Fez 90 anos no passado dia 3 de outubro, tinha apenas oito quando começou a Segunda Guerra Mundial e fazia imitações de bombardeamentos, para gáudio dos mais pequenos.

Foi deputado durante oito legislaturas e líder parlamentar durante treze anos — também esteve lá quando o partido ficou conhecido como "partido do táxi". Entre 1999 e 2005 foi ainda vice-presidente da Assembleia da República. 

Narana Coissoró nasceu em Goa e veio para Portugal aos 18 anos para estudar na Faculdade de Direito de Coimbra. Longe da causa política, o objetivo era, sem desvios, tornar-se advogado.

Depois do 25 de Abril o PSD seria, em princípio, a sua escolha mais lógica, mas a opção da mulher pelo CDS acabou com quaisquer dúvidas.

Hoje, apesar de distante do partido, continua a votar CDS, mas confessa que a atitude tem um quê de clubismo. Foi sempre assim.

Não gosta de se fixar no lado negativo das coisas e acredita que a vida é para ser vivida. "O ser humano é incompleto, não é sempre bom, tem as suas falhas. E a política não se pode levar como a Matemática".

Veio das Caldas da Rainha até Lisboa na companhia da sua filha Maria Helena para conversar com o SAPO24. Acabou a refletir sobre os políticos que tivemos no passado e os políticos que temos hoje. 

Nasceu em 1931, pouco depois veio a Segunda Guerra Mundial [1939-45]. Tem recordações desse tempo, quais?

Em 1939 tinha oito anos. Tenho memórias, mas mais de ouvir falar e de ler nos jornais. Lembro-me até de uma brincadeira que fazia: montava aquilo que seria um ecrã debaixo de uma cadeira e imitava os bombardeamentos: "Zzzzzvrraw pow!" E os amigos de quatro ou cinco anos, que estavam sentados ali à volta a ver, batiam palmas, todos contentes [ri]. Mas lembro-me também dos racionamentos, principalmente para o açúcar e o arroz. Havia grandes bichas. Recordo-me de ir com o meu pai logo às cinco da manhã e de ficar na bicha para obter o arroz do dia. Depois, claro, havia o mercado negro, mas era uma coisa muito cara.

Nasceu em Goa. Como era a vida no local onde morava?

Os registos dizem que nasci em Pondá, a 30 quilómetros da capital de Goa, Pangim. É a terra que tem um dos maiores templos hindu, e era à volta do templo que viviam as famílias religiosamente e socialmente mais conhecidas. Fiz lá o liceu, um bom liceu, com bons professores — e duas ou três professoras (Delfina Pinto, Joaquina Oliveira, Alice Ferro) que ficam na memória. Aos 18 anos vim para Portugal como estudante.

Foi para a Faculdade de Direito de Coimbra. Já estava decidido que viria para Portugal, onde faria Direito?

Sim, sim. A minha família estava ligada aos tribunais, eram juristas, de modo que sabia que essa seria a minha via. Na altura ou se fazia o curso na União Indiana, em Bombaim — mas era "Common Law" [Direito Comum], e isso só era viável em Goa — ou vinha-se para Portugal. 

Apanhou a ditadura e a crise académica de 1962. Já pensava em política?

Toda a minha formação em Coimbra foi durante a ditadura, e passei por todas as crises estudantis. Recordo-me da repressão, da falta de liberdade, da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], das prisões políticas... Não tenho boas recordações. Mas nessa altura ainda estava longe da política, tinha consciência de que o meu pai fazia sacrifício para me manter na faculdade, o meu objetivo era entrar na universidade e fazer o curso, não era perder tempo em lutas políticas da oposição. Porque o castigo, que era a prisão, era muito severo. 

Ficou em Portugal...

Também, não havia muito para onde ir; ou voltava para Goa, e aquilo era uma coisa pequena, ia para magistrado do Ministério Público, juiz no mesmo circuito de comarcas, ou podia ter outros voos. Preferi ter mais voos.

