O Chile vai este domingo às urnas para eleger um novo presidente. Este país na costa ocidental da América Latina é desde os anos 1990 um pólo de estabilidade política e dinamismo económico na região, depois de quase 17 anos sob o controlo militar de Augusto Pinochet.

Doze por cento dos chilenos consideram o antigo ditador, cujo regime fez milhares de mortos, “um dos melhores governantes do país”, à semelhança do que os portugueses também disseram de Salazar, em 2007. Mas se em Portugal a sondagem da RTP viu 41% dos inquiridos a escolher o líder do Estado Novo como “o maior português de sempre”, a sondagem, do Centro de Estudos Públicos chileno chegou apenas aos 12%.

O general dirigiu o país com mão de ferro. Depois de perder, em 1988, um referendo por ele mesmo marcado, passou o poder, em 1990, ao democrata cristão Patricio Aylwin, eleito nas urnas, e continuou à frente do exército até 1998.

Pinochet morreu em 2006, sem ter sido julgado pelos crimes perpetrados pelo seu regime. Entre as vítimas do seu regime está o pai da atual presidente, Michelle Bachelet.

Bachelet foi também torturada pela ditadura. Tornou-se em 2006 a primeira mulher a chegar à presidência do Chile. Voltou ao poder em 2014, mas não se vai recandidatar, deixando um país que, 27 anos depois da redemocratização, continua com matizes conservadores. O divórcio foi autorizado apenas em 2004. O aborto em casos médicos só foi aprovado este ano e o parlamento ainda há de discutir uma lei para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

As pegadas na areia, o milionário e o radical

Pinochet abriu o caminho para os “Chicago Boys” [os rapazes de Chicago], grupo de economistas chilenos que estudaram na Universidade de Chicago com Milton Friedman e Arnold Harberger para aplicar um plano de choque neoliberal que privatizou a saúde, a educação e a segurança social.

O modelo económico do país sul-americano baseia-se nas exportações. Mas o “milagre chileno” teve uma contrapartida: a desigualdade, que se mantém até hoje, com salários baixos e os serviços básicos privatizados.

Pinochet não é candidato, mas é uma personagem inevitável nestas eleições. Sebastián Piñera, que se autodenomina de centro-direita, avança para vencer a primeira volta do plebiscito com vantagem. Mas tudo leva a crer que precisará de uma segunda volta; volta em que o apoio da direita mais radical será uma peça chave para a tentativa de retornar ao Palácio de La Moneda.

O bom faro para os negócios levou Piñera a tornar-se num dos homens mais ricos do Chile, com uma fortuna avaliada em 2,2 mil milhões de euros pela revista Forbes. Para além do dinheiro, teve um desejo: queria ser o primeiro presidente de direita em quase meio século. Se o conseguir, como todas as sondagens antecipam, seria o único político de direita a governar o Chile em duas ocasiões.

Chegou à presidência pela primeira vez em 2010. Tinha 60 anos, passara por duas décadas de carreira política, com quatro eleições presidenciais na bagagem. Rompeu com décadas de hegemonia de governos de centro-esquerda. Mas as promessas desmoronaram: governar um país não é gerir uma empresa.

Tropeçou. Engana-se com frequência nalguns factos históricos, as chamadas “Piñericosas”. Manteve-se, por isso, moderado na atual campanha de reeleição, traçada desde o dia em que deixou La Moneda com 50% de apoio.

Todavia, a aparição repentina de um candidato ultraconservador - José Antonio Kast -, que reivindica abertamente a ditadura de Pinochet, trazendo de volta, sem pudores, o ideário pinochetista, fez com que Piñera “endireitasse” o seu discurso nesta segunda campanha, quando se voltram a ouvir gritos de “Viva, Pinochet!”, nalguns dos seus comícios.

É um dos tais laivos do chamado “pinochetismo” que ainda se vislumbram no país. Embora cada vez mais reduzida, a corrente ainda tem um imenso poder económico e controla grande parte da União Democrata Independente (UDI), o maior partido político do país.

“Piñera não é pinochetista, mas precisa do pinochetismo”, diz Raúl Elgueta, ouvido pela France-Presse. O analista da Universidade de Santiago exemplifica assim a encruzilhada em que o empresário se encontra.

Kast, o candidato da ultradireita, én contra o aborto, contra a abertura das fronteiras aos migrantes e a favor do porte de armas em massa para enfrentar a criminalidade. Está à procura de angariar os votos da direita “mais dura” e que desconfia da lealdade do ex-presidente Piñera.

Com uma linguagem direta e por vezes extrema, Kast conseguiu fazer barulho, escreve a AFP. Porém, não passa dos 3% nas intenções de voto.

“Na segunda volta todos deverão votar em Piñera, e Piñera deverá adotar posições mais moderadas para poder vencer. O pinochetismo está morto u é muito marginal”, diz Patricio Navia, analista da Universidade de Nova Iorque.

O “endireitamento” da campanha levou Piñera a sepultar momentaneamente as suas tentativas de se erguer como o líder de uma direita renovada e despojada de quaisquer heranças da ditadura de Pinochet.

O empresário votou a favor do fim do regime ditatorial, no referendo de 1988, e durante o seu primeiro governo, entre 2010 e 2014, criticou setores dentro desta mesma direita, qualificando de “cúmplices passivos” os civis que apoiaram a ditadura.

