"Já estive em dezenas de países a fazer trabalho humanitário, nomeadamente em África. Mas o que vi em Khan Younis foram as cenas mais horríveis da minha vida".
Esta é a descrição de um médico e cirurgião oftalmologista, do Canadá, que esteve duas vezes na Faixa de Gaza, a última em março. É a de Yasser Khan, que conversou com o SAPO24, mas podia ser de um outro qualquer profissional de saúde, diz o clínico de 44 anos.
"Nem tanto os médicos palestinianos, mas os europeus e de outros continentes diziam o mesmo: nunca vi tamanha catástrofe humanitária. Os ferimentos traumáticos são de uma magnitude e gravidade que nunca tinha testemunhado antes. Após cada ataque israelita, sabíamos que iriam entrar centenas de vítimas pelas portas do Hospital Europeu de Gaza, onde estava a trabalhar. E a primeira vez que os vi entrar fiquei paralisado, sem palavras. Crianças, bebés a entrarem com os membros esmagados e a precisarem de amputações. Há uma média de 15 amputações por dia, principalmente em crianças, isto há seis meses. Tratei, essencialmente, crianças dos dois aos 18 anos. Gaza é o inferno na Terra. E pensem nisto, o fluxo de medicamentos essenciais diminuiu, nomeadamente insulina, antibióticos e analgésicos. Mais de um milhar de crianças já tiveram membros amputados, só eu tive de retirar dez olhos no tempo que estive por lá, e sem esse fluxo de medicamentos, muitas delas tiveram de ser amputadas sem anestésicos para aliviar a dor", diz o canadiano.
"Para as que não estão nos hospitais, mas estão nas ruas, a brincar, porque também não há escolas, tudo isto já é normal. Os bombardeamentos, mas mortes dos amigos, dos familiares, mas isto não pode ser normal, não pode"Yasser Khan
Yasser Khan esteve duas vezes na Faixa de Gaza e pede que mais médicos se deem como voluntários. Mas mesmo aí a burocracia atrapalha a ajuda humanitária.
"Não é fácil entrar em Gaza. Ali só entra mesmo um profissional de saúde e para tal precisa da autorização das autoridades do Egito e de Israel e, ainda, da OMS. Nem todos conseguem a aprovação, eu consegui, mas peço que tudo seja mais fácil, que haja mais a viajarem até lá. Eu sei que não é fácil, uma bomba pode cair a qualquer momento, mas aquele povo precisa de ajuda", referindo depois as razões para este pedido de ajuda para a Faixa de Gaza.
"Os médicos e enfermeiros palestinianos estão sobrecarregados, com fome e já começam a desmoralizar. Há bombardeamentos todos os dias, a maioria dos hospitais foram atingidos. Muitos médicos e enfermeiros ou morreram, ou foram feridos. Não há alimentos, não há espaço nos hospitais, alguns tem capacidade para 250 camas e há mais de mil feridos, é precisa muita ajuda, de todos aqueles que conseguirem. Muitos também não sabem, mas os atiradores israelitas, dos melhores do mundo, infelizmente, atiram especificamente em médicos e enfermeiros, isto é uma estratégia. Mas não tenham medo, eu regressaria num abrir e fechar de olhos, mas infelizmente é isto que se passa por lá", salienta.
Mas para Yasser o mais alarmante são os sorrisos das crianças. "Para as que não estão nos hospitais, mas estão nas ruas, a brincar, porque também não há escolas, tudo isto já é normal. Os bombardeamentos, as mortes dos amigos, dos familiares, mas isto não pode ser normal, não pode", diz.
Um futuro ainda mais preocupante
Yasser Khan traça aquilo que para ele é um "inferno" neste momento, mas vê um futuro ainda pior.
"A destruição, as mortes, a falta de cuidados, tudo isso vai continuar a ser um problema, mas haverá mais no futuro. Por exemplo, neste momento há cerca de 15 mil corpos em decomposição, por aquilo que os meus colegas de lá me dizem. Estamos também na época das chuvas em Gaza e quando a água se misturar com os corpos, as bactérias com a água potável, então as pessoas que ainda não estão feridas ou doentes, vão ficar", diz, salientando o que para si tem de ser feito no futuro para que exista futuro na Faixa de Gaza.
"É, sobretudo, necessário que a população tenha acesso a tratamento médico adequado. Será preciso um investimento muito grande, exterior. Mas com tanta política, com tantos países contra Israel, não vejo isso acontecer a curto prazo, o que era necessário. Seria mesmo necessária uma colaboração entre as autoridades palestinianas, as organizações internacionais, o Egito e Israel. E além das infraestruturas, será essencial um enorme apoio à saúde mental do sistema de saúde palestiniano e de todo o povo, dado o profundo trauma psicológico que todos têm".
Os médicos que ainda não são médicos, mas que têm de o ser
Nour Shaer tem apenas 23 anos, é de Rafah, e é uma estudante de medicina. Ou melhor, 'era'. 'Era' não porque tenha desistido do curso, mas porque devido à necessidade urgente de profissionais de saúde, às mil burocracias para que estes entrem na Faixa de Gaza, teve de ser chamada ao 'campo de trabalho'. Começou em Rafah, mas esteve também em Gaza. A ideia da morte já lhe passou pela cabeça, mas agora, com tanto trabalho que tem, já nem pensa nisso.
"Comecei a ajudar em Rafah, primeiro na entrega de alimentos, íamos de casa em casa dar a quem mais precisava. Por cima de nós voavam bombas e F-16. Pensava sempre que este ou aquele poderia ser o meu último dia, mas agora já não. Agora os sons quase não os ouvimos. Já nos habituámos", diz ao SAPO24.
"Vi um dos meus amigos próximos cortado em pedaços, a minha família já teve de reconhecer parentes através das suas mãos, dos anéis, muita coisa horrível"Nour Shaer
Depois da ajuda humanitária foi então chamada a fazer aquilo que mais gosta.
"Estou no quarto ano de medicina, mas tive ir ajudar. Em alguns hospitais são centenas e em outros são milhares de feridos que precisam urgentemente de ajuda. Uns em camas, outros espalhados pelo chão, já tive de realizar algumas cirurgias no chão, já tive de ajudar pessoas em pé, é inimaginável", salienta.
O inimaginável que retrata e que, infelizmente, já teve de ver pessoalmente. "Vi um dos meus amigos próximos cortado em pedaços, a minha família já teve de reconhecer parentes através das suas mãos, dos anéis, muita coisa horrível", diz Nour Shaer, que mesmo perante tudo isto não desiste de ajudar.
"É para isto que estou a estudar, tive de entrar em campo mais cedo do que esperava e logo para uma grande lição de vida. Tento fazer tudo aquilo que aprendi, mas naturalmente que não posso estar a contar com a ajuda de outros médicos, como deveria ser de início. Mas este é o meu povo, tenho de ajudar", disse a jovem que agora nem sabe como vai concluir a Faculdade.
"Está destruída, não sei como vai ser o futuro. A reconstrução vai demorar, porque nem sabemos quando acaba esta guerra horrível. Mas sei que agora é tempo de ajudar, é tempo de não pensar nas bombas, é tempo de ajudar os feridos, é tempo de ouvi-los, de consolá-los", concluiu Nour Shaer.
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