"Foram medidas excessivas? Eh pá, eu de política não sabia nada, era mais coisas do coração do que estar a pensar nas consequências e nos partidos. Estava a usar a legitimidade revolucionária", confessa Otelo Saraiva de Carvalho numa longa conversa que tivemos em 2017 sobre o Verão Quente de 75.

Era o tempo do PREC, o Processo Revolucionário em Curso, e os acontecimentos sucediam-se em catadupa: nacionalizações, reforma agrária, eleições para a Assembleia Constituinte, o debate entre Soares e Cunhal e o célebre "olhe que não, olhe que não", assaltos às sedes dos partidos, cerco à Assembleia Nacional e a independência de Angola, que marca o fim do império colonial e o regresso dos portugueses à Metrópole.

Otelo Saraiva de Carvalho, herói do 25 de Abril, via toda a agitação, mas estava demasiado enfronhado no COPCON - Comando Operacional do Continente para ler os sinais. E relata três episódios que refletem o alvoroço da época.

Às 5:30 da manhã começava a formar-se uma fila no COPCON, um quilómetro de gente que ali se deslocava para pedir apoio ou sugerir medidas. Otelo chegava às nove em ponto, fazia um briefing com o seu pessoal para se inteirar do que havia e dispunha-se a receber comissões de trabalhadores e gente que vinha queixar-se dos patrões que tinham abandonado fábricas e terras. "Eu pensava: e agora, o que é que eu faço? Não tinha experiência de nada... E fui tomando medidas".

Foi assim, por exemplo, com a ocupação das terras. "Um dia chegam uns trabalhadores do Alentejo, muito aflitos, porque o Vasco Gonçalves tinha dito que ia haver uma reforma agrária, que os latifúndios iam ser entregues aos trabalhadores, mas já se tinham passado meses e nada. "Todos os dias vemos os patrões levarem maquinaria agrícola e gado para venderem em Espanha. Quando nos for dada a terra, já só temos a nossa enxada". Decidi que agarrassem nas caçadeiras para defender as terras a tiro caso alguém quisesse levar alguma coisa. Diziam que não podia ser, que a GNR os expulsava. Dei-lhes a minha palavra que isso não aconteceria e fiquei de dar essa indicação na reunião do dia seguinte, em que estava sempre um oficial da GNR e um oficial da PSP de Lisboa. Em poucos dias foram ocupados 1,2 milhões de hectares. No dia seguinte "A Capital" publica na última página a fotografia de um alentejano, em sombra, de caçadeira ao ombro. Vieram a correr ter comigo: "Já viste isto?""

Noutra ocasião, Silva Graça, um amigo a quem recorreu quando pensou em assaltar Caxias, convida Otelo para jantar em sua casa. "Chego às oito, como combinado, e ele bate à porta da sua sala antes de entrar: "Dá licença?" Sentado a uma mesa de jantar preparada para dois está Álvaro Cunhal - um tipo que tinha sido expulso do partido tinha agora na sua casa Álvaro Cunhal?! Começámos a falar e o Silva Graça vai para cozinha, onde janta com a mulher e as filhas, vinha de vez em quando perguntar se estava tudo bem, como se fosse um empregado. Na sua própria casa! Fiquei lixado. Perguntei para que era a conversa a dois, e o Cunhal começa a dizer que o Movimento das Forças Armadas devia ter feito isto e aquilo e o outro... Respondi-lhe que não admitia que criticasse o MFA, nem as ações que levava a cabo, nem tão pouco a mim, isso cabia aos meus camaradas e ao Conselho da Revolução. "Ah, não vinha aqui com essa intenção...", responde ele. "Então, este jantar está terminado". E fui-me embora".

Segundo Otelo, Cunhal queria propor-lhe uma "grande aliança de esquerda: "Como se o PC, estando agora em baixo, fosse ter com a Catarina Martins [coordenadora nacional do Bloco de Esquerda] para fazer uma união", remata.

