“Antes daquele dia 24 de fevereiro, não esperávamos isto”, reconhece à Lusa Oleg Serniak, mas rapidamente tornou-se para ele claro que a guerra provocada pela invasão russa “pode demorar meses ou anos”.

Sem tempo a perder, recorda, em 24 horas começaram a ser preparados abrigos subterrâneos em escolas e jardins de infância e sinalização para os localizar, os bombeiros receberam instruções para soar os alarmes em caso de ameaças de bombardeamento, e foi criado um corpo de segurança local, que envolve cerca de mil dos 15 mil habitantes de Pustomyty.

Ao fim de quase duas semanas de guerra, para percorrer os derradeiros dez quilómetros da estrada que conduz à sede deste pequeno município predominantemente rural, a sul de Lviv, na Ucrânia ocidental, é preciso cruzar quatro ‘checkpoints’ de elementos civis convertidos em forças paramilitares.

Outros patrulham a rede viária do município em busca de movimentos suspeitos, “particularmente sabotadores russos ou pró-russos”. A proteção de depósitos de água e instalações de eletricidade foi reforçada, os principiais edifícios públicos e o hospital foram protegidos com sacos de areia.

Esta região da Ucrânia não foi alvo de ataque desde o início da guerra e o presidente do município, um independente de 40 anos, até duvida que isso venha acontecer. “Talvez alguns atos de sabotagem ou até bombardeamentos, mas não me parece que a infantaria chegue tão longe, porque vamos travá-los antes disso”.

E, para isso, conta com os cerca de 300 habitantes de Pustomyty mobilizados para a guerra. Os que ficaram são os que constituem os ‘checkpoints’, que obrigam os carros a ziguezaguear sacos de areia brancos e barreiras metálicas antitanque produzidas no local, perante o tom desconfiado de grupos de civis vestidos com coletes amarelos, alguns armados.

Muitos não têm experiência militar e receberam formação elementar do Exército logo nos primeiros dias de guerra. Mas Andrey, 36 anos, tem, o que faz dele uma espécie de graduado e porta-voz do grupo que controla a entrada da vila sede da autarquia.

“Este ‘checkpoint’ foi montado no primeiro dia de guerra”, conta à Lusa, destacando que entende a sua missão como algo que transcende aqueles escassos quilómetros da estrada municipal e “é parte da defesa de toda a Ucrânia”.

Entre os 15 homens, são apenas visíveis uma arma automática e uma caçadeira. Uma caixa guarda cerca de 40 ‘cocktail molotov’, “o nosso Javelin”, ironizam alguns dos homens, numa alusão a um lançador de mísseis antitanque. Também há tiras de espigões artesanais para furar os pneus dos carros que se recusem a parar, algemas, projetores de luz e câmaras de vigilância.

No ‘checkpoint’, instalado junto a uma paragem de autocarro e assinalado por bandeiras nacionais e uma em vermelho e preto (associada ao controverso Exército Insurgente Ucraniano), queimam-se pesados toros de madeira num bidão, uma puxada de uma linha elétrica alimenta uma chaleira, um transístor e há ainda um cão: Gazik.

Nesta estrutura de defesa local, os turnos são de seis horas e muitos dividem esta ocupação com os seus empregos, alguns em Lviv, e o tempo para as famílias, como Andrey, que terá o seu segundo filho dentro de uma semana.

Também este paramilitar pensa que a invasão russa não chegará à região, embora afirme que se sente preparado para ela desde o início da crise no leste do país, em 2014, e agora ainda mais.

“Aqui todos são responsáveis e fazem bem o seu trabalho. Pode dizer isso ao mundo. E, se vierem os russos, cá estaremos à espera deles. Estamos preparados e vamos ganhar”, declara, prosseguindo com uma ironia muito escutada na região de Lviv: “Pode ser que depois a Ucrânia aceite aderir à NATO”.

Montada a proteção de Pustomyty, o município teve de se preparar para a vaga de deslocados, que começaram a surgir logo na primeira semana de guerra, provenientes das regiões mais atingidas pelo conflito.

Desde 03 de março, a sede do município já registou cerca de 700 deslocados, que foram instalados em escolas, jardins de infância e casas particulares. O átrio do edifício do município está coberto por caixas com comida e outros bens e há sempre um psicólogo disponível. Na entrada, amontoam-se mais caixas, estas vazias, para voltar a carregar, e também uma pilha de redes de camuflagem, que se tornou no ninho de um pombo.

A maioria dos deslocados, segundo o presidente da Câmara, fica um ou dois dias, não mais, e segue para a vizinha Polónia. Mas outros precisam de mais tempo. É o caso de Olega, 20 anos, antiga empregada de mesa em Kiev, que, após uma viagem de 10 horas para Lviv em fuga dos bombardeamentos russos, foi encaminhada para um jardim de infância de Pustomyty, que, até 23 de fevereiro, recebia cerca de 180 crianças. No primeiro dia de guerra, as atividades foram suspensas.

Olega e o bebé de sete meses partilham o pavilhão do estabelecimento de educação com mais 22 deslocados, mais as suas escassas bagagens. O marido ficou em Kiev.

“Quando chegámos no domingo a Lviv, não sabíamos para onde ir, não tínhamos nada, até que umas pessoas boas nos trouxeram para aqui”, recorda. “Mas agora, agradeço tanto que haja gente que nos receba e alimente. Aqui não nos falta comida, nada”, prossegue, antes de se demorar num abraço a Lesya, a diretora deste jardim de infância público, e onde Olega pretende permanecer algum tempo antes de continuar viagem, provavelmente para a República Checa.

O local vive dos apoios da comunidade, que todos os dias abastece os deslocados com comida, num trabalho incessante. “É entrar e sair, entrar e sair”, segundo Leysa. Hoje partiram dez, mas mais 30 estavam para chegar à noite e outras tantas camas e colchões já se encontravam de manhã preparados em duas salas para os receber.

Este jardim de infância está ainda sinalizado como um dos locais de abrigo quando as sirenes tocam, não só para os deslocados como para a vizinhança, o que já aconteceu. Numa cave de paredes escuras, onde se destaca uma imagem de Maria com Jesus ao colo, e com capacidade para cerca de cem pessoas.

Também em Pustomyty se começaram a mobilizar os jovens para o fabrico artesanal de redes de camuflagem a partir de roupas usadas. Cada uma demora duas horas a fazer, a partir de técnicas que lhes foram ensinadas durante quatro dias por uma formadora. “Agora podemos fazê-las sozinhas e já produzimos umas 30, que vão seguir para os nossos militares na frente”, explica Nastya, estudante de filologia inglesa, lamentando a carência de materiais de base, como arames ou linhas de pesca, mas, acima de tudo, a eclosão de uma guerra que lhe mete medo e que espera que nunca chegue a este lugar.

Volodymyr, 60 anos, tem a mesma esperança. A fumar encostado ao portão da sua casa, na saída de Pustomyty, lamenta que os russos não se comportem como vizinhos e resolvam os seus problemas com uma garrafa na mesa. Mas, como considera que “o Presidente Putin é um fascista”, prefere repetir a frase de militares da Armada ucraniana no Mar Negro, dados como mortos após recusarem a rendição, e que é agora exibida em ‘outdoors’ nas saídas e entradas de Lviv e entrou no dia-a-dia patriótico, incluindo de Volodymyr : “Navio russo, vão-se f…”

*Por Henrique Botequilha (texto) e Miguel A. Lopes (fotos), agência Lusa em Pustomyty, Ucrânia