Os livros de História de Portugal não lhe dedicam grande atenção, mas o mesmo não se passa na Áustria – não apenas nos livros, mas incluindo um documentário que está a ser produzido sobre a sua vida. Chamava-se Leopoldina, descendia da mais importante família europeia do século XVIII, os Habsburgo, filha do imperador Francisco I da Áustria e cunhada de Napoleão Bonaparte que foi casado com a sua irmã mais velha.
O historiador Paulo Rezutti, autor de “D. Leopoldina — A história não contada: A mulher que arquitetou a Independência do Brasil”, defende no livro que foi em grande parte graças a ela que o Brasil se tornou uma nação. Isabel Lustosa, cientista política brasileira, investigadora do CHAM/Universidade Nova e autora de uma das biografias de D. Pedro, diz que não é bem assim que D. Leopoldina teve grande influência sobre o ânimo do marido para que aderisse à Independência mas que outros fatores foram fundamentais para o acontecimento.
O interesse dos media pelo papel da mulher de D. Pedro na Independência é recente e, antes, a sua imagem esteve sempre muito associada à da amante do marido, Domitila de Castro, cuja história inspirou novelas e filmes. Mas, na verdade, esta era, no mínimo, uma forma injusta de ver e tratar D. Leopoldina, já que ela foi muito mais do que “mulher de” alguém. A sua relação com o imperador do Brasil e, depois, rei de Portugal, revela também uma outra história.
Na biografia de D. Pedro, escrita e publicada em 2006 e que este ano está em sua 5ª edição pela editora Companhia das Letras, Isabel Lustosa inclui como subtítulo: “Um Herói sem nenhum carácter”. Em conversa com o SAPO24, à luz das comemorações dos 200 anos do Brasil e também do atual clima político, a autora explica o retrato que resultou da investigação para o livro.
“D. Pedro é o herói fundador na história de dois países: o Brasil, do qual proclamou a independência e Portugal, a que deu uma Constituição, pela qual lutou garantindo a afirmação da ordem política liberal no país. Mas, como todos os heróis era um ser humano cheio de imperfeições e, como a história oficial dos países se constrói a partir da elevação dos grandes heróis pátrios, esses aspectos negativos costumam ser atenuados ou mantidos à sombra”.
O lado negro da imagem de D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal está associado especialmente à forma como como tratou D. Leopoldina depois que se intensificou a sua ligação com Domitila de Castro. O casamento dos dois príncipes fora articulado no contexto do Congresso de Viena de 1815 em que os poderes europeus redesenharam o mundo após as invasões francesas. Para Portugal, o casamento do príncipe herdeiro com a filha do arquiduque da Áustria era uma forma de “reduzir a influência opressiva da Inglaterra”, nas palavras de Isabel Lustosa, e para o império austro-húngaro era uma forma de ter presença na América, continente sobre o qual não tinha nenhum ascendente.
“D. Leopoldina estudou na corte mais sofisticada da Europa à época. Privou com grandes nomes como Schubert e Goethe, tinha um interesse muito grande por ciências naturais e por mineralogia em particular”, descreve a académica. Já D. Pedro, continua, “era rebelde, impetuoso, pouco culto, mas inteligente, intuitivo e dotado de um certo talento musical”.
Os historiadores concordam que os primeiros anos deste casamento foram felizes e D. Leopoldina, apesar de discreta, ganhou confiança sobre o marido, pelo conhecimento que tinha e pela forma como efetivamente se interessou pelo Brasil.
Quando aconteceu, em Portugal, a revolução liberal de 1820, D. João VI pensou em enviar o filho o lado de cá do Atlântico. “No entanto, D. João VI temia que d. Pedro acabasse por ser aclamado rei em Lisboa. Por isso considerou a possibilidade de fazer com que a nora, grávida do segundo filho, ficasse no Brasil, numa espécie de chantagem”.
A resistência de D. Leopoldina a esse projeto foi imensa. Ela não queria ser separada do marido, pois temia que o reencontro, se houvesse, fosse retardado pela situação de instabilidade própria daquele período. O casal acabou por ficar no Brasil como príncipes regentes e foi nesse contexto que as decisões das Cortes Portuguesas, formadas depois da Revolução de 1820, começaram a desagradar os brasileiros.
É precisamente durante este período que D. Leopoldina começa a ter uma visão mais clara sobre o Brasil que, cerca de um ano mais tarde, a projetaria para um papel importante, ainda que discreto, enquanto influenciadora da independência do país. É também neste tempo que ela estabelece uma relação de proximidade com José Bonifácio, maior figura da ilustração luso-brasileira com a qual a futura imperatriz teria grande afinidade.