São tempos estranhos, e António Champalimaud, dono da Siderurgia Nacional, quer conhecer Otelo. Curioso, insiste com Ricardo Bayão Horta, com quem trabalha desde 1958, para promover o encontro. Bayão Horta conhece Otelo dos tempos da Academia Militar, vinha ele do Colégio Militar e Otelo chegava de Lourenço Marques (atual Maputo) para integrar a Escola do Exército. Quase sem família em Portugal, Otelo estabelece uma forte relação com Ricardo e acaba mesmo por convidá-lo para padrinho de batismo da sua filha mais velha, Paula. Os dois compadres falam e acertam o almoço em casa de Champalimaud.

Contam alguns que está António Champalimaud à janela, na Rua do Sacramento à Lapa, quando vê chegar uns jipes que bloqueiam um e outro lado da rua; de uma chaimite que pára mesmo à frente da casa, ao lado da Embaixada Americana, sai Otelo Saraiva de Carvalho, vestido de camuflado e de pistola à tiracolo. Sobre a sua chegada, Otelo diz que não foi nada assim, mas confirma o almoço e o teor da conversa.

António Champalimaud recebe Otelo com baixela de prata e criado de libré. Durante o almoço procura inteirar-se da situação (a Siderurgia ainda não tinha sido nacionalizada): que ideias tem o MFA para o país? Otelo lá vai explicando, que é difícil um capitalista saber o que é a social-democracia e talvez por isso não compreenda como é possível haver dinheiro para todos, casas para todos, carros para todos, empregos para todos.

No final do almoço, Ricardo Bayão Horta desculpa-se com António Champalimaud por o encontro não ter tido os resultados que este esperava. Champalimaud responde: "Está enganado, fico a dever-lhe este favor para o resto da vida. Amanhã vou-me embora". E foi.

Otelo queria ser ator como o avô paterno que lhe deu nome e que, por ser baixinho e gordo, nunca conseguiu outros papéis além do de mordomo, apesar de se ter formado no conservatório, em Lisboa, com 20 valores.

Já casado e com a sua própria companhia de teatro, o avô Otelo vai em tournée para Angola, e é lá que morre aos 44 anos, subitamente, de acidente vascular cerebral, deixando mulher e três filhos. O mais velho, Eduardo, tinha 17 anos e viu-se obrigado a deixar o Liceu Camões e o sonho de ser oficial da Marinha para procurar emprego e ajudar a sustentar a família.

Acabaria por escrever a um tio, cunhado da mãe, que era inspetor dos CTT em Moçambique, a pedir ajuda. E lá foi para Lourenço Marques com a mãe e irmãos. Aí colaborou também com a Rádio Clube de Moçambique, a convite de Sara Pinto Coelho, mãe do jornalista Carlos Pinto Coelho. E, recordando o tempo dos bastidores, em miúdo, sempre foi encontrando maneira de se manter ligado ao teatro.

Conhece Fernanda Áurea Pegado Romão, mãe de Otelo, ao 17 anos, ela 16. E talvez por ter visto os seus sonhos desfeitos e a vida difícil que levara à morte do pai, quando o filho lhe diz que quer matricular-se no Actor's Studio, em Nova Iorque, e seguir a carreira de ator, a resposta não se faz esperar: nunca.

Do lado materno as coisas eram bem diferentes. O pai da mãe, que também vinha de uma família pobre, não teve grandes opções: ou ia para o campo ou para o seminário ou para a tropa. Escolheu a tropa. Na madrugada de 4 para 5 de outubro, quando estoirou a revolução, estava como sentinela na Escola Prática de Infantaria de Mafra. Pouco depois oferecia-se para ir para Goa, na Índia portuguesa, onde esperava conhecer mundo e viver aventuras. Por lá casou e teve duas filhas, mais dois filhos já em Lisboa, a quem tratou quase sempre como recrutas. Apesar das revoltas dos filhos, rapazes e raparigas, Otelo e as duas irmãs adoravam o avô materno, que parecia fazer com os netos tudo aquilo que tinha negado aos filhos.