Ditadura que, 27 anos depois do fim, continua a marcar o passo da vida chilena. O sistema económico permanece praticamente inalterado; também o sistema privado de pensões e a Constituição que Pinochet impôs em 1980 continuam quase intactas.

O sistema eleitoral, que durante anos beneficiou a direita, foi desmantelado pelo governo de Bachelet, que procura também pôr fim ao sistema de educação de Pinochet. As mudanças, todavia, chegam devagar a uma sociedade que se acostumou a viver sob o modelo de Pinochet.

Da redação para La Moneda

Do outro lado de Piñera e Kast estão Alejandro Guillier e Beatriz Sánchez. São jornalistas, antigos companheiros da rádio e televisão. Sonham com uma segunda volta frente ao favorito Piñera.

Num cenário de desconfiança pelos políticos tradicionais, figuras conhecidas como Guillier e Sánchez tentam ocupar um espaço reservado a outras profissões, como advogados, engenheiros ou médicos.

As três décadas de carreira no jornalismo de Alejandro Guillier, que foi repórter, editor chefe e apresentador dos principais telejornais do país - que fizeram dele um dos jornalistas de maior credibilidade do Chile -, prepararam o caminho para que se transformasse, aos 64 anos, no candidato com mais chances dentro da coligação.

Com o governo sem um nome forte para a disputa, o jornalista superou figuras históricas da esquerda chilena, como o ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006), preterido pelo Partido Socialista em favor de Guillier, estrela emergente nas sondagens.

Diante da intensa energia de Piñera, que afirma dormir apenas cinco horas, Guillier defende o 'cochilo', a boa comida e as longas conversas com um tom mais pausado. O que leva muitos a acusá-lo de falta de entusiasmo na campanha.

"As pessoas confundem, estão habituadas aos hiperativos", disse numa entrevista recente entrevista, depois de sublinhar que foi o "único candidato que percorreu todo o Chile".

Apesar de ter o apoio dos partidos tradicionais de esquerda, Guillier diz ser "independente". Iniciou a carreira política há quatro anos, quando foi eleito senador pela região de Antofagasta (norte) com 37% dos votos.

Mas o preço dessa independência foi elevado: a disputa à presidência como candidato sem partido obrigou-o a enfrentar a complexa missão de obter, com recursos privados, mais de 30. mil assinaturas reconhecidas em cartório.

Depois de uma longa carreira nas principais rádios do país e mais recentemente na televisão, Beatriz Sánchez aceitou ser a candidata à presidência pela 'Frente Ampla', grupo de esquerda radical dissidente da coligação formada pelos antigos líderes dos protestos estudantis.  

Com o argumento de que é a "ponte entre os movimentos sociais", rapidamente chegou ao terceiro lugar nas sondagens e tornou-se uma personagem importante nas eleições deste domingo.

Na campanha, Sánchez é, sem dúvida, a mais sorridente e entusiasmada entre os oito candidatos à presidência do Chile. "Sem uma mudança, sem uma reflexão, o país está repleto de raiva e de medo", advertiu recentemente.

Abertamente feminista, Sánchez, de 46 anos, é favorável à legalização do aborto seguro para todas as mulheres, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a um papel maior do Estado na educação e saúde, assim como ao fim das administrações privadas de fundos de pensões.

Dizem as sondagens que um dos jornalistas deve disputar uma segunda volta frente ao bilionário de direita Sebastián Piñera, que tem 34,5% das intenções de voto. Guillier aparece com 15,4% e Sánchez com 8,5%.

De Atacama, o mundo vê o universo

É no deserto de Atacama, imortalizado pelas rosas, escritas por Sepúlveda, que estão alguns dos mais importantes observatórios astronómicos do planeta. O céu limpo, o ar frio e seco, o permitem. É lá, por entre as flores, que o mundo põe os olhos que olham o universo.

O nome que sair das urnas, neste que é também o país mais sísmico do mundo, tem pela frente a missão de sacudir os tapetes do poder - e da economia. O ano passado trouxe ao Chile o crescimento mais baixo em sete anos (1,6%), com a queda do preço do cobre. O país de 17,5 milhões de habitantes é o maior produtor mundial, com quase um terço da produção.

Os preços têm vindo a subir novamente, mas as desigualdades continuam a ser muito pronunciadas num país que se estende por 4.300 quilómetros, do deserto de Atacama à Antártida, entalado entre o Pacífico e os Andes.

A OCDE alertou para as desigualdades em 2015. Em 2016 a taxa de pobreza estava nos 11,6% - três vezes menor que em 1990, segundo o Banco Mundial. Mas a educação de qualidade continua a não ser para todos.

O acesso aos melhores estabelecimentos está reservado às famílias com mais recursos, diz a OCDE. Michelle Bachele proibiu a seleção dos estudantes, introduzindo a gratuitidade nas escolas que recebem apoios do Estado e para o ano que vem espera-se que 70% dos estudantes das camadas mais pobres recebam bolsas.

Do deserto do Atacama, o mundo põe os olhos no espaço. Os chilenos decidirão quem querem que, do Palácio de La Moneda, ponha os olhos neles.

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