"A minha vocação, na altura, era mais para o PSD. Mas depois era um problema, a minha mulher no CDS, eu no PSD..."

Em que voos pensava?

Pensava ser professor universitário, antes de mais. Depois, gostava de levar uma vida numa cidade grande, de não estar reduzido às mesmas ruas, às mesmas famílias, às mesmas coisas, aos mesmos problemas. Coimbra tinha um ambiente mais aberto, gostei de lá estar. 

Mas Portugal, nessa altura, não era propriamente aberto e cosmopolita.

Não, não era. Era muito provinciano, sobretudo Coimbra.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Aquela velha pergunta, onde estava no 25 de Abril?

Soube do 25 de Abril no próprio dia. Mas na noite de 24 para 25 de Abril estava no Teatro Monumental, no cinema. À saída vi passar as primeiras chaimites e pensei para mim, "o que se estará a passar?". Quando acordei na manhã seguinte já estava a dar a notícia na rádio. Saí de casa e fui para o Largo do Carmo ver passar as chaimites. Lembro-me perfeitamente bem, foi uma grande alegria, uma grande descompressão. E durou muito tempo, mas depois veio o Verão Quente, a revolução a comer os seus próprios filhos. 

"Nada foi por acaso ou por falta de atenção, mesmo que possa ter sido um mau passo. É preciso tropeçar para andar"

Foi então que decidiu entrar para a política?

A política era a profissão da minha família, dos meus tios, do meu pai, eram todos políticos e politiqueiros (digo politiqueiros porque o meio era pequenino [ri]). Em Goa havia o governador e um Conselho do Governo, que tinha membros natos, como o diretor da Fazenda ou o diretor da Administração Pública, que ali tinham lugar por inerência. Cinco membros do Conselho do Governo eram eleitos pelos chamados maiores contribuintes, e a minha família tinha sempre um lugar no Conselho do Governo pelos maiores contribuintes — era um tio que ocupava o lugar, o meu pai era mais pacato.

A política não era nova na sua vida. Mas o que o levou a escolher o CDS?

Pergunta bem... Foi mais por causa da minha mulher, que se meteu na política logo quando se começaram a formar os partidos. Quem se filiou logo no CDS foi a minha mulher. A minha vocação, na altura, era mais para o PSD. Mas depois era um problema, a minha mulher no CDS, eu no PSD... De modo que para evitar confrontos... Além disso os partidos eram muito próximos. 

Nunca se arrependeu da escolha que fez?

Não, nunca me arrependi de nada do que fiz. Fui sempre uma pessoa ponderada, que pensou antes de dar um passo. Todas as minhas escolhas não foram por acaso. Cometi erros, mas foram decisões pensadas, erros inteiramente assumidos, escolhas minhas. Nada foi por acaso ou por falta de atenção, mesmo que possa ter sido um mau passo. É preciso tropeçar para andar.

Olhando para trás e para o percurso que fez no CDS ao longo dos anos, como vê hoje o partido?

Não vejo. Voto CDS, mas costumo dizer que, se pusessem um macaco à frente do partido, eu votava no macaco.

Isso é um pouco clubístico, não?

É muitíssimo. Mas na política tem de ser assim, não se pode andar sempre a mudar. Faz-se a escolha porque o partido está a contar connosco e nós contamos com o partido, não andamos sempre a brincar.

"Ser político porque sim, votar como um carneirinho, isso não dá"

O partido não muda, também? 

Talvez. Mas não tive nenhuma razão para me queixar do CDS, e o CDS também não teve razões para se queixar de mim. Aguentei o CDS na Assembleia da República durante muito tempo, até quando foi o partido do táxi. Fui líder parlamentar durante muito tempo. 

Era um Parlamento animado...

Era, e havia foco, havia referências, havia deputados que falavam e para quem as pessoas olhavam, ouviam o que eles diziam. Agora não. 