Otelo Saraiva de Carvalho nasce em Lourenço Marques a 31 de agosto de 1936, o ano em que é criada a Mocidade Portuguesa, o campo de concentração do Tarrafal e em que que o lutador de boxe inglês Victor McLaglen ganha o Óscar de Melhor Ator contra Clark Gable.

Muitos anos mais tarde, também Otelo teria o seu momento "Óscar", mas a coincidência fica-se pelo nome de código que usou no 25 de Abril (O de Otelo, S de Saraiva, Car de Carvalho = Óscar). Foi no início dos anos 2000, quando protagoniza o clip erótico "A Revolução Falhada", com a atriz Julie Sergeant, que termina com os dois a rebolar no chão repleto de cravos, ela nua, ele nem tanto.

Da autoria e produção de Felícia Cabrita e Júlia Pinheiro, "Sex Appeal" teve duas temporadas de vinte episódios cada, exibidas na SIC às sextas-feiras à noite entre 2000 e 2002. O segmento mais polémico era o do videoclip erótico semanal. Este em particular acabou por gerar uma enorme polémica, que ainda baixou à Assembleia da República.

Esta excentricidade está longe de ter sido a primeira. Muitos anos antes, Otelo Saraiva de Carvalho casou. Com duas mulheres; primeiro Dina, colega de liceu, depois Filomena, que conheceu na prisão de Caxias, muito anos mais tarde. Assumiu a bigamia e dividia a semana entre as duas casas.

Do casamento com Dina nasceram três filhos: Paula, Cláudia e Sérgio (1965), todos antes da segunda comissão, em Angola. A morte de prematura de Cláudia, aos 9 anos, com paludismo, abateu-se sobre a família como uma bomba. Dos três filhos, era a mais parecida com o pai - até no jeito para a representação e as imitações. Era com ela que Otelo mais se ria. Nada voltaria a ser como antes.

Sérgio continuou na Guiné, mas Paula foi mandada para a Metrópole logo em setembro, um mês depois da morte da irmã, para estudar no Instituto de Odivelas, em Lisboa (onde voltou a ser colega de Teresa Leal Coelho).

Otelo não foi sempre traquina. Até aos cinco anos, aliás, era um paxá, dizem. Aos cinco contraiu malária e viajou sozinho para Lisboa a conselho do médico, 45 dias no mar, com escalas em diversos postos. A irmã mais velha, Manuela, já estava na capital, também com paludismo. Durante anos, as idas e vindas foram quase constantes e a vida de Otelo e irmãs corria entre a Metrópole e Moçambique.

No liceu era irrequieto nas aulas e chumbou algumas vezes. Durante um longo período, o passatempo de Otelo e Manuela foi fazer uma biblioteca. Que construíram de raiz, na garagem da casa, com prateleiras de madeira, estantes de cima a baixo. Depois abriram a biblioteca ao público. Podia ser utilizada por todos, no local, onde havia mesas e cadeiras, ou em casa de cada um. Otelo até inventou uma multa para quem se atrasasse na devolução dos livros: um escudo por cada cinco dias. Ali havia um pouco de tudo, de Sandokan, à Colecção Azul, passando por Sherlock Holmes, e depressa a biblioteca fez furor.

Otelo nunca desperdiçava uma oportunidade de representar. Na prova do 5.º ano do liceu, em Lourenço Marques, o professor deu-lhe para ler o Auto da Alma, de Gil Vicente. Ele pegou no livro e, em vez de ler, representou a peça. O professor gostou tanto que o convidou para chefiar a secção de teatro do liceu.

Nesse ano, a Rádio Clube de Moçambique organizou um concurso para cançonetistas. Otelo inscreveu-se. Preparou uma versão de "Papaveri e Papere", mais falada do que cantada, e a plateia delirou com os gestos e as vozes. Ficou em primeiro lugar.

