Falando como testemunha no julgamento no Tribunal Central Criminal de Lisboa em que três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estão acusados de homicídio qualificado do passageiro ucraniano, Paulo Marcelo relatou que ouviu "gritos agonizantes", como se fosse um "cão a ser espancado".
Esta situação aconteceu, segundo a testemunha, depois de os três inspetores terem entrado numa sala onde Ihor Homeniuk tinha sido colocado em isolamento, após uma noite "turbulenta" em que chegou a ser atado pelos vigilantes com fita adesiva nos pés, porque estava sempre inquieto.
Paulo Marcelo admitiu que durante a madrugada foi um dos seguranças que lhe atou inicialmente os pés com fita adesiva, relatou que de manhã foi preciso chamar os inspetores, tendo os três acusados entrado na sala onde estava Ihor Homeniuk, altura em que "ouviu pancadas".
Questionado com insistência pelo juiz presidente Rui Coelho e pela procuradora Leonor Machado sobre que tipo de sons tinha ouvido vindos da sala, Paulo Marcelo acabou por dizer que "ouviu gritos agonizantes", como "ai,ai,ai", adiantando que se assemelhava a um cão a levar pancada.
Pressionado pelo tribunal a precisar o que ouviu e viu nessa manhã fatídica para Ihor Homeniuk, a testemunha revelou ainda que foi espreitar à porta da dita sala (conhecida como a sala dos médicos), tendo presenciado que o cidadão ucraniano estava algemado nas costas e de joelhos, inclinado para a frente, tendo visto ainda o pé de um inspetor na nuca (pescoço) da vítima, assistindo ainda a uma agressão com bastão nas costas de Ihor, perpetrada por um dos inspetores.
Admitiu ainda que talvez tenha ido mais tarde voltar a ver como estava Ihor e disse ao tribunal que o inspetor conhecido por possuir um bastão era o arguido Duarte Laja.
Apesar de reconhecer que durante a noite e madrugada "turbulenta" em que Igor Homeniuk esteve quase sempre inquieto e revoltado com a possibilidade de não poder entrar em Portugal e ter que regressar à Ucrânia chegou a atar os pés da vítima com fita adesiva castanha admitiu que um seu colega, também segurança/vigilante, poderá ter atado novamente Ihor com mais fita adesiva para o manter controlado.
"Fui até à porta e não devia ter ido. O Ihor estava rodeado pelos inspetores. Tinha as mãos atadas atrás das costas, de joelhos no chão e com um pé na cabeça/nuca", relatou a testemunha, recordando que um dos inspetores lhe disse: "sai daqui. Isto não é para ninguém ver".
Relatou ainda que obedeceu prontamente e foi-se embora dali, tendo chegado a presenciar Ihor a ser agredido nas costas com um bastão.
Questionado pelo juiz Rui Coelho se abandonou o turno de 24 horas "descansado", Paulo Marcelo confessou que "não", dizendo: "Não foi um dia normal".
Durante a inquirição, a testemunha foi ainda confrontada com outras situações ocorridas nessas 24 horas de turno, que incluem a permissão para Ihor ir fumar um cigarro no pátio e ter sido assistido por uma enfermeira da Cruz Vermelha depois de se atirar contra as paredes da sala. Disse ainda que o cidadão ucraniano, que já estivera antes no Hospital de Santa Maria (Lisboa), tinha alguns arranhões e uma ferida na cara que poderia ter resultado dos encontrões contra a parede da sala.
Antes disso, disse ter sido alertado para o comportamento anormal de Ihor que entrou na sala das crianças e mexer em objetos das senhoras, relatando que este tinha um olhar estranho e não percebia o que lhe era dito, o que levou a que uma inspetora do SEF de nome Irina tenha sido chamada para ajudar a falar, a compreender e a acalmá-lo.
Durante mais de meia hora, o juiz Rui Coelho confrontou a testemunha com divergências entre o depoimento prestado em dois interrogatórios em sede de inquérito e o que estava agora a dizer em julgamento, tendo Paulo Marcelo dito que estava agora a ser mais preciso porque lhe estavam a fazer perguntas que não foram feitas na fase anterior do processo.
A audiência prossegue com o contra-interrogatório da testemunha por parte dos advogados de defesa, que tentam precisar aspetos particulares da acusação e detetar eventuais contradições que ponham em causa a credibilidade de Paulo Marcelo sobre a veracidade dos factos por este descritos em julgamento, que é uma fase de produção de prova que dita a condenação ou não dos arguidos.
Três inspetores SEF - Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa - estão ser julgados pelo homicídio de Ihor Homeniuk.
Os arguidos estão acusados de homicídio qualificado, punível com penas de até 25 anos de prisão.
O crime terá ocorrido a 12 de março, dois dias após o cidadão do Leste Europeu ter sido impedido de entrar em Portugal, alegadamente por não ter visto de trabalho. Segundo a acusação, após ser espancado, terá sido deixado no chão, manietado, a asfixiar lentamente até à morte. Dois dos inspetores respondem ainda pelo crime de posse de arma proibida (bastão).
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