O Parlamento é um fórum de debates, e quanto mais vivos, melhor. Agora, viver da política é só para poucos e não é muito aconselhável.

Porquê?

Porque a política tem de ser independente. Quem se mete na política verdadeiramente tem de ser independente. Ser político porque sim, votar como um carneirinho, isso não dá. Mas confesso que estou afastado dessas lides; sei quem são os líderes, o que pensam — ou o que dizem pensar —, mas estou desligado da política. Nem me faz falta. Reformei-me — e continuei a fazer o mesmo que quando não era reformado [ri]. 

Como passa os seus dias?

Leio. Leio alguns textos nacionais, leio livros, agora mais biografias. A última que estou a reler é de Gandhi, "Gandhi — A Minha Vida e as Minhas Experiências com a Verdade". Estou a lê-lo pela segunda vez, e descubro sempre coisas novas. Há sempre coisas novas que surgem, mal de nós se não vemos coisas novas. Gosto de biografias, sobretudo para perceber como são considerados hoje aqueles que eram do nosso tempo quando éramos novos e fazíamos política. O que agora se pensa daqueles anos e o que nós pensávamos na altura. É um bom exercício — e que geralmente não se faz, ou, pelo menos, não tenho visto fazer. Gosto de fazer este exercício, embora não faça publicidade disso. 

E a que conclusões chega quando faz essa reflexão?

Penso que a política é hoje mais profissional, tem um cariz mais substantivo, melhorou bastante a esse nível. Os políticos têm hoje mais qualificações do que tinham antes. A maneira de fazer política também mudou; antigamente era mais centrada em pessoas, hoje é mais centrada nos partidos. No meu tempo sabia-se quem era do PS, mas não propriamente o que era o PS. Por exemplo, sabíamos quem era Mário Soares, mas não o que era o PS de Mário Soares — e ele, se calhar, também não sabia [ri]. O Partido Comunista era o Cunhal. Ele sabia o que queria, o partido talvez não soubesse.

"Somos todos responsáveis pelos políticos que temos, que não são geração espontânea"

Isso é bom ou mau, tem mais de positivo ou de negativo?

O que tem de positivo é que há mais procura de ideias do que propriamente de personalidades. As personalidades são dispensáveis, hoje ninguém diz que está no PSD porque é lá que está Rui Rio ou outro. Antigamente era assim, o PSD era Sá Carneiro, como o CDS era Amaro da Costa e Freitas do Amaral, ou o PC era Álvaro Cunhal. Também era positivo, porque sabia-se o que pensavam estas grandes personalidades, que são fundadoras da democracia portuguesa. Hoje não sabemos necessariamente o pensamento dos líderes dos partidos. Hoje, dizem, o líder do CDS é o Chicão. Quem é o Chicão, que ideias tem, o que afirmou, o que trouxe de novo, o que representa? Tenho dificuldade em saber isto. E leio bastante, gosto de me informar.

O afastamento dos eleitores pode ter que ver com isso?

Não. Penso que é a própria maturidade democrática que leva a isso. Passou a ser uma coisa normal e não uma obsessão, uma fixação das pessoas. No princípio da democracia, quando não havia partidos e estes começaram a ser criados, era próprio que as pessoas discutissem, escolhessem, tomassem partido. Hoje, é como se a circulação, o sangue da política, se fizesse já normalmente. Os políticos de hoje não são melhores, nem piores, cada geração tem os seus. Os políticos não são geração espontânea, nascem na estufa que criámos. Ninguém proíbe as pessoas de defenderem ideias e mostrarem que é preciso abrir caminho para outras maneiras de pensar, mas é preciso saber que liderança seria hoje aconselhável e, depois, é preciso perceber se há falta de líderes ou se há falta de condições para afirmação desses novos líderes.

As novas gerações já nasceram com a democracia, assim como nasceram com a União Europeia.