Em Lourenço Marques, como funcionário dos Correios, o pai de Otelo recebia da União Nacional um boletim de voto. Era cor-de-rosa, para se distinguir dos brancos, da oposição. Eduardo ficava confrangido e, já adolescente, Otelo gostava de o espicaçar: "Não vás votar, rasga isso". Mas o pai ia sempre, com receio de ficar na lista dos que não votam, com o perigo de ser despedido da função pública. Este era um respeitinho que revoltava Otelo. E assim começa a tomar consciência política.

Na Mocidade Portuguesa, para onde só entrou por causa do teatro, as notas eram tão más que o sargento de Infantaria que dava instrução à milícia vaticinou: "Não tem a menor vocação para a vida militar". O destino encarregou-se de provar o contrário - e a insistência dos pais, que achavam que só nas Forças Armadas Otelo teria a disciplina de que necessitava, também.

Otelo ia à Academia Militar duas vezes por semana para ter explicações de Matemática com um aspirante de Engenharia. "Chumbei todos os anos a Matemática, mas só podia terminar o 7.º ano do liceu com a Matemática feita". A cisa corria de tal maneira mal, que numa oral o major Alcides Oliveira acabou por lhe dar mais uma hipótese: "Bem, Saraiva de Carvalho, vamos fazer as coisas assim: sei que faz para aí umas imitações, entre as quais a minha. Vou dar-lhe uma última oportunidade: você vai imitar-me e se eu gostar da imitação, tem um dez, se não gostar, chumba". No final foi aplaudido pelo professor e teve o prometido 10.

Foi na Academia Militar que Otelo conheceu Ramalho Eanes, um cadete finalista que o impressionou pela figura. "Ficámos amigos". E viriam a encontrar-se mais tarde, na Guiné, onde Saraiva de Carvalho cumpriu a sua terceira e última comissão de serviço.

Na Guiné havia uma secção de apoio aos soldados a que chamavam Pifas - Programa de Informação para as Forças Armadas - e uma outra para línguas nativas e francês. Era aí que passavam as locuções de Spínola, não sem antes este as ter escutado de fio a pavio.

Spínola gostava de fazer visitas surpresa aos quartéis. "Fazia as coisas tipo Trump, à bruta", conta Otelo. Mandava formar um batalhão e perguntava aos soldados que queixas tinham: comida, camaratas, roupas, o que fosse. No final os senhores coronéis podiam ser premiados com uma guia de marcha. "Aquilo de certa forma funcionava, mas era um desgaste, uma temeridade", recorda.

Era neste clima que Otelo fazia uma espécie "public relations", como gosta de dizer, e recebia sobretudo jornalistas, mas também atores, cineastas e até senadores americanos. "Como falava um bocado de inglês e de francês, recebia os pedidos, levava-os a despacho com Lemos Pires, que por sua vez os levava a Spínola. Eu tratava de tudo, ia recebê-los ao aeroporto, instalava-os no hotel de Bissau, preparava os programas de acordo com aquilo que estavam interessados em fazer, avisava as unidades".

A Operação Mar Verde, nome dado pelas Forças Armadas à manobra militar de invasão da Guiné-Conacri e tentativa de derrube do poder, a 22 de novembro de 1970, fracassa, pelo menos parcialmente. O presidente Sékou Touré não é eliminado, mas são salvos 26 prisioneiros e libertados presos políticos do regime. Registam-se perto de 400 baixas do lado da Guiné e os militares portugueses não conseguiram destruir o armamento do PAIGC, incluindo aviões MIG.

Por nomeação de António de Spínola, Eanes desempenhava as funções de oficial de Informações no Comando do Agrupamento Operacional, em Teixeira Pinto. E encontrava Otelo Saraiva de Carvalho na Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica, no serviço de Radiodifusão e Imprensa, para onde tinha sido chamado. Otelo está a render um capitão que morreu na queda de um helicóptero - desastre que vitimou quatro deputados à Assembleia Nacional (José Pedro Pinto Leite, Leonardo Coimbra, Vicente de Abreu e Pinto Bull).

