos a um diretor escolar, reforçou que houve “uma errada qualificação jurídica dos factos, a desconsideração da qualidade de funcionário”, na qual o tribunal “suportou a errada decisão de não verificação do crime de peculato”.
“[Um diretor] ainda que lhe sobrasse dinheiro no final do ano, porque poupou no aquecimento […] ou porque emagreceu o quadro docente e não docente […] poderia mandar emitir faturas em nome de uma sociedade sua de fachada para cobrar consultorias, acumulando as respetivas verbas com o seu ordenado, ou adquirir um veiculo automóvel para si ou para oferecer, ou comprar uma garrafa de Barca Velha para a sua ceia natalícia, ou para premiar um funcionário da escola, ou para adquirir um colchão novo?”, questiona Andrea Marques.
Segundo a acusação do MP, os arguidos ter-se-ão apropriado de mais de 30 milhões de euros dos mais de 300 milhões de euros recebidos pelos colégios do grupo GPS para financiar contratos de associação com o Estado.
O dinheiro pago a colégios do grupo GPS no âmbito desses contratos alegadamente financiou férias, carros, bilhetes para o mundial de futebol de 2006, jantares, vinhos e até seguros pessoais, segundo o MP.
Defesa admite que se Relação der razão ao MP julgamento do caso GPS pode ser reaberto
A defesa dos administradores dos colégios GPS admite que se a Relação reverter a decisão da primeira instância e considerar o valor legal da perícia apresentada pelo Ministério Público (MP) pode haver uma reabertura do julgamento.
Os cinco administradores dos colégios GPS foram absolvidos no início deste ano dos crimes de peculato, falsificação de documento qualificada e burla qualificada por apropriação indevida de verbas do Estado, mas o MP recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), pedindo a reversão do acórdão e a condenação a penas de prisão dos arguidos.
O recurso pede ainda que seja revertida a decisão tomada ainda na fase de instrução, que desqualificou a perícia apresentada pelo MP, na qual se demonstram as transações financeiras que a acusação defende serem crime.
A acontecer poderia ser mais uma reviravolta num processo que já conheceu algumas em fase de julgamento.
“Isso levaria a uma dinâmica processual terrível, porque se isso acontecesse o mais natural era não haver uma inversão da decisão pelo TRL, mas sim uma baixa do processo à primeira instância, reabrindo a audiência, e nesse caso a defesa também teria o direito a querer uma contra-perícia”, explicou à Lusa Mário Diogo, advogado de António Calvete, principal arguido do processo.
Mário Diogo, que ao longo do processo assumiu o papel de porta-voz da defesa, composta por quatro advogados, manifestou-se convicto de que a decisão da primeira instância se manterá e defende que “não há como considerar aquilo uma perícia”, relembrando que a possibilidade já tinha sido afastada na fase de instrução, pelo juiz Ivo Rosa, quando foram invocados erros processuais que o impediam, erros esses refutados no recurso do MP.
O porta-voz da defesa refere que não houve fundamentação por parte do MP da não notificação aos arguidos da existência da perícia, mas o MP contrapõe no recurso que “as razões que determinaram a não notificação estão plasmadas no despacho” que determinou a perícia e que esse despacho “é, em termos de fundamentação”, autossuficiente”.
Mas Mário Diogo argumenta ainda que “foram detetados erros graves” na perícia do MP e que foram os próprios peritos – que durante o julgamento foram ouvidos apenas na qualidade de testemunhas – que contribuíram para a desqualificação do valor da prova pericial apresentada pela acusação.
Desde logo, sublinhou o advogado, por uma das peritas ter admitido desconhecer o âmbito de atividade das sociedades SGPS, nas quais se enquadram o grupo GPS, mas também por ter sido reconhecido que a administração dos colégios tinha a prerrogativa da gestão.
“O que disseram foi que o dinheiro pertencia aos colégios, uma vez transferido pelo Estado, que eram livres de fazer a gestão desse dinheiro e isto é o cerne da não verificação do crime de peculato”, defende Mário Diogo.
“Isto são conjeturas. O TRL tem várias saídas possíveis. Aquela em que eu acredito é que não há como considerar uma perícia aqueles relatórios”, disse ainda o advogado, que insiste que não estão reunidos os pressupostos para os arguidos serem considerados funcionários públicos, como alega o MP, e, como tal, serem julgados e condenados por peculato.
E insistiu na ideia, acolhida pelo tribunal de primeira instância, de que a acusação tem por base “um preconceito ideológico” da procuradora Andrea Marques, responsável pela acusação.
“Há um pressuposto ideológico da parte do MP e que é este: as verbas são transferidas pelo Estado e mantêm-se públicas e o privado a única coisa que faz é ministrar o serviço. Esse pressuposto ideológico está ligado a algo bastante sério, que é a circunstância de se admitir ou não que ao lado de um ensino público há lugar a um ensino privado”, disse, acrescentando que nem a Inspeção-Geral de Educação e Ciência detetou qualquer incumprimento de contrato.
Para Mário Diogo “são pressupostos ideológicos e contra pressupostos ideológicos não há muito a fazer”.
“O que o TRL vai dizer sobre isto? A defesa está perfeitamente convicta das suas teses e da bondade dos argumentos esgrimidos no processo. Cá estamos expectantes e crentes de que efetivamente o que dissemos ao longo de todo o processo, desde a instrução, é aquilo que faz sentido. Mas este processo há que reconhecer que é um processo complexo, mediatizado. O que é que o TRL vai fazer ante a montanha de dossiers e volumes que este processo tem, pois isso eu gostava eu de saber e gostava que a decisão fosse rápida, mas certamente não será. Isto é um megaprocesso”, disse.
As respostas dos arguidos ao recurso da decisão já foram entregues pela defesa no Tribunal Central Criminal de Lisboa, mas ainda antes de decidir sobre o recurso que recai sobre a decisão de primeira instância, o TRL terá que apreciar outro, interposto pelo MP, para requerer a audição em julgamento de três testemunhas.
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