Gostava de saber, realmente, o que sabem as gerações mais novas sobre o bom e o mau de estar na União Europeia. Penso que a maioria não sabe, mas isso não é apenas em Portugal, é em todos os países.

"Quem é o Chicão, que ideias tem, o que afirmou, o que trouxe de novo, o que representa? Tenho dificuldade em saber isto"

Lembro-me das expectativas criadas e dos discursos político da altura: íamos sair da cauda da Europa.

Para nós era fatal entrar, Portugal não podia ficar isolado. Hoje há uma certa frustração, confesso que não gosto de ver Portugal perto da cauda.

O que falhou, o que não nos deixa avançar?

Essa é a tal pergunta do milhão de dólares. Mas claro que a política tem tudo a ver com isso. Mas temos de pensar que também fizemos coisas que outros países não fizeram, fizemos as Descobertas.

O embaixador José Cutileiro costumava citar o pai, que dizia que não somos os que fizeram as Descobertas, somos os que ficaram. 

[Ri] Pois, é o velho do Restelo. Não acredito no discurso do "antigamente é que era", isso é o fado choradinho, a frustração. Um país que está em desenvolvimento não tem esse tipo de conversa, que representa um atraso de desenvolvimento e civilizacional. Mas estamos a libertar-nos disso. Hoje temos a perfeita consciência de que não podemos viver como vivíamos há uns anos. De qualquer forma, 40 ou 50 anos na idade de um país é pouco. Veja, o que sabemos sabemos nós da Primeira República portuguesa? E não há censura, podia haver uma luz sobre o que foi o fim da monarquia, o princípio da República até ao Estado Novo, mas há uma grande escuridão sobre esse período. A ditadura, quando chegou, era benévola, depois é que foi transformada numa autocracia. Mas no princípio era um movimento moral contra os desmandos da República, a falta de qualidade política.

Quando é que deixou de ser benévola para passar a ser malévola?

Salazar viveu tempo de mais. Devia ter saído antes. Mas, perante o que sucedeu naqueles tempos da Primeira República, algum controlo do Estado era desejado pelo povo. Não era a ditadura, mas a ordem, a lei e a ordem. A questão é que não é só falta de ambição ou de bom governo, temos tudo em banho-maria, é tudo comme ci, comme ça, o governo, a oposição... Mas não precisa de uma pessoa de 90 anos para obter a receita, o que precisa é que homens de 45 ou 50 anos tenham a receita. A política é como um elixir da vida, portanto, precisa de um corpo e de substância para esse corpo. No plano político, no entanto, o novo só surge depois da boa compreensão do passado. Um político não pode ser bom político se não tem uma boa noção do passado — e pode até ter uma visão diferente dos demais, não tem de ter uma visão monolítica da história. Mas sabe, a vida é para se viver. O ser é incompleto, não é sempre bom, tem as suas falhas, a sua própria natureza, o seu ambiente, as suas escolhas, a sua visão, a sua marca do passado. Não se pode levar como a Matemática.

Se tivesse de apontar um problema estrutural a Portugal, algo que é fundamental mudar, o que seria?

A educação. É preciso fazer um grande investimento no ensino. Que é o principal elevador social. Parece daquelas coisas que toda a gente diz, mas é mesmo verdade.

Cinco coisas que não dispensa no seu dia a dia?

Um livro. Uma boa viagem. A boa companhia — não sei como seria a vida se estivesse isolado. E, não leva a mal que diga, mulheres [ri].

Qual foi a última vez que viajou?

Foi há três anos, a Nova Iorque. Das melhores viagens que fiz foi ao Brasil — gostei muito de estar em São Paulo e em Belo Horizonte. Também gostei muito do Canadá. E de Nova Iorque, está claro, por isso regressei.

E a Goa, regressou?

Muitas vezes. Quase sempre de quatro em quatro anos. Mas a evolução aí, é muito mais parada, muito lenta. Muito mais do que em Portugal (talvez não seja assim em Nova Deli e Bombaim).

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