Desta vez, Otelo andava com um grupo de jornalistas estrangeiros a entrevistar soldados e a gravar mensagens para as suas famílias. De surpresa, pedem para falar com opositores de Sékou Touré. Otelo pergunta a Eanes o que fazer. "Vais levá-los ao Senegal". "Ao Senegal? Mas isso é tramado". Não era. "Vamos fazer um truque: andas com eles às voltas uns bons quilómetros, sempre no mesmo sítio, e numa povoação a sul combinamos o encontro." Assim foi.

É de Ramalho Eanes, ex-presidente da República, uma das mais ponderadas e realistas mensagens de condolências. «A notícia da morte do Otelo Saraiva de Carvalho magoou-me e surpreendeu-me. Magoou-me, por se tratar de mais um amigo que parte. Surpreendeu-me, porque estive, recentemente, com o Otelo, no funeral da sua mulher, e achei-o, naturalmente, abatido, mas, aparentemente, com vigor e saúde. Conheci o Otelo na Guiné, onde o substituí na Direcção da Secção de Radiodifusão e Imprensa do Comando-Chefe. Tornámo-nos amigos. Foi, aliás, essa amizade que me levou a testemunhar em seu favor no julgamento a que foi submetido, apesar de muitos reparos e apelos para que o não fizesse. O Otelo era um homem bom, generoso, embora, por vezes, pouco prudente, pouco realista – contraditório, mesmo. Adorava representar, até na vida real, esquecendo que a representação exige um espaço delimitado, em que tudo o que aí é normal não o é na vida real. Para mim, e apesar de todas as contradições, o Otelo tem direito a um lugar de proeminência histórica. E tem esse direito, apesar da autoria de desvios políticos perversos, de nefastas consequências, porque foi ele quem liderou a preparação operacional do 25 de Abril, a mobilização dos jovens capitães, o comando da operação militar bem-sucedida. E penso assim porque entendo que um Homem é uma unidade e continuidade, uma totalidade complexa, e que só é bem julgado quando considerando, historicamente, esse quadro e o seu contexto. Mas há homens que, num momento histórico especial, se ultrapassam, ganhando dimensão nacional, indiscutível, porque souberam perceber e explorar uma oportunidade histórica única, e sentir os anseios mais profundos do seu povo. Otelo é uma dessas personalidades. A ele a pátria deve a liberdade e a democracia. E esta é dívida que nada, nem ninguém, tem o direito de recusar».

Os desvios de que Eanes fala todos conhecem. O mais grave de todos tem a ver com as Forças Populares 25 de Abril (FP-25), uma organização terrorista de extrema-esquerda — boa parte dos seus membros vinham das Brigadas Revolucionárias, criada por dissidentes do PCP no início dos anos 70 —, que operou entre 1980 e 1987.

As FP-25 foram responsáveis por 18 mortes, entre elas um bebé de meses, mais quatro dos seus operacionais, dezenas de atentados a tiro, bomba e assaltos a bancos, viaturas de transporte de valores e empresas. O julgamento por estes crimes nunca terminou e alguns processos acabaram por prescrever.

Não é difícil imaginar o que sente Manuel Castelo-Branco quando escreve "Para mim morreu o homem que mandou matar o meu pai”. Gaspar Castelo-Branco foi baleado à porta de casa, em 1986, pelas FP-25. Manuel, seu filho, encontrou-o numa poça de sangue, quase irreconhecível. Hoje lamenta que Otelo não tenha respondido pelos seus atos e, mais do que isso, que nunca, ao longo dos anos, tenha mostrado sinais de arrependimento.