Tudo concorre para que, em dezembro de 1821, quando as cortes de Lisboa decidem que D.Pedro deixará de ser regente do Brasil e terá que retornar a Portugal, a princesa tenha um papel influente na rejeição dessas ordens. Em agosto de 1822, aquando de uma reunião do conselho de Estado que lhe coube presidir na ausência de D. Pedro que viajara a São Paulo [a corte ficava no Rio de Janeiro], conclui-se que era hora de romper com Portugal. Em carta enviada ao marido, dando conta das decisões de Lisboa, sugere que ele devia decretar a independência, atendendo ao clima político de insatisfação, nomeadamente com a proposta dos liberais portugueses de dividir o Brasil em várias províncias submetidas a Portugal.
Esta reunião do conselho de Estado – “com poderes muito relativos e não plenos”, sublinha Isabel Lustosa – e o envio subsequente da ata dessa reunião e da carta acima citada foram os únicos momentos públicos da atuação da futura imperatriz no processo. Momentos que, no entanto, foram obscurecidos pela situação que a fez ficar em segundo plano durante o resto de sua vida conjugal.
“Só recentemente, D. Leopoldina passou a receber maior atenção dos estudiosos e alguns chegam ao ponto de dizer que foi ela quem fez a independência. Não fez, mas teve um papel muito importante influindo sobre o ânimo do marido. Conhecendo as qualidades intelectuais e morais expostas nas suas cartas, podemos concluir que, se essa influência tivesse se mantido D. Pedro I teria feito um reinado muito melhor do que fez”.
Tanto a valorização como o reconhecimento não são indissociáveis da etapa “negra” na relação com D. Pedro e que tem início no ano a seguir à independência. Não por razões políticas, mas por razões sentimentais. D. Pedro nunca foi um marido fiel, mas mantinha o ascendente da mulher face às demais relações. Quando se apaixona em 1822 por Domitila de Castro, que se tornaria a Marquesa de Santos, a história do casamento – e do Brasil, em certa medida – muda.
“A primeira filha de D. Pedro com Domitila foi reconhecida por ele e levada a conviver com as filhas de D. Leopoldina no palácio de S. Cristovão onde a família vivia. A paixão do Imperador fez com ele fosse dando posições de cada vez maior destaque à amante, fazendo-a dama da imperatriz. Domitila também obtém empregos e boas posições para a sua família e, mais de uma testemunha a associa a casos de corrupção. Com o rompimento das relações de D. Pedro com o seu ministro, José Bonifácio, amigo da imperatriz e inimigo da amante, o isolamento de D. Leopoldina vai se tornando cada vez mais dramático.”
Este período termina com a morte da imperatriz em circunstâncias que consubstanciam, no tempo presente, a chamada “lenda negra” de D. Pedro, uma vez que terá morrido dias após uma discussão com o marido em que há referências a uma agressão física de que teria sido alvo por alguns testemunhos da época.
“O embaixador francês na corte do Rio de Janeiro relata que no dia seguinte a imperatriz apareceu com hematomas, mas o episódio não tem como ser confirmado. A imperatriz morreu pouco tempo depois em sequência de um aborto”, conta a Isabel Lustosa. “Mas é um facto que nessa altura ela era uma mulher já muito fragilizada, vivendo uma situação humilhante em todos os sentidos que lhe fizera entrar em um processo depressivo. As cartas que escreve à família e que são uma das fontes pelas quais se conhece o que lhe aconteceu, mostram isso também”.
200 anos depois, a imperatriz Leopoldina tornou-se no Brasil contemporâneo uma figura que simboliza algumas das divisões do país, nomeadamente no que respeita ao papel das mulheres, à corrupção e ao papel da cultura e da educação.
Isabel Lustosa não se espanta que em Portugal o seu nome seja pouco conhecido, pois D. Leopoldina nunca cá esteve. No entanto, a autora chama atenção para o contraste entre o tempo que passou sendo tratada como personagem secundária, ou mesmo inexistente, nos acontecimentos relativos à Independência, até ao momento atual em que se tornou uma personagem central.
"Talvez pela necessidade atual de defender o lugar da mulher na história, se tenda a exagerar um pouco. No entanto, o reconhecimento da personalidade inteligente, generosa, sensível e moralmente inatacável de uma mulher que foi vítima de um casamento infernal será sempre bem vindo mesmo que implique em manchar a imagem de um herói que, desde ponto de vista foi muito pouco heróico".
Não se trata de uma "guerra das rosas" com marido e mulher, imperador e imperatriz, português e austríaca em dois lados da barricada. Mas a projeção da figura de D. Leopoldina no Brasil de hoje é também uma forma de discutir visões para o país, à luz das identidades e da herança histórica.
Comentários