José Pedro Soares, um dos últimos cinquenta presos da cadeia de Peniche, a serem libertados na madrugada de 27 de abril de 1974, e Domingos Abrantes, o sobrevivente que mais anos – nove – esteve detido em Peniche, têm bem presente na memória as torturas sofridas e as dificuldades diárias de um preso político durante a ditadura.
“Havia meia hora para as refeições e 20 horas de isolamento” nas celas individuais, lembra Domingos Abrantes, que foi transferido para Peniche após a célebre fuga do ex-dirigente comunista Álvaro Cunhal, em 1960, e por isso aí foi vítima do “regime opressivo mais terrível”.
“Até preferia a vida celular à vida numa cela comum, porque era difícil, devido aos problemas humanos de cada um”.
Com os vidros da janela da cela ofuscados, sem se poderem deitar durante o dia, o tempo de reclusão era passado a ler, a dar passos pela cela e a ouvir os barulhos do exterior: “O mar a bater na falésia, os barcos a partir e o barulho das gaivotas quando chegavam cheios de peixe, as portas da prisão a abrir e a fechar, os mais de 40 apitos diários dos guardas ao levantar, deitar e às refeições, o farol em dias de nevoeiro e os dias de festa”, descrevem.
“Voltar agora em liberdade a este espaço é diferente, mas ainda nos custa, porque foi um local onde estivemos encarcerados num tempo muito difícil e isso nunca é bom de recordar”, diz à Lusa José Pedro Soares, durante uma visita às obras que decorrem na Fortaleza, para a instalação do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.
Em Peniche, o ex-preso cumpriu cerca de um ano dos três e meio a que tinha sido condenado, e descreveu com detalhe as torturas a que foi sujeito, na prisão de Caxias, durante os longos 21 dias de interrogatório, que fizeram dele o “preso mais torturado”, diz emocionado.
“Arranjaram umas mortalhas, eu escrevi as histórias todas numas folhinhas, enrolei aquilo tudo, cortei os cigarros a meio e, no fundo do pacote dos cigarros, pus lá tudo. No meu aniversário, na sala comum, levava na mão os cigarros, apesar de ter sido revistado. Como o meu irmão fumava dos mesmos cigarros, troquei o maço com ele”, conta José Pedro Soares.
Nos interrogatórios, em que apenas dormiu uma noite, recorda, “diziam que só saía para o cemitério se não falasse”. E José Pedro “nunca falou”, ao ponto de os seus “pés não caberem nos sapatos, ficar todo negro de tanto soco e puxão de cabelos e urinar sangue”.
O seu relato ecoou no estrangeiro, ao ser noticiado por uma rádio na Checoslováquia e, apesar de a notícia ter sido ouvida e transcrita pela PIDE (a polícia política portuguesa, Polícia Internacional de Defesa do Estado), contribuiu para aumentar o movimento de apoio aos presos políticos” e “dividiu” o fascismo.
“A luta dos próprios presos e das famílias melhorou. Já conseguíamos circular no pavilhão durante o dia e recolher à cela à noite, já tínhamos televisão”, exemplifica.
Numa passagem do ano, quando as medidas eram menos restritivas, os presos escreveram e encenaram uma peça de teatro, designada “A fuga do fascista”, em que uma das personagens, Popov, era um inspetor encarregado de recapturar os presos que tinham fugido e que usava ‘palavras caras’ em português, como ‘nefelibata’.
“O guarda ouviu e virou-se a dizer que não podíamos falar estrangeiro. O colega, que era professor de português, disse ao guarda que era português correto e o guarda respondeu que, se era português, era calão e também não se podia falar calão”, lembra Domingos Abrantes, acrescentando que “a festa de ano novo acabou” com “todos fechados nas celas”.
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