Em 1980 estava-se no processo de extinção do Conselho da Revolução, que tinha 18 membros e do qual Otelo fazia parte, já se pensava numa nova Constituição e na adesão à CEE. E foi ano de eleições presidenciais, as últimas a que Otelo concorreu e onde voltou a perder, com apenas 1,49%, 85.896 votos, contra os mais de 3,2 milhões de votos alcançados por Ramalho Eanes (mais de quatro anos antes, em 1976, tinha conseguido um segundo lugar, com 16,46% do votos).

Otelo foi condenado pelo tribunal de primeira instância, a sentença confirmada pelo Supremo Tribunal, que agravou a pena para 17 anos, mas não foi possível provar os crimes de sangue.

A 1 de março de 1996, a Assembleia da República amnistiava Otelo Saraiva de Carvalho “das infrações de motivação política cometidas entre 27 de julho de 1976 e 21 de junho de 1991”, tendo como principal impulsionador o então presidente Mário Soares, com o argumento de uma "reconciliação nacional". Paulo Portas, Manuel Monteiro, Marques Mendes ou Pacheco Pereira votaram contra. Passaram 25 anos e a divisão mantém-se.

Também Jorge Valsassina Galveias recorda um episódio no mínimo rocambolesco: "Estava em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, e a 48 horas de "passar à peluda" (sair da tropa), sou chamado ao gabinete do comandante, que pediu para me apresentar no dia seguinte no Quartel Mestre General, para falar com Saraiva de Carvalho". Assim foi. Pontual, "o ordenança bate à porta, entro e apresento-me. Otelo estava de pé, de costas para a porta. Virou-se e entregou-me um papel, nada mais, nada menos do que um mandado de captura para o meu pai. Só tinha uma solução, usar um artigo que, se bem me lembro, permitia cinco dias de férias sem ter de apresentar justificação".

Jorge tinha então 23 anos, era 1975. Perante a situação, "foi fazer a trouxa e partir para o Rio de Janeiro". O motivo do mandado foi a produção do filme que publicitava a manifestação da Maioria Silenciosa - "campanha devidamente autorizada pelo major Sanches Osório, então com a pasta da Comunicação Social. Foi a altura da famosa Lista da Matança da Páscoa, do Campo Pequeno".

Otelo reconheceria mais tarde que a questão dos decretos foi o verdadeiro rastilho para a criação do Movimento dos Capitães. A 28 de agosto de 1973, 51 oficiais em comissão de serviço na Guiné reagem, enviando uma exposição ao presidente da República, ao presidente do Conselho e ao ministro da Defesa. As assinaturas foram recolhidas por Otelo.

A última reunião em que Otelo participa na Guiné acontece a 13 de setembro. Regressaria à Metrópole três dias depois, exatamente quando completava três anos. A sua missão inicial é ser porta-voz das reivindicações e propostas dos capitães em serviço na Guiné.

Na Metrópole, Vasco Lourenço e outros organizam um encontro secreto num monte na Alcáçovas, em Évora, que marcou o início do Movimento dos Capitães.

Em 1970 Otelo tinha comprado um apartamento em Oeiras e, por esse motivo, pediu colocação numa unidade militar da linha do Estoril. Mas soube que estava requisitado para a Escola Prática de Artilharia, em Torres Novas. Más noticias.

Como a casa de Oeiras não estava pronta, Otelo e a família instalaram-se na Messe de Oficiais de Santa Clara, em Lisboa. Foi aí que o colocaram ao corrente das novidades em relação ao Movimento dos Capitães.

Em outubro, finalmente, a casa fica pronta, embora quase despojada de mobílias. Os amigos, nas muitas reuniões feitas em casa de Otelo, brincavam com as alcatifas enroladas a um canto, dizendo que quando estivessem colocadas, o regime já teria sido derrubado.

Foi à saída de uma destes encontros, em Aveiras, que no caminho para casa Otelo pergunta a Vasco Lourenço: "Não sei o que pensas, mas acho que podemos ir mais longe e criar condições para derrubar o governo". Vasco Lourenço concordou. O resto da história é conhecido: uns meses depois dá-se o 25 de Abril.

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