Vivemos melhor do que nunca - mesmo que não tenhamos consciência disso na maior parte dos casos.
Temos uma economia de mercado que funciona bem para muitas coisas mas que nos tornou uma sociedade de mercado - mesmo que não pensemos sobre o assunto na maior parte dos casos.

Vende-se ou aluga-se:

  • Uma cela mais cómoda de prisão. Por 82 dólares/noite pode ser comprada.
  • Acesso à faixa de rodagem prioritária para quem conduz sozinho. Por oito dólares em horas de ponta pode ser comprado.
  • Barrigas de aluguer indianas. Por 6250 dólares podem ser alugadas.
  • Direito de imigrar para os Estados Unidos. Com 500 mil dólares e criação de 10 postos de trabalho numa área de elevado desemprego pode ser comprado.
  • Direito de abater um rinoceronte-negro em vias de extinção. Por 150 mil dólares compra-se esse “direito” na África do Sul numa medida que o país define como incentivo à proteção (uma vez que se trata de licenças únicas num determinado período de tempo)
  • Espaço na testa para mensagens publicitárias. A companhia aérea da Nova Zelândia pagou 777 dólares por isso a 30 interessados.
  • Ficar na fila no Congresso americano a guardar lugar a um lobista que quer assistir a uma sessão. Quem o fizer recebe 15 a 20 dólares por hora.
  • Incentivar a leitura a alunos de escolas com baixas taxas de sucesso escolar. Uma escola em Dallas paga dois dólares por livro.

(exemplos que constam no livro “O que o dinheiro não pode comprar - Os limites morais dos mercados”, de Michael Sandel)

Contra ou a favor?

A Lisboa, Michael Sandel, professor de filosofia política na Universidade de Harvard e aquilo que se convenciona designar por rock star do pensamento contemporâneo, não trouxe estes exemplos; optou por temas menos “americanos” e mais “europeus”, como refugiados e poluição. Mas a pergunta que fez foi a mesma: está certo ou errado que países europeus possam pagar a outros países europeus para receber refugiados por eles no âmbito de um sistema de quotas? Está certo ou errado que os países mais desenvolvidos possam pagar a países menos desenvolvidos pela emissão de carbono para a atmosfera, permitindo que continuem a poluir?

Michael Sandel fez esta pergunta à plateia que encheu o Pavilhão Carlos Lopes, este sábado, para assistir à conferência organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre Ética, Valores e Política já depois de ter dito que a democracia não está em boa forma, que as pessoas não confiam nos políticos e que considera que têm razões para duvidar. Depois de ter também dito que a solução, na sua opinião, passa por haver uma maior ligação da ética e dos valores à política como antídoto para as duas fontes da raiva contemporânea: o vazio do discurso político e a gritaria do discurso político.

Mas ainda antes de ter afirmado que isso não tem acontecido porque discutir o que é certo e errado divide as pessoas e os políticos têm medo de conduzir discussões sobre as nossas diferenças.

Voltemos, por agora, à sala do Pavilhão Carlos Lopes e já agora, a si, caro leitor. Parece-lhe certo ou errado que se possa pagar para que outros assumam compromissos por nós, neste caso pelos Estados? Pagar para que outros lidem com o problema dos refugiados, pagar para que outros cumpram o que cabe a cada país para controlar a poluição - temas que, de uma forma ou de outra, nos afetam a todos enquanto humanos e mais ainda se partilhamos um mesmo território, a Europa?

créditos: Rute Sousa Vasco | MadreMedia

Na plateia, uma minoria levantou a mão quando questionada se concordava, uma outra minoria levantou a mão quando questionada se discordava, mas a maioria ficou de braços para baixo, imóvel. O que também diz muito. É quase impossível não pensar na abstenção em Portugal nas últimas eleições europeias, mas na realidade aqui a questão é provavelmente outra. Muitas pessoas na sala - como aliás é comum nas conferências em Sandel fala - simplesmente não estão habituadas a ser confrontadas com este tipo de questão. Precisamente, pela razão que o faz colocar estas perguntas: estamos pouco habituados a praticar o debate moral, a discutir o certo e o errado em público porque em temas como justiça, virtude, o que deve ser considerado uma boa vida, uma vida que faça sentido, divergimos uns dos outros e, nas últimas décadas, fomos incentivados a calar a divergência em público em nome da harmonia e conformidade social. “É tentador encontrar formas que não nos obriguem a discutir uns com os outros o que está certo ou errado. Pode parecer uma sociedade tolerante, mas não é. É vazio moral”.

E não só. Na perspetiva de Sandel, a economia de mercado, com a qual concorda como ferramenta, irrompeu pela nossa vida em sociedade e transformou-nos numa sociedade de mercado. E aí sim, encontram-se problemas, defende. “Se o dinheiro ou o poder pagar por algo só representa poder ter carros mais caros ou roupas de luxo, é uma coisa. Mas se passa a representar poder ter ou não acesso à saúde, educação e habitação, é outra”.

Façamos uma retirada estratégica da sala do pavilhão Carlos Lopes e vamos até Oxford, a uma conferência semelhante, com alunos universitários. Com o mesmo orador. Nessa conferência, disponível aqui, Michael Sandel levou outras questões.

Falou de um site, na China, que presta um serviço prosaico: pede desculpa por nós. Para aquela zanga com a mãe, o namorado, a melhor amiga ou até um colega de trabalho. Aquela em que estivemos mal, em que sabemos que devemos pedir desculpa, mas não o conseguimos fazer. Sem angústias, este site tem por negócio resolver isso por nós. Mediante um pagamento em dinheiro compramos um comportamento a que nos sentimos obrigados, mas que não conseguimos realizar.

Outra hipótese: discursos de casamento. O seu melhor amigo, irmã, filho, sobrinho, escolha, pediu-lhe que fizesse as honras da festa para o discurso, Não tem - ou não soube - como dizer não, mas não faz ideia, ou não lhe apetece, ou não tem tempo de o fazer. Por uns 150 dólares, um site, desta vez americano, também o faz por si.

Ou questões mais sérias. Por exemplo, doação de rins. Deve ser ou não possível comprar e vender rins como forma de resolver a escassez desse órgão para quem precisa de um transplante.

Sobre este último exemplo, precisamente por ser mais sério, vale a pena ouvir algumas das observações dos estudantes de Oxford. Uma estudante opõe-se à ideia explicando que quem vende um rim por precisar de dinheiro, mesmo que o decida em liberdade, nunca é realmente livre uma vez que para o fazer é porque não tem outras opções económicas. O que torna a situação desigual e injusta.

Outra estudante diz que o corpo humano não deve ser vendido às peças - “não somos carros” e daqui a discussão alarga-se a outras formas de venda de matéria humana, como o sexo na prostituição, ou inclusive o intelecto, no caso de cientistas ou artistas que o cedem em troco de dinheiro. O que mostra como estes debates fazem justiça ao aforismo das conversas e das cerejas - a certa altura, na plateia em Lisboa, um dos participantes recordou a frase do filme Fight Club: “we all have jobs to buy things we don´t need to impress people we don’t like” [todos temos empregos para comprar coisas de que não precisamos para impressionar pessoas das quais não gostamos].

O que é, realmente, fascinante de assistir, em Lisboa ou em Oxford, é como uma vez semeado o tema há tanto para discutir que envolve ética, valores e política. E como efetivamente estão - ou devem estar - ligados e se assim for será difícil que as pessoas massivamente possam responder “a política não me diz nada”.

Porque é que, para muitos de nós pelo menos, não está certo que um político possa comprar votos e assim ganhar eleições? Assumindo que iria ser um bom governante, porque é que ainda assim essa opção nos faria pensar, debater, discordar?

Porque é que, para muitos de nós, ter polícias e inspetores de finanças a cobrar impostos e a penhorar carros numa estrada não está certo, mesmo que a lei o permita e mesmo inclusive que concordemos que seria melhor o Estado conseguir cobrar todos os impostos necessários?

“O dinheiro muda o sentido das escolhas sociais e é por isso que a economia deve ser vista como um ramo da filosofia moral e política e não como uma ciência neutra em termos de valores”

Para Sandel, a resposta é clara. A economia, afirma, tem sido vista como uma ciência neutral no que respeita aos valores morais envolvidos e, na sua opinião, não é verdade que assim seja. “O dinheiro muda o sentido das escolhas sociais e é por isso que a economia deve ser vista como um ramo da filosofia moral e política e não como uma ciência neutra em termos de valores - foi assim que foi vista por Adam Smith ou Karl Marx apesar das suas diferenças”.

E foi assim que numa tarde quente de ainda primavera Sandel deixou o terreno aberto ao senhor que se seguia, Steven Pinker, canadiano naturalizado americano, também professor em Harvard, também ele uma rock star.

créditos: Rute Sousa Vasco | MadreMedia

Pinker quer mostrar evidências ao público que o ouve. Uma das suas premissas - já agora, não só interessante, mas que vale bem a leitura de um outro livro, de Alain Botton, precisamente intitulado “As notícias” - é que as notícias são sobre o que acontece e não sobre o que não acontece. O que quer isto dizer? Que sabemos mais sobre um crime concreto, o surto de uma epidemia, a falta de professores numa dada escola, isso são notícias, do que sobre estes temas num intervalo temporal maior. E nessa escala maior percebemos que a humanidade está hoje melhor do que alguma vez esteve, desde a esperança de vida, à mortalidade infantil, à frequência de guerras ou à liberdade de expressão.

Numa sequência de muitos gráficos representando estes e outros indicadores, Pinker trouxe também algumas histórias - ou dados factuais, como prefere sustentar as suas ideias - curiosos. Como por exemplo o facto de que uma mulher trabalhadora nos dias de hoje passar mais horas com os filhos do que uma mulher doméstica nos anos 50. Ou que mesmo países como a Síria, Líbano e Trinidad e Tobaggo deixaram nos últimos meses de considerar a homossexualidade como um crime.

“O progresso não é inevitável, sempre, para toda a gente; senão seria um milagre”

No seu último livro, “O iluminismo agora - Em defesa da Razão, Ciência, Humanismo e Progresso”, Pinker apresenta um conjunto de factos que, na sua perspetiva, mostram que “se nos vincularmos à razão, ciência e humanismo, o progresso continuará. Se não, não”. Na sua perspetiva, o progresso decorre dessas três forças que devem ser entendidas como os pilares da construção de uma vida melhor, ainda que alerte que “o progresso não é inevitável, sempre, para toda a gente; senão seria um milagre”.

A munição de gráficos - ou de factos, como prefere dizer - é para Pinker a forma mais eficaz de colocar as pessoas a pensar sobre o tipo de vida que temos e que queremos ter. “Não se trata de ser otimista, mas de colocar os factos do progresso porque a maior parte das pessoas diz-se pessimista, mas não os conhece”.

Os factos do progresso, ainda assim, não serão - tal como o próprio progresso - sempre inevitáveis. É o que se pode concluir quando se fala de alterações climáticas e da evidência que sabermos mais não tem conduzido a mudanças significativas. Pinker reconhece que assim é, que neste ponto “os factos não estão a ajudar”, mas que o liberalismo pode dar essa ajuda. Como? “As energias limpas devem ser mais baratas e as ‘sujas’ mais caras”, defende.

Já em tempo de debate, Sandel confessou que olhava para o iluminismo de Pinker com mixed fleelings [sentimentos contraditórios]. Sobretudo as duas componentes ilustradas nos gráficos exibidos pelo psicólogo, um sobre o liberalismo e outro sobre o cosmopolitismo. Sobre os valores liberais, Pinker afirmara minutos antes, que de 1960 a 2006, indicadores que são decorrentes como a tolerância, liberdade de expressão, reconhecimento dos direitos LGBT, melhoraram sempre. Sandel interpõe os seus mixed feelings - “são também esses valores, que nos trouxeram coisas boas, que firmaram para muitos uma fé absoluta no mercado e no capitalismo”.

Sobre cosmopolitismo, Pinker defende que é essa característica da nossa evolução enquanto sociedade que nos permitiu libertar de poderes absolutos como o da religião, patentes, por exemplo, na obrigatoriedade de casamentos sem a livre vontade dos próprios. Esse fim do “provincianismo” tem, no entanto, para Sandel outra face da moeda, o autoritarismo e a xenofobia que decorrem de muitas pessoas se sentirem com falta de “pertença”. “Isso não é iluminismo, é desorientação para muitas pessoas”. “Romantizámos a ideia do campo”, responde Pinker, suportando mais uma vez o que diz com os números que mostram que as pessoas quiseram e querem sair do campo para a cidade.

A discussão aqui aqueceu e aprofundou-se. Falou-se, por exemplo, sobre o que é uma “vida boa” ou o que faz uma “vida boa”. Estará evidente nos gráficos dos países mais felizes? Pinker menciona-os, evidenciam todos a associação virtuosa de razão, ciência e humanismo e a coexistência, já agora, de democracia e capitalismo. É por isso, diz a certa altura, que as pessoas iam da Alemanha de Leste para a Alemanha Federal ou vão hoje da Coreia do Norte para a Coreia do Sul e não o contrário.

Sandel, diz que os índices não medem tudo e acrescenta: “O que o liberalismo não percebe é que esses gráficos não medem tudo e que em nome da liberdade de cada um não se discute o que deve ser uma boa vida porque se deixa simplesmente a cada um essa decisão. O que é uma boa vida para mim não reflete o que é uma boa vida em si mesmo”.

“A única alternativa ao liberalismo é a religião a dizer-nos o que fazer? A única?”, pergunta Sandel a Pinker. Ficámos sem resposta,o debate estava no fim - e foi daqueles que soube a pouco. Porque estávamos precisamente a chegar ao ponto onde, presumivelmente, tanto Sandel quanto Pinker nos querem levar com as suas ideias e debates. E que anfitrião em palco, José Alberto Carvalho, sumarizaria minutos depois numa frase perfeita: “o que importa é sermos felizes ou dignos de felicidade?”.

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